Nudez histórica

Ensaios de atletas ajudaram movimento LGBTQIA+, mas acabaram após caso Roger e falta de sintonia com ativismo

Ana Flávia Oliveira, Augusto Zaupa e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo

Imagine você adentrando uma banca de revista — aliás, você ainda consome este tipo de leitura e frequenta este ambiente? — e se deparando com uma publicação com fotos de nu artístico de Neymar, Gabigol ou Cássio. Há 20 anos, a G Magazine (e outras publicações do gênero) quebraram paradigmas ao estampar em suas páginas fotos sem roupas de Vampeta, Dinei, Túlio, Roger, entre outros.

Em pleno 2021, haveria público para consumir este tipo de trabalho? E os jogadores teriam coragem de ficar pelados em frente às câmeras? O UOL Esporte foi em busca da ex-publisher da G Magazine, ouviu líderes de grupos LGBTQIA+ e os "peladões" do início dos anos 2000 para debater o que mudou de lá para cá.

A reboque vem outro questionamento: por que o nu masculino é polêmico enquanto o feminino é naturalizado? Sim, o Brasil é um dos países mais machistas do mundo, o que reforça essa quebra de tabus tão recente com jogadores de futebol sem "nenhum uniforme".

Nesta reportagem especial, publicada no mês do orgulho LGBTQIA+, o UOL Esporte destaca a importância dos ensaios para o movimento, as consequências negativas (como o quase afastamento por indisciplina do goleiro Roger no São Paulo) e também fatos curiosos, como as amigas beatas da mãe de um dos jogadores que elogiaram as fotos de determinada edição, dos ensaios pioneiros do final dos anos 90.

Jogadores foram importantes para o movimento LGBTQIA+

Enquanto a nudez de mulheres era explorada massivamente por décadas e décadas, havia uma lacuna de mercado que contemplasse outros públicos, como mulheres heterossexuais e membros da comunidade LGBTQIA+. Foi então que, em maio de 1997, chegou às bancas a revista 'Bananaloca', que meses depois iria se tornar G Magazine. A publicação, que estreou com o ator e modelo Anderson Di Rizzi, ganhou destaque e, ao longo de 15 anos, teve mais de 170 edições.

O auge da revista foi no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Com jogadores de futebol e ex-participantes do Big Brother Brasil, chegou a vender 180 mil exemplares por mês. As personalidades que estampavam as capas faziam nu frontal — algumas vezes até mostravam ereção, como no caso de Vampeta. Responsável pela revista por uma década (120 edições, para ser mais exato), a jornalista Ana Fadigas revela que a exposição de jogadores de grandes clubes contemplou a carência de parte da sociedade.

"Por parte do público, teve grande agradecimento por ter jogadores. Eles gostavam, acharam que estavam sendo reverenciados pelos jogadores. Era uma coisa bem interessante. Aliás, nunca um jogador havia posado nu, explícito em ereção, no mundo. O Vampeta foi o que inaugurou. Ele, por ser uma pessoa bem moderna, tinha morado na Holanda. Vampeta é inesquecível, ele virou um selo da G, mas todos os outros foram também. Foi uma virada da revista. Na época, foi muito, muito bom. Muito bom para marca, em termos de mercado."

Marcelo Cerqueira, presidente do Grupo Gay da Bahia, concorda que a exposição dos atletas satisfez a curiosidade da comunidade LGBTQIA+. No entanto, o ativista destaca que os jogadores não levantavam uma bandeira à época. "Eu avalio importante entre aspas porque, por exemplo, Vampeta posou porque é irreverente. Não tem engajamento nem com a comunidade negra, nem com outra. Não sei o que teria motivado ele, não se foi porque ele tem picão e queria mostrar para os outros. Vampeta, Dinei, Gaúcho... Eles não têm nenhum engajamento. Fizeram, talvez, porque são porra louca."

O Renato Gaúcho [saiu na Íntima, que era dedicada ao público feminino e não obrigava que os modelos mostrassem a genital] foi um ícone. Vampeta e outros jogadores de futebol menos famosos foram importantes porque abriram espaço do [nu] masculino, hétero, se dispondo a essa comunidade. Foi muito importante, apesar de eles não serem gays, estarmos cultuando uma estética masculina."

Marcelo Cerqueira, presidente do Grupo Gay da Bahia

Haveria público e jogadores com coragem para fazer o mesmo hoje em dia?

Atualmente, o mercado de publicações impressas passa por grave crise financeira. São poucas as revistas e os jornais ainda em circulação após a migração de leitores para dispositivos móveis. Porém, será que hoje ainda existiria público para consumir para ensaios assim? De acordo com os entrevistados, não.

