Duas caras

Como a F1 fecha 2019 com domínio de Hamilton, audiência em alta e novas estrelas, mas segue em risco no Brasil

Julianne Cerasoli Colaboração para o UOL, em Londres (Inglaterra) Hoch Zwei/Action Plus/DiaEsportivo/Folhapress

A classificação final da temporada 2019 da Fórmula 1 teve Lewis Hamilton impressionantes 87 pontos à frente do segundo colocado, seu próprio companheiro de Mercedes, Valtteri Bottas. Rival mais próximo com um carro diferente, Max Verstappen terminou 135 pontos atrás, o equivalente a mais de cinco vitórias de diferença. Mas estes números não contam a história de uma temporada que começou com uma lavada da Mercedes e terminou com cinco pilotos diferentes vencendo as oito últimas etapas.

Como explicar o que aconteceu em 2019? Foi a Mercedes quem mais acertou na interpretação das novas regras a temporada — especificamente para as asas, que estrearam neste ano para diminuir a turbulência gerada pelos carros e servir como um aperitivo do que está por vir em 2021, quando uma mudança bem mais profunda será feita. Red Bull e Ferrari começaram o ano com carros nervosos, que só se tornaram competitivos com o desenvolvimento ao longo do ano.

Mas a temporada teve um ponto fora da curva. Mesmo quando não teve o melhor carro, Lewis Hamilton colocou sua consistência a prova e só ficou fora do pódio em três oportunidades - duas por erros dele mesmo, na Alemanha e no Brasil, e uma (em Singapura) por uma estratégia ruim da equipe. Pela terceira vez em quatro anos, Hamilton foi ao pódio em 17 das 21 corridas, uma consistência que nem Michael Schumacher conseguiu em seus cinco anos de domínio na Ferrari.

Ao mesmo tempo em que Hamilton foi quase perfeito em seu hexa, a temporada foi marcada ainda pelo alto nível de qualidade da nova geração. Não só Charles Leclerc e Max Verstappen deram trabalho correndo por equipes grandes, como também Lando Norris, Carlos Sainz e Alex Albon brilharam.

O cenário parece perfeito, mas esbarra em um detalhe: apesar de todos esses pontos positivos e de uma audiência em alta na televisão brasileira, a permanência da categoria nas telinhas brasileiras (pelo menos na TV aberta), corre risco por uma disputa entre Globo e a Liberty Media.

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Nasce uma lenda

Foi logo em sua segunda corrida pela Ferrari (e 23ª na F-1), no Bahrein, que Charles Leclerc conquistou sua primeira pole position. Ele só não ganhou a prova por um problema no motor italiano. Na corrida seguinte, já estava peitando a equipe via rádio, reclamando por estar perdendo tempo atrás do tetracampeão do mundo e companheiro de equipe Sebastian Vettel.

Ainda que Leclerc tenha cometido erros que custaram caro, como as batidas na classificação do GP do Azerbaijão e durante o GP da Alemanha, duas provas em que ele poderia ter vencido, e a falta de experiência tenha feito a diferença em momentos como o GP do México, quando ele aceitou passivamente a estratégia ferrarista enquanto estava liderando, os números de Leclerc falam por si: ele terminou sua primeira temporada por um time grande à frente de Vettel no campeonato, com mais vitórias (duas contra uma), mais pódios (10 x 9), mais voltas mais rápidas (4 x 2) e com mais pole positions que qualquer outro piloto do grid, batendo Vettel também em classificações (12 x 9).

Apesar de Leclerc ter sido superior, os números deixam claro que a disputa foi parelha, o que significou que os companheiros de Ferrari se encontraram diversas vezes na pista. Era como se eles estivessem ensaiando uma batida por todo o ano, até que ela aconteceu: a cinco voltas do final do GP Brasil. O chefe Mattia Binotto preferiu lavar a roupa suja internamente, e garante que a disputa interna é uma ótima notícia para o time de Maranello.

