Diante do bloqueio: Diana

A história de sete mulheres trans que se encontraram no vôlei e lutam por um lugar em uma sociedade hostil

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL Esporte Marcus Steinmeyer/UOL

O que é "Diante do bloqueio"?

Hoje (29), no Dia da Visibilidade Trans, o UOL Esporte publica uma reportagem especial em sete capítulos para jogar luz sobre as histórias de mulheres trans que querem existir. Na sociedade e no esporte que melhor as acolhe: o vôlei. Cada uma das reportagens abaixo conta a vida de uma jogadora de vôlei do Angels, um projeto desenvolvido pelo ativista e jogador amador Willy Montmann. Começou com a reunião de homens gays e bissexuais para treinarem e jogarem campeonatos amadores e se ampliou com a criação de um grupo de treinamento formado majoritariamente por mulheres trans.

Estivemos com elas, na beira da quadra, em três noites de outono. Os relatos de Duda, Ohara, Diana, Carol, Rafaela, May e Bianca são independentes. Se você ler na sequência sugerida (essa aí em cima, que começa com Duda e termina com Bianca), vai ver como as histórias são parecidas e as dificuldades se sobrepõem. E entenderá como essas mulheres enfrentam o bloqueio que a sociedade impõe em seu caminho.

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Diana

O Angels Volley é um projeto desenvolvido pelo ativista e jogador amador de vôlei Willy Montmann. Começou com a reunião de homens gays e bissexuais para treinarem e jogarem campeonatos amadores e se ampliou com a criação de um grupo de treinamento formado majoritariamente por mulheres trans.

Convidadas no boca a boca, já são 24 atletas, que se revezam em duas turmas que treinam às terças-feiras na quadra de um desses tradicionais clubes sociais quase esquecidos na selva urbana de São Paulo, o Cisplatina, no Ipiranga.

Em uma noite de primavera em outubro, a quadra de chão desgastado pelo tempo viu atletas com as camisas de Praia Clube, Osasco, Sesi, Bradesco, Pinheiros, do antigo Rexona e até do finado Macaé. Da mesma forma que tantos vestem Barcelona, Real Madrid, Corinthians ou Flamengo para emular seus ídolos nas peladas, para elas o bate-bola é a oportunidade de, por duas horas por semana, atacarem, defenderem, bloquearem e sacarem como as jogadoras que mais admiram.

No ginásio acanhado do Cisplatina, o nível não difere muito do de um bate-bola em qualquer unidade do Sesc na cidade. Espremendo bem, sai dali um time com nível para disputar um torneio amador feminino. Mas não há número de atletas suficiente para formar dois times em uma imaginária "liga trans", como propõem setores conservadores da sociedade. A cidade de São Paulo, em tese a metrópole mais arejada do país, recebe a maior parte das mulheres trans que não encontram formas de subsistências em suas cidades natais. É o caso da paraense Diana.

Assédio no trabalho

"Quando me assumi trans, aos 17, saí de casa. Meu pai não me aceitava. Ele culpava minha mãe, e eu não queria que ela sofresse. Saí da minha cidade, Salinópolis, e fui morar em Belém com minha tia", conta. O acolhimento durou pouco tempo. A tia foi morta em um assalto e Diana se viu sozinha. Chegou a trabalhar com carteira assinada em uma fábrica têxtil onde, diz, era "escravizada". Pediu as contas.

Também tentou trabalhar como doméstica. "Eu já me vestia de mulher, e isso mexe com a cabeça de homem. A família tinha dois filhos adolescentes, e eles queriam outras coisas comigo. Eu sabia que se acontecesse alguma coisa, a mãe ia em cima de mim", conta, sobre a primeira experiência. Na segunda, foi assediada pelo patrão. Também optou por sair.

Só lhe restou conhecer "o mundo da noite", outro eufemismo para prostituição. "Eu sabia do risco que estava correndo trabalhando em rua, mas era minha única opção. Era minha sobrevivência", diz Diana. Como outras colegas de time, ela coleciona experiências de quase morte. Ou melhor, de quase assassinato.

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"Ele ia me atropelar"

Em uma das ocasiões, Diana entrou no carro de um suposto cliente que, bêbado, queria se vingar das "travestis pilantras". "Ele acelerou o carro, mas eu consegui puxar o freio de mão. Falei: 'Se eu vou morrer, você também morre'." O carro capotou cinco vezes na avenida, mas Diana estava de cinto e saiu quase ilesa, correndo sem olhar para trás. Em outra oportunidade, foi deixada em cima de um viaduto. "Ele ia me atropelar ali. Mas eu percebi e me joguei no barranco".