"Posar nu não é mais necessário para quebrar paradigmas. Hoje não é o escopo do negócio. Hoje é indiferente. Acho que existem outras formas de qualquer jogador tentar levantar a bandeira da comunidade. Não é posando nu. Seria mais para ganhar likes, essas coisas. Não seria bem visto. Seria mais uma forma de 'ah, ele quer aparecer'. Se algum jogador quer ser bem visto na comunidade, comprar essa briga nossa, tem outro jeito de ele fazer isso, de ele realmente fazer uma campanha dentro do estádio, uma campanha com a torcida, uma campanha com outros jogadores", analisa Filipe Marquezin, presidente e fundador do grupo Unicorns Brazil, referência no esporte LGBTQIA+.

Para Ana Fadigas, a evolução do mercado do futebol nas últimas décadas indica que jogadores famosos não aceitariam ofertas para este tipo de ensaio. "Os jogadores hoje ganham muito mais dinheiro, são mais focados. O sucesso já está nesses nomes mais famosos, já tem uma permanência do sucesso. O público é outro, a visão do público seria outra. Eu acho que teria que ter essa pegada de mercado, envolta numa coisa mais social, até mesmo de limpar a barra, que fosse", opina a ex-publisher da G Magazine.

O preconceito é muito mais visível. Acho que a gente regrediu, não na luta pelos direitos, nem nada. Mas pela exposição. Não sei como seria a G hoje. Acho que ela trabalharia mais com causa social ou com transgêneros porque já houve uma mudança no movimento. Mas eu iria ser presa também, né? Hoje é muito complicado. Vivemos um momento horrível de foco no preconceito".

Ana Fadigas, ex-publisher da G Magazine

O ativista Marcelo Cerqueira aponta que o fácil acesso ao sexo explícito na internet também contribuiu para a queda do consumo destes ensaios. "A gente vive hoje numa época do sexo explícito. Melhor do que esse Neymar.... Seria interessante pelo que ele representa, mas ele nunca posaria porque não tem os atributos físicos que os gays gostam em geral. [Também] nunca imaginaria Gabigol posando nu. Ele não tem sex appeal, pelo menos para mim, não sei se para outros gays. Acho o sex appeal dele muito reduzido por causa da truculência, por causa da forma que ele joga."

Eles repetiriam o ensaio hoje?

Roger, ex-São Paulo

"Hoje não estou naquele vigor todo, por isso não faria. Brinco com o pessoal que, se fizesse hoje, só teria um problema que seria capa dupla porque naquela época eu estava em fase de crescimento, agora cresceu (risos). Estou um menino ainda, genética muito boa."

Dinei, ex-Corinthians

"Nunca mais faria isso, pelo amor de Deus. Foi uma história de vaidade, não foi nem por causa do dinheiro, porque acho que eu e o Vampeta não ganhamos muito. Hoje, com 50 anos, eu não sei nem por que eu saí. A cabeça hoje é outra, antigamente eu era meio avoado (risos)."

Não, hoje não, já é outro patamar, é outra história, outra conjuntura."

Túlio, ex-atacante de Botafogo e Corinthians

Roger foi afastado e emprestado pelo SPFC

Aproveitando o sucesso do Corinthians, que recém-havia conquistado o título do Brasileirão de 1999, a G Magazine abriu o ano 2000 com uma novidade: jogadores de futebol na capa da revista pela primeira vez na sua história. Logo em janeiro, a estrela foi Vampeta. No mês seguinte, Dinei foi o destaque. Mas a repercussão negativa só viria em outubro daquele ano, quando a atração foi Roger Noronha, goleiro reserva do São Paulo.

Além de ganhar o apelido de "Peladão", que o acompanhou por longo tempo no futebol, o atleta precisou deixar o clube do Morumbi por alguns meses após um atrito com o então treinador Paulo César Carpegiani.

"Nunca esperava que ia dar essa repercussão toda. O Dinei e o Vampeta já tinham feito, e eu fui o terceiro jogador a fazer. Eles estavam numa torcida mais exigente ainda, que é do Corinthians. Fizeram o mesmo trabalho e não deu nada. Foi um puta mal entendido essa repercussão que deu."

Roger conta que a diretoria e a comissão técnica sabiam da negociação com a revista há meses, mas que Carpegiani tentou que ele adiasse a publicação das fotos para o período de férias, para minimizar eventuais polêmicas. "Estávamos concentrados para um jogo no Morumbi. O Carpegiani veio falar comigo, queria que eu adiasse a revista. Disse que achava que não teria problema, mas que precisava ligar para o diretor da G Magazine, porque não dependia mais de mim. Esse diretor falou que seria tranquilo, era só ir colocando outras edições na frente e então só publicaria em janeiro", relembra.

Porém, a imprensa esportiva já estava ciente que o goleiro seria capa da revista nos próximos meses, e o assunto veio à tona na coletiva após uma partida.

