Espírito de porco

Mortes de dois jogadores do Corinthians e um veto do Palmeiras mudaram a rivalidade para sempre

Lucas Musetti Perazolli Do UOL, em Santos (SP) Acervo/Memorial Corinthians

A morte de dois jogadores do Corinthians em 28 de abril de 1969 mudou a rivalidade com o Palmeiras para sempre. O lateral-direito Lidu e o ponta-esquerda Eduardo não resistiram a um acidente de trânsito na Marginal Tietê, em São Paulo.

A dupla era destaque do Timão, e o velório levou mais de 30 mil pessoas ao Parque São Jorge. O Palmeiras, que viria a ser vice-campeão do Paulistão daquele ano, foi contra a permissão para que o Corinthians inscrevesse dois novos jogadores no torneio.

A postura irritou o presidente alvinegro, Wadih Helu, que afirmou que o maior rival teve "espírito de porco". A declaração foi o ponto de partida para uma separação clara dentre os que usam preto e os que usam verde. O animal passou a ser associado de maneira pejorativa ao Palmeiras.

Os dois clubes se enfrentam hoje (3), mais de 50 anos depois daquele episódio, em Itaquera, um lugar em que o verde não é permitido. Do lado do Palmeiras, a torcida que assistirá ao duelo de casa levou quase duas décadas para absorver e transformar o porco em sua principal mascote.

Acervo/Memorial Corinthians
Reprodução

Como foi a votação

Os 14 clubes do Campeonato Paulista se reuniram cinco dias depois do acidente para analisarem o pedido do Corinthians. Era necessária unanimidade para que o clube alvinegro pudesse inscrever dois novos jogadores no lugar dos atletas mortos.

Os relatos dos jornais da época apontam que nove clubes disseram "sim" ao Timão antes do "não" do Palmeiras. Só faltavam os votos do Santos, São Paulo e XV. O diretor de futebol do Palmeiras, José Gimenez Lopes, foi quem negou a autorização ao Corinthians. Ele alegou que o pedido deveria ter sito feito antes para Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da CBF), além da Fifa.

"Se eu não quebrasse a provável unanimidade, estaria admitindo as modificações pretendidas e que poderiam não ter legitimidade perante órgãos superiores" José Gimenez Lopes

"Jogaremos com o que tivermos", lamentou Elmo Franchini, diretor do Corinthians à época.

O Timão, antes com 12 vitórias em 15 jogos, caiu de produção, perdeu para Palmeiras, Santos e São Paulo e acabou eliminado no quadrangular final.

"Todo mundo sabe que o Corinthians perdeu o campeonato quando perdeu Lidu e Eduardo", comentou Helu, um mês depois.

No dia 11 de maio, no Morumbi, um porco foi solto no estádio por um torcedor do Corinthians, o que fortaleceu ainda mais o apelido do Palmeiras.

O Palmeiras já era chamado de porco por ser o Palestra Itália, e os italianos eram chamados de porcos na época do fascismo. Com o espírito de porco em 1969, o apelido foi acentuado. E pegou entre todas as torcidas rivais"

Fernando Wanner, historiador do Corinthians

Palmeiras contesta a história

O UOL conversou com Fernando Galuppo, estudioso recomendado pelo Palmeiras. O jornalista tem uma versão distinta de quase todos os relatos da época. Ele entende que o Verdão não teve "espírito de porco".

"Em poucos minutos, sendo o primeiro a se manifestar, José Gimenez Lopes apenas apontou aos presentes o que dizia a regra. Os demais clubes nem mesmo se manifestaram, apoiando a objeção do representante palmeirense por omissão. E dessa forma a reunião foi finalizada".

O historiador aponta que Ernani Matarazzo, outro diretor do Palmeiras, esteve no funeral. A preocupação palmeirense seria decidir sem anuência da CBF e Fifa. Galuppo cita uma situação parecida vivida pelo Verdão para justificar a postura do clube.

Em 1966, o lateral Luis Carlos e o meia Suingue, que mais tarde jogaria pelo Corinthians, também sofreram um acidente de carro. Luis morreu e Suingue teve graves lesões. Naquela ocasião, contudo, o Palmeiras não pediu para que novos jogadores fossem inscritos.

"Não houve exceção para novos inscritos do Palmeiras, bem como pedidos formais para que isso acontecesse", disse o historiador.

A versão palmeirense é contestada pelo lado alvinegro. Fernando Wanner, historiador do Corinthians, acusa o Palmeiras de tentar fazer revisionismo sobre o caso.

"Não podemos brigar com os fatos. Há relatos da imprensa e entrevistas da época que comprovam a atitude do Palmeiras".

Acervo/Memorial Corinthians Acervo/Memorial Corinthians

O acidente

Lidu e Eduardo, de 22 e 25 anos respectivamente, viviam seus melhores momentos na carreira. Eles eram titulares e, inclusive, cotados para a Copa do Mundo de 1970.

O Corinthians havia empatado com o São Bento, em Sorocaba, e dado folga para o elenco jantar, com horário marcado para o retorno ao Parque São Jorge. Nessa escapada, Lidu levou Eduardo de fusca para o restaurante Recreio Chácara Souza, na zona norte paulistana. A tragédia ocorreu na volta do estabelecimento.

Lidu, com a carta de motorista há apenas quatro meses, teria errado uma entrada e, para evitar choque com um poste, subiu no canteiro central da Marginal Tietê e perdeu o controle do seu Fusca caramelo a mais de 80 km/h. O carro foi saqueado, mas os pertences acabaram devolvidos para as famílias posteriormente.

