A viagem do quase

Em excursão à África e à Europa em 1960, Ferroviária esteve perto de trazer Eusébio, o Rei Africano do Futebol

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Robert Stiggins/Getty Images

Alguém pode imaginar um jogo do Campeonato Paulista de 1960 entre Santos e Ferroviária com dois reis em campo? Pelé e o moçambicano Eusébio, o primeiro Rei Africano do Futebol?

Pode parecer delírio, mas quase aconteceu, porque a vida é cheia de histórias que se assemelham a contos de fada. E não há nada mais pueril do que o sonho de um menino em se tornar um jogador de futebol, depois vestir a camisa de um time de verdade e se tornar um astro mundial. E é aí que entra o destino: dando o talento, o drible, a velocidade, os gols, um grupo de moleques bons de bola e todo o resto até a consagração. Acreditem: Eusébio da Silva Ferreira, o primeiro monarca do futebol da África, o grande Eusébio do Benfica e da seleção portuguesa, esteve muito perto de realizar toda a sua trajetória futebolística no Brasil.

Há 60 anos, a Pantera de Moçambique poderia ter se transformado na Pantera de Araraquara, no interior de São Paulo, e se incorporado a um time de sonhos da Ferroviária.

E quem vai nos ajudar a contar essa história verdadeira e romanceada é o volante Dudu, o ponta-esquerda Benny e o ponta-direita Eusébio Bonifácio, xará de nosso personagem principal. Todos foram integrantes do time da Ferroviária que realizou uma excursão pelos continentes europeu e africano, convulsionados pelas lutas de independência africana contra o domínio colonial português, em 1960.

Robert Stiggins/Getty Images

Eusébio brasileiro quase ficou de fora da excursão

Depois de uma gloriosa campanha no Campeonato Paulista, em que alcançou uma surpreendente terceira colocação — somente atrás de Palmeiras e Santos —, a equipe de Araraquara, com apenas dez anos de existência, recebeu um convite para excursionar por Europa e África.

O técnico do time era o ex-jogador José Carlos Bauer, o "Monstro do Maracanã", jogador das seleções brasileiras nas Copas de 50 e 54. A forte equipe grená contava ainda com o goleiro Rosan, o volante Dudu (aquele da Academia palmeirense) e, no ataque, o temido trio composto por Baiano, Bazzani e Benny: os três Bês. No grupo, havia ainda um menino de 17 anos chamado Eusébio, nascido em Tabatinga, no interior de São Paulo. Ele era uma das dúvidas da delegação araraquarense porque já havia dois ponteiros no grupo, um deles Amaral, emprestado pela Portuguesa.

"Mas eu já tinha nome na cidade, porque tinha marcado o primeiro gol na inauguração dos refletores do campo da Ferroviária, a Fonte Luminosa, contra a Ponte Preta, em 1958", relembra, com sua memória prodigiosa Eusébio, aos 78 anos, em sua casa na Vila Xavier, em Araraquara. "Quando fiz o gol, eu tinha 15 anos, e meu pai teve de assinar a autorização para que eu entrasse em campo. Chovia muito, o goleiro da Ponte Preta ficou com o pé atolado na areia da grande área e eu cheguei primeiro na bola e de carrinho mandei para a rede".

Quis o destino que o garoto também embarcasse com a delegação. Dias antes da viagem para a Europa, no final de março de 1960, os jogadores da equipe grená estavam em São Paulo, providenciando a documentação, quando Caxambu, que era o técnico da Portuguesa, chegou ao hotel e disse que Amaral não poderia mais viajar: o clube precisava dele.

Foi aí que eu ganhei um lugar definitivo na excursão. Lembro como se fosse hoje que o Amaral chorou, mas deu um dinheiro para que nós trouxéssemos para ele um cordão de ouro, que ele queria comprar para o seu pai, que era português

Eusébio Bonifácio, ex-ponta-direita da Ferroviária

ARQUIVO PESSOAL/BENNY GUAGLIARDI

13 dias no Oceano Atlântico

Com o grupo fechado, a Ferroviária embarcou no porto de Santos, no dia 1º de abril, no transatlântico argentino Salta. Foram até o Rio de Janeiro e de lá até a Ilha da Madeira.

