Não somos príncipes

Doda Miranda mostra que hipismo é mais que montar um belo cavalo e abre a vida pessoal

Felipe Pereira e Karla Torralba Do UOL, em São Paulo Dan Mullan/Getty Images

Uma pessoa de calça branca, bota de montaria e terninho impecável montada em lindos cavalos. Essa é a descrição de um atleta de hipismo, mas poderia ser de um príncipe encantado. O que separa a vida real do cavaleiro e dos galãs dos contos de fada são os bastidores. Para chegar à apresentação com seu cavalo perfeito, no entanto, é preciso enfiar a bota, literalmente, na lama. Quem explica a "vida real" do hipismo é um dos mais famosos cavaleiros do Brasil: Doda Miranda, medalha de bronze nos saltos por equipe das Olimpíadas de Atlanta e Sydney.

"Eu tive que tirar carteira de motorista categoria E para poder dirigir o próprio caminhão dos cavalos, porque o motorista de caminhão seria um gasto, ia sair do meu orçamento. As pessoas imaginam que é um esporte caro, imaginam um cavaleiro chegando num carro de luxo, chegando ali com a roupa impecável e a pessoa que cuida do cavalo trazendo o cavalo, aí você monta quase que sem suor. Na Europa, não existe isso. A gente tem que mostrar também muito esse outro lado. As pessoas talvez não abraçam o hipismo dessa forma e eu tenho convicção de que é por esse motivo: imaginar um príncipe chegando a cavalo", disse Doda em entrevista exclusiva ao UOL Esporte.

Aos 46 anos e morando no Brasil desde 2016, Doda criou um novo circuito no país, o Longines XTC. Afinal, um nome forte para atrair a atenção de investidores ele tem. Nesta nova fase, o cavaleiro recebeu a reportagem e falou sobre a carreira e assuntos mais pessoais como a relação com a filha Viviane, que criou e ajudou a lidar com a morte da mãe, passou pelo período delicado da separação com a bilionária Athina Onassis e ainda se abriu sobre o relacionamento com a jornalista Denize Severo, repórter do programa Amaury Júnior.

Assista à íntegra da entrevista no canal do UOL Esporte no YouTube.

John MACDOUGALL/AFP John MACDOUGALL/AFP

"Uma das vezes que mais sofri foi com o sacrifício de uma égua"

O cavalo não é apenas o instrumento de trabalho para um cavaleiro, como um carro de Fórmula 1 é para o piloto. A relação entre cavalo e cavaleiro é tão forte que, para Doda, é como se fosse um membro da família. Isso inclui sofrer, e muito, quando acontece algo com um de seus animais.

"Uma das vezes em que mais sofri na minha vida foi quando eu tive a minha primeira égua, chamada Penumbra. Era uma égua muito voluntariosa. Acredito que, se não fosse ela, eu não ia me apaixonar da forma pela qual me apaixonei pelos cavalos e pelo esporte. Quando a aposentei, foi para um haras no interior de São Paulo. Ela estava com o potrinho dela e aí estourou um raio".

"O potrinho quebrou a pata e ela também, não sei se eles se chocaram com o barulho, aí tiveram que ser sacrificados. O veterinário não tinha como salvar pelo tipo de fratura. Aquilo para mim foi muito difícil. Eu lembro como se fosse hoje. Meu pai quando chegou em casa, com a cara arrasada. Na hora que ele falou, acabaram as minhas férias", lembrou Doda.

Concordo que o cavalo seja 70% e o cavaleiro, 30%. Por que isso? Porque é ele que vai, de fato, saltar. Tem que ter aptidão, inteligência e os requisitos mínimos para poder chegar no teu objetivo. Vamos falar de Olimpíada, a medalha no peito não vem se o cavaleiro naquele dia estiver 29,5%. Qualquer mínimo erro que você fizer, a medalha também não chega. Não tem perdão

Álvaro Affonso de Miranda Neto, o Doda

Jefferson Bernardes/AFP

Rio 2016 e divórcio conturbado

Justamente por isso, o veterano do hipismo sabe que a mente do cavaleiro é importante. Se não estiver totalmente centrado na prova, a medalha não vem. Na Olimpíada do Rio de Janeiro, Doda estava feliz por representar o país e competir em Deodoro, onde o avô morou, mas sabia que isso não seria suficiente. Ele precisaria estar ainda mais focado no esporte, caso contrário a cabeça fugiria rapidinho dali.

