Supercampeão de 1970

Com artilheiro Mickey, que desafiou a ditadura, o Fluminense chegava ao seu 1º título nacional há 50 anos

Bernardo Gentile e Caio Blois Do UOL, no Rio de Janeiro Reprodução/O Globo

Félix, Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio; Denílson e Didi; Cafuringa, Mickey, Cláudio Garcia e Lula. Assim o Fluminense de Paulo Amaral subiu ao gramado do Maracanã, lotado com 112 mil pagantes e muitos "caronas", como se dizia à época, para empatar por 1 a 1 contra o Atlético-MG, há exatos 50 anos, e conquistar o primeiro título do Campeonato Brasileiro — ainda chamado de Torneio Roberto Gomes Pedrosa — de sua história.

Aquela edição ficaria da maior competição de clubes do país ficaria marcada na história porque pela primeira —e última vez— todos os craques que haviam conquistado o Mundial do México, meses antes, desfilavam em gramados nacionais.

Enquanto o Brasil ainda vivia sob efeitos de um patriotismo forçado pela ditadura militar, o Tricolor tinha como herói um jogador com nome de um desenho estrangeiro e que chegou a ser incluído na lista de suspeitos do regime: Mickey, o "Artilheiro Paz e Amor".

Figura de fácil lembrança pelas características que lhe dão o apelido — nariz e orelhas grandes —, o atacante substituiu Flávio, artilheiro da equipe, na fase final e cravou para sempre na história do Flu e do futebol brasileiro.

Primeiro time a receber o apelido de "Máquina Tricolor", o Fluminense já havia conquistado o Campeonato Carioca e a Taça Guanabara entre 1969 e 1971. E na década seguinte, em 1984, levantaria seu segundo troféu do Brasileirão. O Flu ainda foi campeão brasileiro em 2010 e 2012.

Reprodução/O Globo

O mais difícil de todos os tempos

Com todos os campeões do mundial de 1970 em times brasileiros, o último Robertão era considerado o nacional mais difícil de todos os tempos. Naquele ano, foram criados também o tradicional prêmio Bola de Prata, pela Revista Placar, para aproximar o futebol do país ao já renomado Oscar, maior prêmio do cinema mundial.

As grandes potências naquela época eram os times com mais tri-campeões mundiais no elenco. No Santos, Pelé desfilava sua majestade ao lado de Carlos Alberto, Joel, Clodoaldo e Edu. O Botafogo havia cedido à seleção o meia Paulo Cézar e os atacantes Jairzinho e Roberto.

No Tricolor, a aposta era o coletivo com os tri mundiais Félix e Marco Antônio. Para comandar a equipe, o Flu contratou Paulo Amaral, que havia sido auxiliar técnico da seleção nas campanhas vitoriosas de 1958 e 1966.

Antigamente isso era mais comum, pois os jogadores não tinham tantas oportunidades de sair do país. Então foi um campeonato fortíssimo, recheado de craques que haviam vencido o mundial. Isso valoriza ainda mais a conquista do Fluminense".

Mickey

Fluminense FC

Telê Santana pulou o muro para sair do Flu

Telê Santana, que já havia iniciado sua carreira como jogador profissional nas Laranjeiras em 1951, também tinha forte ligação com o elenco campeão de 1970. Ele havia treinado a equipe no ano anterior e formado a base do grupo.

Com forte identificação com o clube, a saída dele não se deu por insatisfação da diretoria com seu trabalho: foi uma decisão do próprio treinador. Telê comprou briga com clube para que caísse a obrigatoriedade de que jogadores entrassem somente pela porta dos fundos do clube. Em dezembro de 1969, em reunião com o alto escalão do Tricolor, a diretoria decidiu que Telê poderia entrar pela porta da frente, mas os atletas, não. O treinador recusou.

