Destino Montevidéu

Flamenguistas que viveram saga maluca de ônibus para ver título de 1981 voltam ao local na final deste sábado

Alexandre Araújo e Leo Burlá Do UOL, no Rio de Janeiro Reprodução/Facebook

O que você faria para ver, no estádio, seu time ser campeão da Libertadores? Nas últimas semanas, torcedores de Flamengo e Palmeiras se mobilizaram para marcar presença no Estádio Nacional, em Montevidéu, neste sábado, 27 de novembro de 2021. Há 40 anos, no entanto, em um mundo sem tantas facilidades como o de hoje, a capital uruguaia viu desembarcar um grupo de rubro-negros que havia enfrentado uma verdadeira epopeia para acompanhar a decisão.

Em 1981, a equipe de Zico, Júnior, Leandro e companhia lutou pelo título contra o Cobreloa, do Chile. No primeiro encontro, no Maracanã, vitória brasileira por 2 a 1. O título parecia encaminhado, e foi neste misto de esperança e euforia que um ônibus com torcedores do clube da Gávea partiu do Rio de Janeiro rumo a Santiago.

Se já não bastasse todos os previsíveis perrengues no trajeto, a inesperada derrota no Chile e o regulamento da competição fizeram com que a viagem durasse mais do que o imaginado — e tivesse desfecho justamente em Montevidéu, em jogo de desempate em campo neutro. À época, a odisseia acabou com final feliz.

"Estava todo mundo exausto. Na hora do segundo gol do Zico, que é o gol da minha vida, ninguém vibrou. Todo mundo desabou para chorar. Foi uma choradeira geral", lembra Francisco Moraes, um dos integrantes da trupe rubro-negra.

Além de Francisco Moraes, Claudio Cruz e Antônia Medeiros, a Tuninha, foram alguns dos torcedores que estiveram nesta saga pela estrada. Nesta semana, quatro décadas depois, os veteranos voltam à cidade onde viram o Flamengo levantar a primeira Libertadores e revivem as emoções de 1981.

Reprodução/Facebook
Reprodução
Zico comemora no primeiro jogo da final, no Maracanã

Vendeu o carro para alugar ônibus

O Flamengo disputou o título depois de ficar em primeiro no grupo da fase semifinal que tinha Deportivo Cali (Colômbia) e Jorge Wilstermann (Bolívia). Já o Cobreloa, passou por Nacional e Peñarol, ambos do Uruguai.

Em 13 de novembro daquele ano, no Maracanã, as equipes duelaram pela primeira vez. Com dois gols de Zico, e um de Merello, o Rubro-Negro venceu por 2 a 1, e estava a um passo de conquistar a América.

Claudio Cruz, um dos fundadores da torcida Raça Rubro-Negra, o irmão César e Francisco Moraes já haviam passado por bons bocados naquela campanha.

Para ver o segundo jogo da final, Cruz vendeu o carro para conseguir alugar um ônibus tendo Santiago como destino. O valor da transação do veículo cobriu metade do que era necessário e, para o restante, contou com o auxílio de George Helal e Márcio Braga, ex-presidentes do clube, e Beto Maia, ex-presidente da escola de samba União da Ilha.

"Vendi meu carro para colocar o ônibus que foi para o Chile e não me arrependo de nada. O Márcio Braga ia sortear uma passagem de avião, mas ao saber do ônibus, decidiu doar o valor, que, na época, dava três passagens. O Helal doou três passagens e o Beto Maia também ajudou. O valor da venda do carro que não foi usado, por causa dessas ajudas, foi o que sustentou muitos que foram sem dinheiro", recorda Claudio Cruz, aos risos.

Arquivo pessoal
Francisco Moraes na aventura atrás do Flamengo na Libertadores de 1981

O início da saga

Com a expectativa de liquidar a fatura na casa do adversário e conquistar a primeira Libertadores, 26 torcedores partiram do Rio de Janeiro, mais especificamente da porta do Maracanã, para a capital chilena. A viagem foi quase que também uma conquista do continente.