"Quando eu cheguei na Olimpíada do Rio de Janeiro, tinha vários problemas que não tinham nada a ver com os Jogos Olímpicos. Como é que fica a minha cabeça para competir naquela hora? Eu olhava aquilo como a maior oportunidade de estar dentro da pista, de pensar só no que estava fazendo, com amor. A gente ficou em quinto por equipe, mas eu fui, novamente, o melhor cavaleiro individual do Brasil. Eu fiz isso em três Jogos Olímpicos", contou.

Doda é discreto ao falar sobre o passado e não citou nenhuma vez o nome da ex-mulher, Athina Onassis, herdeira do magnata grego Aristóteles Onassis. Os problemas aos quais ele refere são relacionados à separação, depois de 11 anos de casamento. Doda e Athina se casaram em 2005, no que foi descrito como a festa do ano, regada a mil garrafas de champagne Veuve Clicquot e carros blindados para fazer o transporte dos convidados até a Fundação Maria Luiza e Oscar Americano, no Morumbi, zona sul de São Paulo.

Se a união dos dois rodou a imprensa nacional e internacional, o término do relacionamento também foi alvo de tabloides ao redor do mundo. Cavalos apreendidos, boatos de traição e infertilidade alimentaram a imprensa marrom entre 2016 e 2017, enquanto uma batalha jurídica acontecia nos bastidores.

Em meio ao divórcio conturbado, o cavaleiro chegou a ficar sem acesso aos seus cavalos, que ficavam na Europa.

"Separação, mudança para o Brasil, mudança geral de vida. Eu morando na Europa, em dúvida: 'Vou para os EUA, continuo na Europa...?'. Indecisão. Minha filha continua estudando lá. Mil coisas que ficam na tua cabeça", explicou Doda. Mas ele fez questão de ressaltar: isso ficou no passado. "Já faz tempo, graças a Deus. Está tudo resolvido".

Tive a chance de trazer os cavalos, mas isso nunca foi o principal. O que eu queria muito eram os cavalos da minha filha, que eram cavalos mais velhos que ela já tinha, e só resolver a situação.

sobre o divórcio de Athina Onassis

Jean-Yves Ruszniewski/TempSport/Corbis/VCG via Getty Image

Cartolina ajudou a ganhar medalha olímpica aos 22 anos

Com seis Olimpíadas na bagagem, Doda fez sua estreia nos Jogos aos 22 anos, em Atlanta-1996, e sem ter participado de campeonatos internacionais. O então jovem cavaleiro sofreu com a desconfiança, mas foi essencial para que o Brasil conseguisse conquistar a inédita medalha de bronze nos saltos por equipes.

"Eu era o mais jovem e não tinha experiência nenhuma em equipe. A equipe ali já tinha cavaleiros medalhistas Pan-Americanos, Sul-Americanos. Existia uma resistência da parte de alguns cavaleiros mais experientes até de dizer: 'Pô, como é que vai vir o Doda, o mais jovem?'. Foi uma pressão muito grande."

Doda não aceitou que o Brasil ficasse conformado com um sexto lugar. Depois de ouvir algumas entrevistas dadas por atletas, saiu colocando mensagem de incentivo onde a delegação ficava em Atlanta. A equipe brasileira de saltos era formada por Doda, Rodrigo Pessoa, André Johannpeter e Luiz Felipe de Azevedo.

"Me incomodava porque as entrevistas em geral, tanto da comissão, como dos atletas, com a exceção do Luiz Felipe Azevedo, o Felipinho, eles diziam: 'O Brasil já ficou em oitavo, nono, agora se ficarmos entre os seis já seria um sonho'. Aquilo me arrebentava. Eu falava: 'Se a gente veio até aqui, pelo menos vamos mirar no máximo e ver no que é que dá'. Eu discutia um pouco com eles", contou.

Doda teve uma ideia para incentivar os mais descrentes na medalha. "Eu acordei mais cedo, fui a uma papelaria, peguei uma cartolina amarela, meio cor de ouro mesmo, e escrevi em verde: 'Somos os melhores do Brasil e seremos os melhores do mundo. Equipe brasileira de hipismo, do salto, Atlanta, 1996'. Coloquei o nome de cada um, mas coloquei cavaleiros, dirigentes e coloquei na entrada na casa. Peguei umas folhinhas, tipo metade de uma folha A4, e colocava no beliche: 'Equipe brasileira medalha de ouro em Atlanta, medalha de ouro, medalha de ouro'."

A ideia surtiu efeito: "As entrevistas mudaram completamente."

Rolf Vennenbernd/picture alliance via Getty Images Rolf Vennenbernd/picture alliance via Getty Images

Quer pelo menos mais duas Olimpíadas

Doda está fora da seleção brasileira de hipismo desde os Jogos do Rio de Janeiro e não tem pretensão de representar o Brasil em Tóquio no ano que vem. Aos 46 anos, a meta é mais distante no que se refere a ciclo olímpico. O veterano quer participar de Paris-2024.