"Eu nunca tinha andado de canoa, imagine treze dias só com céu e mar. Foi uma aventura", conta Eusébio, como se a viagem tivesse ocorrido recentemente. "Desembarcamos em Funchal no dia 13 de abril e já estreamos no dia seguinte contra o Nacional. Ganhamos de 4 a 3. Depois, batemos o Marítimo por 2 a 0". Teve a revanche contra o Nacional e nova vitória: 2 a 0. "Eu era reserva, mas o nosso time era muito bom: Rosan, Purunga e Antoninho; Dirceu, Rodrigues e Cardarelli; Miranda, Dudu, Baiano, Bazzani e Benny".

O time ganhou do Belenenses, do técnico brasileiro Otto Glória. Venceu o Futebol Clube do Porto por 2 a 0, em pleno Estádio das Antas, e só perdeu uma partida para o Sporting por 1 a 0. Na revanche, empate em 1 a 1. "Foram quinze dias em Lisboa e aí nós fomos de avião para a Espanha onde jogamos com o Atlético de Madrid, com empate por 1 a 1. E de lá fomos para Moçambique. Eu me recordo direitinho que atravessamos uma tempestade e eu estava sentado ao lado do Miranda. A gente pensava que ia morrer. A gente brincava que a estrada estava cheia de buracos", diverte-se o Eusébio de Tabatinga.

ARQUIVO PESSOAL/BENNY GUAGLIARDI

A Moçambique de Eusébio

O time da Ferroviária chegou à África Portuguesa cheio de cartaz. Lá, a fama aumentaria com 11 vitórias nos 11 jogos disputados. "Nosso time era muito ajeitado e o Bazzani jogava muito. Era o craque da equipe", recorda o ponta-esquerda Benny, que está com 83 anos e mora em São José do Rio Preto, no interior paulista. "E eu também fazia os meus gols de vez em quando".

A chegada a Moçambique ia revelar aos jogadores brasileiros um menino com um futebol diferenciado, veloz, com dribles insinuantes e chutes fortes e certeiros. O garoto bom de bola era morador de um bairro que ficava nos arredores da capital Maputo, que na época se chamava Lourenço Marques — nome de um navegador e explorador português do século 16. Nesse bairro, chamado Mafalala, as casas eram bem humildes, construídas com blocos, madeira e folhas de zinco.

Era o bairro cultural da Província Ultramarina Portuguesa de Moçambique — era assim que o país se chamava. Ali, nasceram o poeta José Craveirinho (1922-2003) e os futuros presidentes e líderes guerrilheiros Samora Machel (1933-1986) e Joaquim Chissano (atualmente com 81 anos).

No local, havia um campinho e um grupo de meninos que defendia o Futebol Clube dos Brasileiros. Um dos fundadores da equipe era Eusébio. Na época de fundação do FC dos Brasileiros, ele tinha 15 anos e já se destacava pelos gols que marcava. Se fosse preciso, fugia das aulas para jogar. O sonho dele nesta época era jogar na equipe do Deportivo, que era uma filial do Benfica. O fato de ser negro dificultava sua entrada no clube. Não jogava no Deportivo sob a alegação de que tinha uma contusão no joelho.

ARQUIVO PESSOAL/BENNY GUAGLIARDI

Quando a Ferroviária chegou à capital moçambicana em 1960, Eusébio já era uma personalidade local. Enquanto Samora Machel se envolvia com a política e dava os primeiros passos para a criação da Frelimo (Frente da Libertação de Moçambique), Eusébio fazia gols. Samora foi para o território de Tanganica (posteriormente anexado à Tanzânia) juntar-se aos guerrilheiros em 1962, enquanto Eusébio, nessa época, já se tornava ídolo no Benfica.

Foi esse o ambiente que a delegação da Ferroviária o encontrou. "Ele era bom de bola. Era magrinho, depois encorpou. Eu acompanhei o seu sucesso na seleção portuguesa. Era para ele vir para Araraquara com a gente. Não veio pelo seguinte: eu vou contar direitinho essa história, porque eu estava lá", conta o Eusébio de Taguatinga.