"Acho que foi bom que isso tenha acontecido neste ano porque, dessa maneira, pudemos conversar e isso serve para esclarecer melhor as coisas", explicou Binotto ao UOL Esporte. "Sabíamos que Charles era rápido porque tínhamos visto isso na academia da Ferrari. Foi ele quem fez o maior número de poles e isso faz dele uma boa referência para Seb. Ao mesmo tempo, Seb teve dificuldades com o carro no início do ano, mas sua confiança foi aumentando no final e ele passou a ser muito rápido nas corridas — muitas vezes mais rápido que Charles. E isso é uma boa referência para Charles. Continuo acreditando que é um bom problema para se ter."

Leclerc não foi o único piloto jovem que brilhou. Também aos 22 anos, mas fazendo sua quarta temporada pela Red Bull, Max Verstappen viveu seu melhor ano até hoje na categoria, com o terceiro lugar no campeonato, três vitórias e pela primeira vez largando na pole position. "Foi uma boa temporada para mim e estou muito contente com isso. Estamos crescendo como equipe e temos que pensar em lutar pelo título ano que vem", disse o holandês.

Mark Thompson/Getty Images/AFP Mark Thompson/Getty Images/AFP

Mais que um hexacampeão

Lewis Hamilton poderia estar focado em superar os números de Michael Schumacher, maior vencedor da história da Fórmula 1. Afinal, após conquistar o hexa e chegar a 84 vitórias na carreira, ele está perto dos sete títulos e 91 vitórias do alemão. Mas seu foco parece estar fora dos carros.

Durante todo o ano, enfatizou que quer usar o seu dom nas pistas para influenciar positivamente as pessoas. Para isso, abordou a representatividade dentro do esporte (tanto racial, quanto socioeconômica) e falou sobre cuidado com o meio ambiente, por exemplo.

Quando ele, um piloto de F-1, começou a levantar a bandeira da sustentabilidade, muita gente o criticou. Afinal, viajar o mundo todo disputando corridas em veículos movidos a combustíveis fósseis e cuidar do meio ambiente não seria um contrassenso? Não para ele. "O que me deixa muito feliz é que pelo menos estou iniciando a discussão a respeito disso. Eu nunca tinha sido perguntado sobre o assunto em toda a minha carreira e isso mudou agora, e é positivo. Eu respeito totalmente as pessoas que têm opiniões negativas porque eu sou piloto. Mas lembrem-se que, se eu não corresse e mencionasse essa questão, ninguém me ouviria. Faço o que eu faço porque amo, mas também porque acho que isso pode criar uma plataforma para eu gerar mudança."

Uma das formas que Hamilton usa para fomentar a sustentabilidade é por meio das coleções de roupas que ele tem assinado pela Tommy Hilfiger — que tem 40% de seus produtos feitos de material reciclado e tem como meta chegar a 100% no quarto ano da parceria — e usando produtos veganos. Com isso, além de se diferenciar por conta das bandeiras que levanta, o inglês de 34 também vive uma vida diferente de seus rivais. "Estou fazendo duas carreiras em uma. Eles vão para casa, treinam, chegam nas corridas cedo. E minha vida é insana! Chego em cima da hora porque tenho coisas diferentes para fazer, mas isso é bom para mim". Dois anos depois de começar a se dividir entre as passarelas e as pistas e mantendo o alto nível, não é de se duvidar que realmente seja.

Reuters/Hamad I Mohammed Reuters/Hamad I Mohammed

Audiência aumenta, mas F1 corre risco na TV brasileira

A TV Globo observou um aumento expressivo na audiência da Fórmula 1 ao longo da temporada, especialmente depois que a Mercedes deixou de dominar as corridas, a partir do GP da Áustria, no início de julho. Segundo dados do Painel Nacional de Televisão (PNT), 98 milhões de pessoas viram as corridas ao longo do ano, o que representa um aumento de 13% em relação ao ano passado — o maior em oito anos.

Naquela época, o país tinha dois representantes no grid, Felipe Massa e Bruno Senna. Desde o ano passado, quando já tinha sido registrado um aumento, o Brasil não tem nenhum piloto no grid — e as perspectivas de aumento não são animadoras.

A TV Globo já vendeu suas cotas de patrocínio para o ano que vem, mas ainda há incertezas quanto ao futuro da F1 na TV aberta. O compromisso atual para transmitir a categoria vai até o final de 2020, mas a proposta financeira que a emissora fez não foi aceita pela Liberty Media, a dona do evento.