"Quando eu cheguei na minha casa, tinha mais de dez repórteres na porta do meu prédio, não entendi nada o que estava acontecendo. O Carpegiani disse na entrevista que, se esta revista fosse para a banca, eu não iria jogar mais no São Paulo. No dia seguinte, ele me chamou perguntando se eu tinha conseguido. Mas, com a polêmica gerada na entrevista, falaram que não ia ter jeito e publicaram. Só que o Carpegiani disse que tinha dado a palavra dele de que eu não jogaria e não iria voltar atrás. O São Paulo se absteve, e eu preferi pedir para o presidente para me emprestar para o Vitória para jogar o resto do Campeonato Brasileiro."

Na época, Carpegiani justificou à Folha de S.Paulo que a posição de goleiro "é de extrema confiança, e ele [Roger] perdeu a minha. Não é a primeira vez que o Roger erra, já fez coisas mais graves", mas não explicou detalhes sobre como o ensaio representava quebra de confiança.

Foram quatro meses desgastantes para mim, pela repercussão desnecessária. A precipitação do Carpegiani criou este mal-estar todo desnecessário."

Roger, ex-jogador do São Paulo, sobre a polêmica gerada pelo ensaio na G Magazine

Depois do Roger, eles [os jogadores de futebol] foram proibidos de posar. Criou-se um contrato nos clubes que eles não poderiam mais fazer ensaios."

Ana Fadigas, ex-publisher da G Magazine

Amigas religiosas da mãe de Roger aprovaram o ensaio

Natural de Cantagalo, pequeno município do Rio de Janeiro, Roger também tem boas histórias para recordar sobre o ensaio nu. Tanto que as amigas de igreja da sua mãe fizeram questão de comprar a revista na época — e aprovaram as fotos.

"A minha mãe era ministra da igreja católica da legião de Maria, aqui na minha cidade. Você imagina a conversa que deu na minha cidade, com 25 mil habitantes tradicionais. As amigas dela, de 60 anos, 70 anos, diziam: 'oh!, eu comprei a revista do Roger. Na época foi muito bacana. Acho que ajudei a quebrar o preconceito. As coisas se modernizaram e ficou bem natural. Deixou de ser estranho."

Apesar da polêmica que enfrentou no São Paulo, o ex-goleiro afirma que foi muito bem recebido pelo público LGBTQIA+. "Eu ficava mais constrangido do que elas e eles, porque a revista era voltada mais para o público gay. Sempre fui muito tranquilo: quando vinha alguém com a revista para pedir o autógrafo na capa. Era muito legal o carinho de todas as classes."

Foi uma experiência bacana, um trabalho profissional, era uma coisa nova época. Foi bom por causa do cachê. O futebol é um esporte machista, não era como os dias de hoje, mas, na época, o pessoal ria, o pessoal achava graça. Mas não me afetou nada em termos de carreira."

Túlio, ex-jogador da seleção brasileira

Foi tranquilo, porque o Corinthians estava bem, ganhando tudo de 98 até 2000. Se estivesse mal, estava morto. O assédio com a mulherada aumentou, com gays também. Gay toda a hora ficava olhando pra gente, com todo respeito, tá! Cada um com a sua opção sexual."

Dinei, campeão brasileiro com o Corinthians, se referindo, na verdade, à orientação sexual

Ensaio de Vampeta é bandeira em protestos na web

Já são 20 anos desde a publicação das fotos de Vampeta pelado, em janeiro de 1999, mas o ensaio ainda repercute no Brasil e em outros países. Até porque o ex-volante atuou na Holanda, França, Itália e fez parte do grupo da seleção que conquistou o pentacampeonato mundial em 2002.

O ensaio, que rendeu R$ 80 mil de cachê ao jogador (cerca de R$ 435 mil, em valores corrigidos para atualmente), virou também uma forma de protestos nas redes sociais. Recentemente, o UOL Esporte contou que quando o músico norueguês Varg Vikernes, ex-vocalista da banda de black metal Burzum, atacou o Brasil ao chamar o nosso povo de "Untermensch" (palavra usada pelos nazistas para designar os "povos inferiores"), o gerente de projetos paulista André Honorato resolveu contra-atacar ao lotar o perfil do artista no Twitter com fotos do ex-jogador Vampeta pelado.

Outros brasileiros também mandaram tantas fotos do ensaio do ex-jogador na "G Magazine" que Varg precisou fechar seu perfil. Foi mais uma edição do protesto virtual batizado de "vampetaço".

O movimento já havia ocorrido em junho de 2020, quando o deputado estadual Douglas Garcia (PSL) publicou no Twitter mensagem pedindo aos seus seguidores que denunciassem antifascistas e enviassem o nome completo dos conhecidos para o seu e-mail funcional na Assembleia Legislativa de São Paulo. O político foi bombardeado com fotos do "Velho Vamp" pelado na G Magazine.

Uma prova inconteste que a breve onda de ensaios nus de jogadores está na história da cultura popular no Brasil.

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