"Eu disse que também fui jogador e que o aviso servia para mim também", contou, anos mais tarde. Não houve acerto, e a parceria chegou ao fim. Na hora de ir embora fez questão de sair pelo portão dos fundos, o mesmo usado pelos atletas. Mas como já era tarde da noite e não havia um funcionário para abri-lo, Telê, então, decidiu tomar uma medida inusitada: pulou o muro.

Ele pulou o muro e foi embora p... da vida. Houve esse problema com jogadores que não podiam usar o portão principal das Laranjeiras e ele saiu, foi embora. Fechou com o Atlético-MG e chegou ao quadrangular final justamente contra o Fluminense. Nos falamos antes do jogo e tudo. No ano seguinte ele foi campeão com o Galo. E ele era tricolor doente".

Mickey

ARQUIVO/Estadão conteúdo

Paulo Amaral surpreende com esquema italiano

Com a saída de Tele Santana, o Fluminense agiu rápido e contratou Paulo Amaral, que havia sido preparador físico da seleção brasileira nos mundiais de 1958 (foto ao lado Vicente Feola) e 1962. Amaral deixou a Inter de Milão, onde atuava na sua função de origem, para comandar o Flu. Diferentemente do que ocorre hoje em dia, na época era bem comum que outros membros da comissão técnica tivessem tanto conhecimento técnico quanto o próprio treinador.

Com o futebol italiano na bagagem, ele desembarcou no Rio de Janeiro e montou um esquema que consistia em uma forte marcação e saída rápida nos contra-ataques.

"Ele trouxe esse estilo de jogo da Itália. O sistema foi muito rapidamente absorvido pelo time e nos entendemos bem. Surpreendemos todos os grandes times do país e nos classificamos para o quadrangular final, que definiria o título. Jogávamos no contra-ataque, mas nossa marcação era o ponto forte. Era visível, isso. Quem jogava de centroavante era o Flávio, que se machucou, teve um estiramento", lembrou Mickey, que substituiu o artilheiro.

"Tive essa felicidade de fazer os gols. O time era muito bem organizado. Marcação forte e depois saía com muita velocidade no contra-ataque. O Samara lançava cada bola que era um negócio maravilhoso, um 'cracaço'. Quando recuperávamos a bola, os nossos laterais se lançavam ao ataque e se juntavam aos pontas. Todos de muita qualidade. E os adversários não conseguiam entender isso, era algo incomum na época. Treinávamos essas jogadas mais de 50, 60 vezes por dia", completou o histórico centroavante.

Flu Memória Flu Memória

Concentração em mansão e fim do pagode por título

O Fluminense tinha um grande elenco, e Paulo Amaral mantinha o grupo em rédeas curtas. Mickey lembra que, no quadrangular final, a situação, que já era rígida, ficou ainda pior.

Com a classificação, o Fluminense passou a vetar as saídas noturnas dos jogadores e concentrá-los em uma mansão três dias antes de cada jogo. Tudo para manter o foco único e exclusivamente no futebol.

"O nosso grupo era muito forte e unido. Tínhamos excesso de jogadores —três para cada posição — e vontade de vencer, o que é primordial. Abrimos mão de pagode, de tudo. Era treinos em dois períodos. Concentrava na quinta para jogar no domingo. Ficávamos em uma mansão em Santa Teresa [região central do Rio de Janeiro]. E, como não tinha centro de treinamento, então voltávamos todos os dias para Laranjeiras para treinar", explicou Mickey.

Acervo O Globo

De reserva a herói do título

O time base do Fluminense era Felix; Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio; Denilson, Samarone; Cafuringa, Lula e Flávio. O herói do título, no entanto, esteve na maioria da competição sentado no banco de reservas: Mickey.

Flávio era o grande artilheiro do time, mas sofreu grave estiramento muscular na coxa direita e deu a brecha que Mickey tanto esperava. A primeira chance foi no último jogo da fase classificatória. O Fluminense foi até Curitiba encarar o Athletico-PR precisando de um empate para chegar ao quadrangular final.