A notícia é ruim não apenas para os fãs de automobilismo, mas para a própria categoria. O país é um dos poucos em que a F1 é produto de TV aberta e a Globo tem a maior audiência entre todos os parceiros da Liberty Media — em 2018, por exemplo, as corridas atingiram 115,2 milhões de espectadores, número muito acima da segunda colocada, a China, com 68 milhões.

Mark Thompson/Getty Images/AFP Mark Thompson/Getty Images/AFP

A volta da Honda e da McLaren

Eles sonhavam com a volta das vitórias ao reeditar uma dupla que dominou a Fórmula 1 no fim dos anos 1980. Mas foi preciso que McLaren e Honda escolhessem trilhar caminhos diferentes para que ambos voltassem a ser competitivos.

A McLaren, por exemplo, precisou passar por uma reestruturação interna. Mas, quando completou o processo, se desgarrou do meio do pelotão neste ano e conseguiu uma tranquila quarta posição no mundial de construtores, batendo a sua fornecedora de motores, a Renault.

Parte disso teve a ver com o carro, mais equilibrado, mas as performances dos jovens Carlos Sainz, de 25 anos, e Lando Norris, de 20, superaram as expectativas. Isso, junto de uma equipe que errou muito pouco ao longo do ano, faz o time sonhar alto para 2021, quando voltará a ter o motor Mercedes. Por enquanto, serve o "consolo" do primeiro pódio em 118 corridas, conquistado por Sainz (depois de ter largado em último) no GP Brasil.

"Muita coisa mudou na equipe, ainda que as mesmas pessoas tenham permanecido. Precisamos resetar, ter mais foco e uma nova liderança, e é por isso que Andreas Seidl assumiu. Todos estão empolgados novamente em trabalhar pela McLaren e o trabalho em equipe está surtindo efeito. Ainda falta muito, porque a diferença para as grandes equipes é grande demais para ser tirada em 2020, mas é um ótimo começo", disse o CEO da McLaren, Zak Brown, ao UOL Esporte.

Com a Honda o processo foi parecido. Depois de três anos sofrendo com a antiga parceria e um ano "escondida" com a Toro Rosso no meio do pelotão, o motor japonês superou a Renault e encostou nos antes imbatíveis Mercedes. Como resposta para a aposta de risco que a Red Bull fez ao optar pela Honda, parece que o propulsor continua a melhorar, enquanto os rivais estagnaram.

Isso foi comprovado com resultados em 2019: três vitórias, todas com Max Verstappen, e duas poles positions, um feito para quem ficava devendo principalmente em classificações até a primeira parte deste ano. E pensar que poderiam ter sido mais, com Verstappen chegando perto de bater Hamilton em Mônaco e na Hungria, e sofrendo uma punição no México. Foi o suficiente, contudo, para a Honda assinar a extensão de seu contrato além de 2020 e fazer o holandês sonhar em título.

Clive Mason/Getty Images/AFP Clive Mason/Getty Images/AFP

E em 2020? Teremos a mesma competitividade?

"Tentamos tornar as coisas emocionantes no final", diz Toto Wolff, o chefe da Mercedes, com um sorriso enigmático. Até a temporada 2020 começar, não dá para saber se ele está brincando ou blefando. Por um lado, o regulamento se mantém estável, então a tendência lógica seria que a realidade das últimas corridas seja a mesma do começo do ano que vem.

Por outro, muita água pode rolar no desenvolvimento até lá, como lembra Max Verstappen. "Nós podemos melhorar e sabemos onde podemos melhorar, mas os outros não são idiotas. Temos que trabalhar muito para diminuir a vantagem deles. Mas acho que as últimas corridas foram muito positivas."

Wolff, porém, faz outra ponderação importante: em 2021, o regulamento da F-1 muda completamente e, depois disso, será implementado um teto de gastos que vai impactar diretamente as grandes. Então, a maior dificuldade será entender quando colocar mais recursos no próximo projeto.

"Acho que, neste ano, tivemos um começo muito bom e a Ferrari teve azar. E vamos tentar fazer isso novamente ano que vem. Mas também será um ano muito influenciado por 2021". Com um pé no ano que vem e outro em 2021, a Fórmula 1 pelo menos tem uma certeza: 2019 só comprovou que o futuro da categoria está em boas mãos.

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