"Eu tenho na minha cabeça de participar de, no mínimo, mais duas Olimpíadas", avisou Doda, que usará 2020 para se recuperar de um problema antigo no quadril. Isso aliado ao fato de não ter um cavalo olímpico, o que só conseguiria fora do Brasil, e estar longe da seleção nos últimos anos colocam a meta em 2024. Desde os Jogos no Rio, o objetivo de Doda era organizar a vida. Após treinar na Europa por 22 anos, ele está de volta ao Brasil e em busca do cavalo ideal.

"Um ano antes tem muita gente procurando cavalo olímpico e não tem tantos assim. O preço fica inflacionado. Teria três meses para escolher um cavalo. A minha ideia é torcer muito para o Brasil nessa Olimpíada e focar no meu ciclo a partir do ano que vem", explicou.

"Sempre gosto de trabalhar a longo prazo. O que eu quero fazer é estar na Olimpíada de Paris 2024, mas como um dos favoritos à medalha de ouro individual e com uma equipe do Brasil muito forte."

Doda fará uma cirurgia no quadril que incomoda o cavaleiro desde o início da carreira. O problema surgiu aos 10 anos, quando um cavalo empinou durante uma tentativa de subir no animal, e piorou após uma queda feia em 2008. "Eu treinava oito horas por dia, mas no quinto cavalo eu sentia latejar. Quando eu vim para o Brasil, em 2016, montando menos, fica mais rígido [o local]. Nos últimos dois meses eu senti mais dores nas costas. Fui investigar melhor para ver quais as opções de tratamento e surgiu uma cirurgia de quadril".

Se encontrar um companheiro de salto, Doda não descarta mudar os planos. "Se aparece um cavalo maravilhoso, eu encaro a minha dor".

Com tudo o que eu vivi na Europa, com a confiança que eu tenho em produzir bons cavalos, voltei a competir, realmente, coloquei a minha cabeça, agora, no esporte. Tudo o que eu aprendi lá, eu vejo que eu consigo formar aqui cavalos excepcionais.

sobre a volta ao Brasil

Não é possível formar cavaleiros de elite no Brasil

Depois de iniciar a carreira no hipismo no Brasil, Doda Miranda se mudou para a Europa. Foi para a Bélgica, na escola de Nelson Pessoa, pai de Rodrigo Pessoa, em 1994. Voltou ao Brasil apenas depois de se divorciar.

Mesmo com a evolução do país no esporte, Doda afirma que ainda não é possível formar um cavaleiro de elite capaz de ganhar uma medalha olímpica, vivendo a carreira toda no Brasil. "Infelizmente, a partir de uma idade, ele tem que morar fora e, se possível, Europa. A cultura ainda, a arte da equitação, está muito distante até dos cavaleiros que saltam Grande Prêmio. Muitos não têm nem vontade de morar fora. Têm uma vida aqui, hoje, ganhando merecidamente um ótimo salário, e na hora que eles colocam na balança morar fora, ganhar bem menos dinheiro no início, ter que trabalhar muito mais cuidando dos cavalos do que montando e competindo..."

Consciente do privilégio que tem, Doda sabe que a mudança para a Europa só foi possível porque os pais tinham condições financeiras. E este é outro ponto importante para seguir no hipismo. "Se eu não tivesse ido para a Europa, se não tivesse condições de ter esse suporte do meu pai, não só de viajar, mas desde o início investindo tudo de melhor na minha carreira, em cavalos, em treinadores, enfim, eu sempre tive tudo do bom e do melhor. Era quase uma obrigação eu, no mínimo, ter sido muito bom aqui no Brasil. Muitos viam que chegava a ser até desproporcional todo o investimento financeiro e o amor que a minha família estava ali comigo. Um sem o outro também não ia funcionar. Eu tive sempre a minha família toda comigo viajando em todos os eventos e me dando força".

O pai de Doda é o empresário Ricardo Miranda, que fez carreira no ramo de seguros. O nome do cavaleiro é homenagem ao avô militar, Álvaro Affonso de Miranda Filho, o mesmo que morava em Deodoro. O patriarca lutou na Itália durante a Segunda Guerra Mundial e servia no Rio de Janeiro.

Carlos Alvarez/Getty Images

Doda teve de contar aos filhos sobre o suicídio da mãe

Viviane de Miranda é filha de Doda com a atriz e escritora Cibele Dorsa. Doda e Cibele se separaram quando Vivi ainda era pequena. Ela e o irmão Fernando, filho de relacionamento anterior de Cibele, ficaram com o cavaleiro. Os dois foram criados por Doda e Athina (na foto).