"Nos classificamos. Eu fiz o gol, e eles empataram. Mas levamos a melhor no saldo e passamos para o quadrangular final contra Palmeiras, Cruzeiro e Atlético-MG. Eu era o reserva, caiu no meu colo. Estava iluminado e esse foi só o primeiro", disse Mickey.

Classificado para a fase final, o Fluminense seguia sem poder contar com o principal centroavante, que, apesar das tentativas, não conseguiu voltar antes do fim do torneio.

"O primeiro jogo foi contra o Palmeiras, no Maracanã. Vencemos por 1 a 0 com gol meu, de cabeça. Em seguida, fomos a Belo Horizonte jogar contra o Cruzeiro e também vencemos por 1 a 0 com gol meu. O jogo final foi contra o Atlético-MG, no Maracanã, e novamente balancei as redes. Foi 1 a 1 e nos sagramos campeões", concluiu. No quadrangular só ele marcou. Foram três gols do Fluminense, três de Mickey. O herói improvável. E humilde.

O Flávio era experiente e o titular absoluto do time. Eu entrava no meio das partidas. Mas ele teve um estiramento muscular e ficou fora. Entrei e tive a sorte de fazer os quatro gols [um no último jogo da classificatória e os três do quadrangular]. Gols importantíssimos. O Flávio tentou voltar a todo custo, mas a lesão não foi simples. Depois acabou sendo vendido ao Benfica".

Mickey

Reprodução/Acervo/O Globo Reprodução/Acervo/O Globo

Comemoração gera problema com ditadura

Em 1970, o Brasil vivia o auge da ditadura ditadura militar (entre 1964 e 1985), e era presidido Emílio Garrastazu Médici, que dois anos antes, havia implementado o AI-5, com rígida censura a artistas e meios de comunicação. Nem mesmo o futebol escapava dos olhares atentos dos militares.

Nesse cenário, as comemorações dos gols de Mickey no quadrangular final geraram um problema e tanto. O jogador costumava levantar os dedos médio e indicador, em V, fazendo o símbolo de "paz e amor" para celebrar os gols. O gesto, contudo, foi considerado uma provocação ao regime militar, e o centroavante foi chamado pela diretoria para esclarecer a situação. Não foi só o Fluminense que pressionou o atleta. Além de ele ter sido incluído na lista de suspeitos de subversão e incitação pelo regime militar, o centroavante conta que, na época, chegou a ser "enquadrado" por um desconhecido.

"A comemoração foi combinada com todo o grupo. Quem fizesse o gol faria o gesto. Acontece que só eu marquei os gols da equipe no quadrangular. Um dia fui abordado por um desconhecido na rua, e ele me perguntou se aquilo tinha sido algum protesto ou uma crítica ao governo. Disse que não. Eu sabia que era uma época que tínhamos que tomar cuidado com o que fazia ou falava", disse o ex-jogador, que hoje, aos 72 anos, vive em Balneário Camboriú, em Santa Catarina, com a família.

ARQUIVO/Estadão Conteúdo

Cafuringa: o dono da resenha

Todo elenco de futebol tem aquele jogador mais engraçado e que lidera a resenha do grupo. No Fluminense de 1970 esse era o papel de Cafuringa (na foto, com Pelé). Nascido em Juiz de Fora (MG), ele tinha alma de carioca, como dizem. Malandro e com muito gingado: dentro e fora de campo.

"O Cafuringa era a grande figura, muito engraçado. Era a alegria do time. Surgiu muito bem no Botafogo e anos depois foi para o Fluminense. Ele tinha um vigor físico incrível e jogava demais. Ele cansava todos os laterais adversários. A brincadeira era que teria que jogar um em cada tempo porque não aguentavam ele [risos]. Era um sufoco. Era a alegria do time e da torcida também. Era garoto e vivia nas graças dos tricolores", disse Mickey.