"Você não tem ideia o que foi a nossa saga. Saímos daqui na terça-feira, o jogo era na sexta-feira [dia 20]. Saímos da frente do Maracanã, passamos pelo Brasil, Uruguai, Argentina, e chegamos a Mendoza [no Chile] para subir as Cordilheiras dos Andes e sair em Santiago. O ônibus quebrou no meio da Cordilheira, voltamos para Mendoza, dormimos e, no dia seguinte, voltamos à estrada. Chegamos a Santiago às 20h e o jogo era 21h. Você imagina alguns rubro-negros no meio da torcida deles", lembra Francisco Moraes.

Ainda na Argentina, próximo a Mendoza, mais um obstáculo. O país, assim como outros da América Latina, atravessava uma ditadura militar, e as cores vermelha e preta, que identificam o Flamengo, não foram, digamos, bem interpretadas.

Houve um problema na divisa, quase na cordilheira. Eles disseram que vermelho e preto era ligado ao comunismo, terrorismo. O pessoal estava enrolado na bandeira e eles queriam prender. Passamos esse sufoco, mas valeu a pena.

Tuninha, torcedora rubro-negra, sobre a passagem pela Argentina em ditadura em 1981

Arquivo pessoal
Claudio Cruz esteve no jogo do Chile: "Muitos de nós ficamos feridos"

Pancadaria no Chile

Com o dinheiro curto, os rubro-negros deixaram de lado até mesmo a fome e a sede para completar a viagem. Ao finalmente chegar ao Estádio Nacional, o problema foi a ira da torcida adversária. Aquele jogo ficou marcado pela violência utilizada pela equipe do Cobreloa em campo. Na arquibancada, a história não foi muito diferente. Vale ressaltar que, à época, o país vivia sob a ditadura militar do general Pinochet.

"Levamos pedrada, latada.. Jogavam a lata cheia. Até hoje tenho uma cicatriz na testa", conta Tuninha.

"Eles tacavam as latas fechadas, cheias, para ficar mais pesadas. Muitos de nós ficamos feridos. Imagina aquele miolinho de gente no meio deles. Uma hora, tacaram um pão duro, não sei de onde saiu, e um dos nossos colegas pegou e comeu (risos). Aí eles ficaram malucos", disse Claudio Cruz.

O gol de Merello, já nos minutos finais da partida, garantiu o resultado positivo ao Cobreloa e foi um balde de água fria, forçando a mudança de planos. Com uma vitória para cada lado, o regulamento previa um jogo desempate. "Graças a Deus tinha direito a jogo extra. Acho que se não tivesse, ninguém saia de lá vivo", recorda Tuninha.

Na época, era ditadura (no Chile). A polícia deles nos cercou, mas apanhamos. Apanhamos muito. Era tapa na cara, laranja, lata... Jogavam fruta, a gente pegava e comia, todo mundo com fome.

Francisco Moraes, torcedor flamenguista, sobre as dificuldades dos brasileiros no jogo de Santiago

Reprodução

Caravana perdeu dez torcedores antes do título

Após a partida no Chile, e superado os conhecidos problemas para deixar o estádio — quando estavam no ônibus, foram ouvidos tiros —, o grupo fez todo o caminho de volta até Buenos Aires.

Dos 26 que iniciaram a jornada, dez não tinham como continuar por questões financeiras. Os outros 16, então, partiram para Montevidéu para acompanhar o jogo que aconteceria três dias depois, no limite das forças, como relata Moraes:

Quando saímos daqui [do Rio], ninguém tinha previsão de ir para o Uruguai, achávamos que íamos ganhar lá. Não teve jogo, né? Foi porrada. Às 3h da manhã fomos para o ônibus, voltamos para a Cordilheira dos Andes, atravessamos, fomos para a Argentina. De Buenos Aires, só 16 desta caravana tinham condições de ir para o Uruguai. Atravessamos de barco para Colônia de Sacramento e, de lá, pegamos o ônibus até Montevidéu. Chegamos na véspera do jogo, todo mundo morto, exausto."