A Ferroviária deu aula de futebol em todos os adversários que encontrou pela frente. Mas o "Eusébio jogava na equipe do Ferroviário de Moçambique, e nós vencemos a partida contra eles por 3 a 1. O jogo foi num estádio que não era bem um estádio: era um terrão, nem tinha alambrado, mas ficou lotado para ver a partida. O gol moçambicano foi marcado por ele".

Convite quase de brincadeira

Segundo o Eusébio brasileiro, foi Bazzani quem perguntou meio de brincadeira se o moçambicano de 1,75 e muita velocidade gostaria de jogar no Brasil pela Ferroviária. "E sabe o que o Eusébio respondeu? 'Eu quero sim ir para o Brasil, aqui eu sou amador, quero ir'. E a conversa ficou nisso".

À noite, no hotel em que a delegação araraquarense estava na capital moçambicana, o Eusébio brasileiro estava na portaria quando viu um menino perguntar por Bazzani. "O Bazzani estava jantando e eu reconheci que aquele menino, com roupas bem modestas, era o jogador do time de Moçambique que nós tínhamos enfrentado. Ele era bem pobrezinho, se via pelos seus trajes. Eu expliquei que o Bazzani estava jantando e falei para ele esperar um pouco".

Foi então que o Eusébio brasileiro foi até o refeitório e falou com Bazzani. "O menino está aí na porta. E o Bazzani resolveu contar a história para o técnico Bauer. E o Bauer, com sua vivência e experiência, foi com o Bazzani e comigo até a portaria. Ali, eu ouvi ele dizer ao Eusébio de Moçambique que ele era ainda muito novo, que seria difícil conseguir a documentação para levá-lo ao Brasil naquele momento, que ele era menor de idade". Eusébio moçambicano escutava.

Teve uma hora em que ele disse que queria ir assim mesmo, que era muito pobre, que fossem falar com a família dele, pedir permissão. Mas a história parou aí. O seu Bauer prometeu que iria procurar um time português para indicar a sua contratação. Seria mais fácil e conveniente

Eusébio Bonifácio, ex-ponta-direita da Ferroviária

ARQUIVO PESSOAL/BENNY GUAGLIARDI

Faltou dinheiro ou mãe de Eusébio não deixou?

O Eusébio brasileiro nos contou essa história agora no dia 27 de setembro. Mas nos "Grandes Momentos do Esporte", programa da TV Cultura, em 1994, o grande Bauer tinha falado da excursão da Ferroviária e da participação marcante do Eusébio moçambicano nos jogos contra a equipe araraquarense. Ele jogava por várias equipes locais.

"Nos ganhávamos de 8 a 3, um cidadão ia lá e fazia os três gols. Ganhávamos de 5 a 2 e o cidadão voltava e tal. Aquilo me chamou a atenção. De novo esse moço vai jogar contra a gente? Ele apareceu em todos os jogos. Fiz amizade com alguns portugueses que estavam por lá e disse a eles do meu contentamento em ver um grande jogador em ação. Aí eles me disseram: 'Se quiser, ele vai para o Brasil, nós o arrumamos para você'. Falei: 'Pô, vocês estão brincando'. Passaram-se alguns dias e falaram que estava tudo certo e poderia levar o jogador. Falei com dois dirigentes da Ferroviária, um era o tesoureiro e o outro era o chefe da delegação, dizendo a eles que, se a Ferroviária quisesse, tínhamos um grande jogador para trazer para o Brasil. Mas disseram que tinham dificuldades financeiras, muitos problemas, então o jogador ficou". E assim foi.

Ou foi quase assim. O jornalista araraquarense Alessandro Bocchi, pesquisador como poucos da história da Ferroviária e do futebol do interior, escutou ao menos três vezes da boca do próprio ídolo Bazzani que o técnico Bauer e o tesoureiro da delegação, seu Orlando Luzia, tentaram, mas não conseguiram convencer a família do Eusébio, principalmente sua mãe, Elisa Anissabene, a trazê-lo para o Brasil.