Diana fugiu de virar estatística. O dossiê "Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2019", produzido por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira, encontrou 121 assassinatos de travestis e mulheres trans no Brasil somente em 2019 — não existem dados oficiais. Foram 43 assassinatos a tiros, 28 a facadas e 15 por espancamento.

"Nota-se que 80% dos casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade, como o uso excessivo de violência e a associação com mais de um método e outras formas brutais de violência", diz o relatório. Em 91% dos casos, as mortes foram registradas pelos nomes de registro (masculinos), não sociais (femininos).

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, liderando o ranking produzido pelo Trans Murder Monitoring há 12 anos.

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"Até hoje meu pai me chama por meu nome masculino"

"Você nunca sabe se você está segura", diz Diana, antes de contar, com naturalidade, a seguinte história: ela estava trabalhando na rua quando um motoqueiro parou ao seu lado e ficou conversando com uma das garotas. Uma terceira, depois, o abraçou. O motoqueiro foi embora e deu falta do celular. Retornou ao ponto, acusou a primeira de tê-lo roubado, e deu um tiro na cabeça dela. A mulher morreu na hora, ao lado de Diana. A assaltante fugiu.

Os pais de Diana chegaram a se enlutar pela filha quando chegou a Salinópolis a informação que uma Diana havia sido morta em São Paulo. Na mesma época, a paraense teve o celular roubado. Na impossibilidade de contato da filha, a família tomou a informação como verdade, só corrigida quando ela ligou, uma semana depois. "Eu pude ver o desespero deles", lembra. Foi ali que Diana decidiu que passaria o Natal com a família, que a recebeu de braços abertos. Com um porém.

"Fiquei um ano lá e fui colocando as coisas na cabeça do meu pai. Até hoje ele me chama pelo meu nome masculino. Minha família toda, todo mundo chama de Diana, só ele chama pelo nome de homem. Mas eu respeito isso dele. Tudo que acontece dentro de casa ele pede minha opinião. Ele me trata como um filho normal. Só queria que ele me chamasse pelo meu nome feminino", lamenta Diana, que já não trabalha mais na rua e se tornou uma costureira especialista em calcinhas para mulheres trans.

Diante do bloqueio: 7 histórias

  • Duda

    Ela sonhava em se sustentar no vôlei, mas acabou na prostituição. Quase morreu quando motoqueiros resolveram bater em uma travesti. Hoje, conseguiu um emprego longe das ruas graças a um projeto que prepara mulheres trans para ingressar no mercado de trabalho.

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  • Ohara

    Era capitã de um time feminino, foi campeã dos Jogos Regionais, mas vetada nos Jogos Abertos. Mesmo cumprindo todas as exigências para a inscrição: "Desde o dia em que mudei minha certidão de nascimento, não joguei mais campeonato nenhum no masculino".

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  • Diana

    Saiu de casa após se assumir mulher trans. Hoje, o pai a aceita de uma forma diferente: "A família toda me chama de Diana. Ele, pelo nome de homem. Mas eu respeito. Tudo que acontece dentro de casa ele pede minha opinião, me trata como um filho normal".

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  • Carol

    É fisioterapeuta com pós-graduação. Mas só conseguiu um emprego em sua área 10 anos após se formar: "Na entrevista, perguntaram se eu queria me apresentar como mulher trans. Eu disse que queria que eles falassem, sim. Quero ter essa representatividade".

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  • Rafa

    Foi miss trans e sua beleza a permitiu escapar do caminho que outras tomaram, o trabalho na rua: "Se tem uma coisa com que as pessoas não têm preconceito é com beleza. Se eu conseguir uma aparência feminina, as coisas vão ficar mais fáceis para mim".

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  • May

    Cabeleireira, ela iniciou a transição após ser rejeitada no vôlei masculino. "O técnico era hétero e deixava as bichas de lado, era visível. Eu não era convocada para os jogos. Isso foi me deixando desgostosa de jogar, de buscar meu sonho no vôlei profissional"

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  • Bianca

    Ainda trabalhando como garota de programa, ela luta contra o preconceito na faculdade de psicologia: "O primeiro dia foi um baque. As pessoas me olhavam dos pés à cabeça. Ainda no primeiro ano passei para ser monitora. Foi duro para as pessoas, elas tiveram que me engolir"..

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