Mas quem teve verba e energia para chegar ao fim acabou testemunhando a história. Em campo neutro, prevaleceu a qualidade técnica do time do Flamengo, com Zico novamente sendo o carrasco dos chilenos. Com dois gols do Galinho, maior ídolo da história do clube, o Rubro-Negro venceu por 2 a 0 e garantiu seu primeiro título da Libertadores. Por isso, o ingresso virou relíquia para quem foi a Montevidéu.

Taís Vilela/TV UOL

Memórias de um repórter

Enviado especial de "O Globo" para a decisão no Centenário, Renato Maurício Prado, hoje colunista do UOL Esporte, recordou o ambiente que cercou a decisão.

Na véspera da finalíssima, o diário carioca relatou os dias entre os jogos no Chile e no Uruguai, e evidenciou os danos causados pela equipe chilena.

"Quem passasse pelos corredores do segundo andar do Hotel Sheraton, ontem pela manhã, certamente pensaria estar caminhando diante de portas de um autêntico hospital. Gritos, gemidos e lamentos formavam quase que um só coro", escreveu Renato, em reportagem datada de 21 de novembro.

O clima de guerra vivido em Santiago contagiou os dirigentes do Fla, que prometeram ingressos grátis para os rubro-negros que fossem ao terceiro jogo, em promessa também estampada nas páginas do jornal.

Renato Maurício Prado não esconde a satisfação profissional (e pessoal) de ter visto de perto a façanha da "máquina" rubro-negra.

Sobre a final em Montevidéu, o que posso lembrar era o clima de imensa revolta pelo que acontecera em Santiago do Chile. As covardes agressões de Mario Soto, a polícia atiçando os cães em cima dos jogadores. Havia um desejo muito grande de vingança. Mas a ordem era que fosse primeiro na bola. Depois no pau. E foi o que se viu. Alma lavada. O Flamengo de Zico foi em sua época, de fato, o melhor time do mundo. Era uma máquina de jogar futebol-arte. Uma das maiores de todos os tempos.

Renato Maurício Prado, repórter de "O Globo" na decisão no Uruguai em 1981

Divulgação

O retorno em 2021

Foram 38 anos de espera, mas o Flamengo voltou a disputar uma final de Libertadores em 2019, bem na edição em que a Conmebol criou a final única. Então, no Estádio Monumental de Lima, no Peru, o Rubro-Negro encarou o River Plate — sagrou-se campeão ao vencer de virada, por 2 a 1, com dois gols de Gabigol.

Tuninha, desta vez, foi de avião, e fez uma escala no Chile, antes de chegar à capital peruana. "Quando o piloto falou que estávamos sobrevoando a cordilheira, olhei pela janela, olhei aquilo tudo que fizemos de ônibus, e fui chorando. Eu imagino, agora, a emoção que será entrar no Centenário. Não sei como vai ser, mas já me emocionei quando comprei o ingresso e vi 'Estádio Centenário, Montevidéu'."

Agora, quarenta anos depois daquela viagem, Claudio, Tuninha e Moraes vão retornar ao palco do título sobre o Cobreloa. Apesar das boas lembranças, a decisão não parecer ter o mesmo peso da partida de Lima há dois anos.

"Aquele título foi o primeiro nosso, tem uma importância monstruosa. Acho que esse título agora, apesar de ser o tri, não vai conseguir ter a mesma importância que foi o primeiro e o segundo, que foi um bi, mas um bi maluco. [Em Lima] Eu achei que fosse morrer. Minha pressão subiu, tive febre", conta Claudio Cruz.

"Em 81, quando ganhamos, achava que a gente ganharia três, quatro anos seguidos, e não aconteceu. Virou obsessão, e essa obsessão morreu em 2019. Ganhamos em Lima. Agora, é uma final de Libertadores? É, mas não é aquela obsessão que eu tinha como tinha em 2019. Vamos lá, e vamos ganhar. O Palmeiras hoje é o favorito, mas nós vamos lá, e decisão não se joga, decisão se ganha. Nós vamos lá e vamos ganhar", comenta Moraes.

De novo, mais de 2.300 km distante do Maracanã, a Nação Rubro-Negra se fará presente, sonhando com o mesmo desfecho mágico de 1981.

Conmebol/Divulgação Conmebol/Divulgação

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