Os dois foram levados ao Pronto-Socorro de Santana, mas já chegaram sem vida por volta de 0h30. O velório, com milhares de torcedores no Parque São Jorge, ocorreu antes dos enterros de Lidu em Presidente Prudente e de Eduardo no Rio de Janeiro.

O fusca foi encontrado no sentido oposto ao caminho do Parque São Jorge, o que, na época, gerou distorção nos relatos da imprensa. As testemunhas ajudaram a elucidar que o carro capotou e foi para o outro lado, mostrando que os jogadores voltavam para a sede do Corinthians, conforme o combinado.

A Folha de S.Paulo apontou que Lidu "teria se distraído momentaneamente e só no último momento percebeu o ligeiro desvio da pista para a esquerda. Para evitar a guia e o poste que surgiam, desviou o carro bruscamente para a esquerda, perdendo seu controle, subindo no canteiro que separava as duas pistas, capotando e indo parar na pista de mão sentido contrário".

ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
Rivellino não aceitou a carona no Fusca de Lidu

O ídolo se salvou

As notícias de 1969 mostram que Roberto Rivellino foi convidado para o jantar no restaurante antes do acidente fatal de Lidu e Eduardo.

O UOL procurou Rivellino, que não respondeu aos contatos. A irmã de Eduardo, Libania Neves de Castro, confirmou a história.

"O Rivellino era noivo, não podia ficar saindo. Dava umas escapadas, mas geralmente não saía. Foi por isso que ele não foi no restaurante".

Eduardo era casado há quatro meses, mas não tinha filhos nem carro. Ele aproveitou a carona de Lidu após passar em casa e dar um beijo na esposa.

"O Lidu tinha acabado de conseguir a carteira de motorista e comprado um Fusca com o primeiro grande dinheiro que ganhou. Eles tinham sido liberados pelo técnico após um empate com o São Bento e tinham ido comer, com hora para voltar. Devem ter tomado uma cervejinha e morreram na volta nessa tragédia", explicou a irmã do Eduardo, ao UOL.

Yasmin Ayumi / Arte UOL Lidu (esquerda) e Eduardo (direita) viviam ótimos momentos no Corinthians antes do acidente

Lidu (esquerda) e Eduardo (direita) viviam ótimos momentos no Corinthians antes do acidente

A vida seguiu

O Corinthians pagou os salários de Lidu e Eduardo até o fim do contrato, além de manter a estadia no Parque São Jorge para as famílias dos jogadores.

O Timão manteve até os bichos, tradicional pagamento previsto em vitórias. Quando o contrato acabou, os familiares de Lidu e Eduardo voltaram para as suas cidades.

A irmã Libania afirma que a esposa de Eduardo ficou muito abalada e nunca mais se casou. Libania, inclusive, é esposa do irmão da viúva, mas tem pouco contato com a cunhada Ester de Castro.

Como a família de Eduardo é do Rio de Janeiro e a de Lidu é de Presidente Prudente, eles perderam o vínculo após o fim do contrato com o Corinthians, em 1971. "Na época, ouvi que a mãe do Lidu ficou desnorteada e era vista sem rumo pelas ruas", disse Libania.

O UOL buscou, sem sucesso, contato com os familiares de Lidu.

Reprodução

O apelido que virou marca

Chamar o Palmeiras de "porco" virou hábito entre os rivais a partir do ocorrido em 1969. E por 17 anos o Verdão lidou mal com essa alcunha. Em 1986, porém, a história mudou. O porco passou a ser de fato parte da história do Palmeiras, institucionalizando-se o apelido.

João Roberto Gobbato, diretor de marketing do Palmeiras à época, ouviu a funcionária Sílvia Calegari e fez força para o porco ser aceito pelo clube.

O diretor de marketing contou com a ajuda das torcidas organizadas para enraizar o porco no Palmeiras. Os gritos de "porco" começaram em um clássico contra o Santos. Uma semana depois, os líderes desfilaram na pista de atletismo do Morumbi com um porco em mãos antes da partida diante do São Paulo.

A "pá de cal" foi o craque Jorginho aparecer na capa da Revista Placar também com um porco nas mãos. A manchete foi: "O Palmeiras quebra um tabu: dá-lhe, porco".

Atualmente, o porco tem o mesmo patamar do periquito como mascote do Palmeiras. O símbolo, inclusive, tem o nome de Gobbato, em homenagem ao diretor que ajudou no "antídoto" contra o apelido. Hoje, ninguém grita periquito. Todos gritam "porcôôô".

Sobre meninos e porcos

A violência entre torcidas foi retratada na terceira temporada do podcast UOL Esporte Histórias. A série "Sobre meninos e porcos" conta em seis episódios a história de como as torcidas organizadas saíram da festa e chegaram à violência.

O relato é centrado no assassinato de Cleo Sóstenes Dantas nos anos 1980, considerado o marco da chegada das armas de fogo às brigas de organizadas.

No primeiro episódio, você vê como um grupo de garotos da zona oeste de São Paulo, cansado da violência e da humilhação nos jogos do Palmeiras, se reúne para fundar a torcida organizada Mancha Verde e ganhar respeito nos estádios. E como esses garotos, liderados por Cleo, bolaram uma estratégia: adotar um porco vivo como mascote e transformar a ofensa em orgulho.

  1. Respeito é pra quem tem
  2. E ninguém vai me segurar
  3. Sangue derramado
  4. Calibre 38
  5. Chumbo de caça
  6. Sem saída

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