O Bazzani me disse que, embora não estivesse em um grande centro do futebol mundial, o Eusébio já era visto como um fora de série e que já havia pessoas, além da família, que tratavam das propostas financeiras. O Bazzani me disse ainda que nem o Bauer nem o seu Orlando conseguiram convencer os familiares do jogador que ainda ia completar 18 anos

Alessandro Bocchi, jornalista e pesquisador da história da Ferroviária

PA Images/PA Images via Getty Images

Sem lenço e sem documentos

Dudu, parceiro de Bazzani na Ferroviária e depois de Ademir da Guia, no Palmeiras, na época era meia-direita e marcou Eusébio em 1960 nos campos de terra de Moçambique. E, aos 81 anos, conta outra versão para a história. "A equipe da Ferroviária naquela época era muito boa. Fomos terceiros no Campeonato Paulista, e os times do Eusébio que nós enfrentamos em Lourenço Marques não eram lá times, digamos, profissionais. Então, o Eusébio sozinho não poderia mesmo fazer muita coisa contra a gente". Modesto, Dudu não admite que, aos 21 anos, anulou o também jovenzinho Eusébio.

Ele já jogava muito bem e construiu uma história maravilhosa no futebol. Era para ele ter vindo para o Brasil, sim, com a gente, mas a verdade é que nosso chefe e o seu Bauer tentaram trazê-lo, mas sabe o que aconteceu? O Eusébio não tinha documentos. Só por isso é que não veio com a delegação".

E a delegação deixou a África sem Eusébio, depois de uma goleada incrível contra a seleção sul-africana do Transvaal, por 12 a 0, no dia 19 de junho.

Recomendação de Bauer

Segundo reportagens da época, os empresários responsáveis pela excursão, sumiram com o dinheiro. E a Ferroviária precisou da ajuda da Federação Paulista de Futebol, que enviou as passagens aéreas para que o grupo retornasse ao Brasil.

"A gente já tinha jogo na chegada, contra o Botafogo de Ribeirão Preto, e, por isso, um dia antes do embarque, treinamos no campo do Belenenses. Quando eu entrei em campo, vi o seu Bauer conversando com o seu Otto Glória, que era o técnico da equipe portuguesa. Foi quando o seu Bauer me chamou e falou: 'Conta para o seu Otto como joga o Eusébio de Moçambique'. E eu disse: 'o menino é muito bom. Se for lapidado, vira um craque'", relata o Eusébio brasileiro.

Dudu, novamente, conta uma versão um pouco diferente. "Quando saímos de Moçambique, paramos em Lisboa porque tinha a conexão lá. Ficamos alguns dias, e o seu Bauer, que conhecia o técnico Bella Guttman dos tempos de São Paulo Futebol Clube, falou para ele do menino Eusébio. Recomendou a contratação".

Se a verdade for a do Eusébio brasileiro, seu Otto Glória, que dois meses depois assumiria o Benfica, anotou tudo que Bauer lhe contou no treinamento no campo do Belenenses. E meses depois, a vida do menino de Moçambique mudou totalmente.

ASSOCIATED PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO ASSOCIATED PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Alessandro Sabattini/Getty Images

Glórias do Rei Africano do Futebol

Dali em diante Eusébio virou deus no Benfica. Foi campeão europeu, ganhou a Bola de Ouro, marcou 896 gols, foi o artilheiro da Copa do Mundo de 1966, com nove gols e, mais, ajudou Portugal a eliminar o Brasil de Pelé, por 3 a 1, no Mundial da Inglaterra. Transformou-se no primeiro Rei Africano do Futebol.

No ano de 1985, com Samora Machel como presidente de Moçambique, o craque Eusébio visitou sua terra. Foi recebido no Palácio da Ponta Vermelha, em Maputo. E ouviu o presidente se lembrar dos tempos em que moravam em Mafalala e em que um era enfermeiro e outro jogador do Clube dos Brasileiros. Os dois sonhavam: um com liberdade, o outro, com gols.

Samora Machel e Eusébio, que morreu em 2014, aos 71 anos, entraram para a história do mundo: um na política de libertação, e o outro na magia do futebol.

Já a Ferroviária, do nosso Eusébio, retornou da excursão com resultados incríveis e uma bagagem cheia de presentes. Um deles, o cordão de ouro que o goleiro Fia trouxe para o pai do ponta Amaral, que a Portuguesa não deixou viajar. O grupo também voltou com muitas histórias para contar, sendo esta, do Eusébio sobre o Eusébio, a mais saborosa de todas.

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