Não à toa, o ponta direita foi apontado por Ademir da Guia, ídolo do Palmeiras, um dos três melhores jogadores da competição — ao lado de Mirandinha e Aladim, do Corinthians.

Diante desses adjetivos, os torcedores na época não entenderam o motivo dele não ter sido convocado para a Copa de 70. Ele, inclusive, deu origem ao apelido do pentacampeão mundial Cafu.

LUCAS MERÇON/ FLUMINENSE F.C.

Festa tricolor

A torcida fez a festa com o primeiro título brasileiro do Fluminense. Os torcedores lotaram o gramado e as arquibancadas do estádio das Laranjeiras, sede do clube.

Era tanta gente que as ruas próximas ao local foram bloqueadas, e os bares ficaram completamente lotados. O festejo, claro, foi regado a muita cerveja. O próprio clube liberou certa quantidade de bebida para quem estava dentro das Laranjeiras.

Vale ressaltar que a maioria dos jogadores marcou presença na festividade, mas não por muito tempo. Logo seguiram para um pagode mais reservado, já que a faixa de campeão no peito dava a eles o passe livre que eles não tiveram durante o quadrangular final.

Da Taça de Prata (e do Robertão) ao Brasileirão

No ano seguinte à conquista do Fluminense, em 1971, a CBD (Confederação Brasileira de Desportos, antiga CBF) anunciou uma "transformação" no Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o "Robertão", realizado entre 1967 e 1970, cujo nome oficial era Taça de Prata. Mas pouca coisa, de fato, mudou. O regulamento e o formato de disputa do Campeonato Brasileiro ou Brasileirão eram os mesmos do ano anterior.

As novidades eram apenas a criação da segunda divisão e a inclusão de três clubes: mais um de Minas Gerais, um do Ceará e outro de Pernambuco, chegando ao número de 20 times na disputa. O Fluminense, campeão de 1970, referendou o regulamento e o oficializou para a disputa.

Em 1971, inclusive, a CBD declarou o Flu campeão brasileiro em seu boletim oficial. E Placar e Jornal dos Sports, principais veículos esportivos do país à época, colocavam o Tricolor "em busca do bi". A revista dizia que o Campeonato Nacional de Clubes "nada mais era do que um Robertão um pouco diferente".

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Influência da ditadura

O Robertão já era o embrião de um campeonato nacional organizado e pautado pelo governo federal. A competição foi ampliada com a participação dos clubes do Sul e do Nordeste do país. Com a "diplomacia do interesse nacional" por trás, o primeiro certame oficialmente organizado pela CBD teve forte influência do general Emílio Garrastazu Médici, o terceiro presidente do país durante a ditadura militar.

O objetivo do regime era claro: fazer nascer uma marca que exaltasse o futebol brasileiro como produto de massificação da cultura patriótica em meio ao momento de bonança da economia conhecido como o Milagre Brasileiro. A ideia era usar o futebol, paixão nacional, para promover o ufanismo e a imagem de integração nacional. Além disso, era interessante para os militares que o torneio parecesse inédito, uma criação do governo.

Nascia ali uma era marcada para girar a favor do sistema militar e conquistar adeptos por todo o Brasil, com inchaço de clubes promovido pelo governo. A competição chegou a ter 94 participantes, com convites distribuídos aos clubes em vez da classificação a partir dos estaduais mais fortes.

A bem da verdade, até 2003, quando se inicia a era dos pontos corridos, o Brasileiro nunca repetiu a fórmula de disputa e foi chamado de Taça de Ouro, Copa Brasil, Copa União, Copa João Havelange, Campeonato Nacional de Clubes e Campeonato Brasileiro. Em 2010, em decisão também política, a CBF reconheceu todos os títulos nacionais de 1959 até 1970 como títulos brasileiros. Todas as conquistas estavam equiparadas. Dias depois, o Fluminense se sagraria tricampeão com o brilho de Conca, Émerson Sheik, Fred e companhia.

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