Em 2011, Doda teve a difícil missão de dar a notícia da morte da mãe às duas crianças: Cibele havia cometido suicídio em São Paulo ao cair do sétimo andar de um prédio. "Naquela época, estavam os dois morando comigo. A Vivi com nove para dez anos, e o Fernandinho, 12 para 13. A primeira coisa de chegar e ter que falar para eles foi muito, muito, muito, muito duro."

"Independente das coisas que aconteceram em separação, eu nunca falei mal da mãe para eles. Os pais, muitas vezes, usam o filho como motivo de barganha. Imagina uma criança absorver a pressão de uma separação, de qualquer coisa que seja. A gente se abraçou, chorou muito junto, por muitos e muitos dias. Foi difícil mesmo, mas é a vida, a gente tem que seguir."

Quando a Vivi nasceu, eu tinha uma preocupação muito grande de estar dentro do meu orçamento. Eu acordava o cara mais feliz do mundo, trabalhava, sempre troquei fralda, fiz de tudo. Não só dela, como do Fernandinho, que eu chamo de filho até hoje.

Sobre a paternidade

Jacopo Raule/Getty Images Jacopo Raule/Getty Images

Amor pelos cavalos passou para mais uma geração

O amor pelos cavalos, iniciado com o convívio na vila militar carioca, foi passado para mais uma geração da família Miranda. Foi assim com a filha, Viviane Miranda, criada pelo pai com a ajuda de Athina Onassis. Com o pai e madrasta, também saltadora, praticamente morando em meio aos cavalos, a caçula de Doda também se tornou atleta.

"A Vivi monta comigo desde os quatro anos de idade. Quando ela fez cinco anos, eu comprei um pônei branquinho, pequeninho, mais velho, chamava Bob. Ele foi o maior professor dela", contou.

Mas a relação de Vivi, hoje com 19 anos, com o hipismo é ainda anterior. Sempre que estava no colo do pai, a menina se inclinava para ficar próxima ao animal. "Eu tenho foto dela com oito meses, comigo no colo. Eu tinha que chegar na cocheira, ver um cavalo muito manso, porque o cavalo, às vezes, vai brincar e vê a mãozinha, pode achar que é uma coisa de cenoura, alguma besteirinha que você dá pro cavalo como mimo. Na hora que eu coloquei ela em cima do cavalo pela primeira vez, ela banguelinha assim, deu um sorriso. Mas eu nunca na minha vida direcionei [o interesse pelo hipismo]. Ali eu já pensei: 'ela gosta'."

Mastrangelo Reino/Folhapress

Novo relacionamento começou após entrevista

Poucos meses após a Olimpíada do Rio, em outubro de 2016, Doda teve o sinal definitivo para continuar no Brasil, e ele tem nome e sobrenome: Denize Severo. A jornalista do Programa Amaury Júnior, da Rede TV, chamou a atenção do cavaleiro durante uma entrevista em que ele falou sobre a carreira.

E quase que o encontro não aconteceu. Doda não estava atendendo jornalistas após a turbulência com a separação. "Eu vim para o Brasil e no primeiro concurso que vou participar aqui, conheço a Denize. Eu tinha falado com a chefe de imprensa, que é nossa amiga Carola May: 'não vou falar de nada, de problema, de coisa. Quero olhar para frente, vida que segue'. No último dia, o cavalo se lesionou na cocheira e eu não podia saltar o Grande Prêmio. A Carola vem e fala: 'Olha, eu sei que você já me falou isso, mas tem aqui a Denize Severo, lá do Amaury, quer falar com você'. Eu bato o olho, vejo. 'Faço agora, não tem problema", disse.

"Vem a Denize e fala para mim: 'tem umas perguntas que pediram para fazer, mas você tem todo o direito de não responder'. Eu falei: 'Imagina. Pode perguntar o que você quiser. Eu já tinha visto ela algumas vezes, nada é por acaso. Acabou que depois de dois dias a gente saiu para jantar e, em pouco tempo, a gente ficou e vai ficar pra sempre junto".

Doda e Denise se casaram em dezembro de 2018. Além dos planos no esporte, o casal tem planos de aumentar a família. "A gente já fala em filhos. Eu nunca fui tão feliz na minha vida como eu sou hoje. A segurança que me dá ter a mulher que tenho do meu lado, em todos os sentidos. Pela primeira vez na minha vida, eu tenho, de fato, um modelo de mãe ideal para os nossos futuros filhos."

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