Mãe, filha e uma bola

No dia das mães, craque do handebol conta como ficou grávida, foi demitida e nunca mais voltou à seleção

Samira Rocha Em depoimento ao UOL, em Kisvárda (Hungria) Divulgação

Ser mãe foi um presente que Deus me deu, mas passar por uma gravidez foi difícil. Não só porque nunca mais fui convocada para a seleção brasileira de handebol, mesmo após duas Olimpíadas e quatro Mundiais. Ou porque acabei demitida do meu clube — para depois ser recontratada após a gravidez ganhando expressivamente menos. Também teve o espelho: quando eu me olhava por ele, não me reconhecia.

Nunca cumpri o perfil da mãe padrão idealizada pela sociedade. Eu, Samira Rocha, aquariana, sou também gay e mãe solo. Minha filha, Aya, nasceu em Recife, Pernambuco, e há um ano e cinco meses fez meu mundo girar de cabeça para baixo. Com ela, minha vida ficou melhor e reascendi, dentro de mim, a chama que nos lembra de ter sempre pensamentos positivos.

Para trazê-la ao mundo, lidei com transformações no meu corpo e com preconceitos. Desde a infância, nunca gostei de coisas de "menina", vestidos e bonecas. Meu corpo e minha mente sempre se sentiram mais confortáveis em roupas largas. Me sinto melhor vestida como menino, o que nunca impediu, nem colocou em dúvida dentro de mim o meu mais genuíno desejo de gerar um filho ou uma filha.

Na gravidez, não há como fugir do aumento do seio, das curvas femininas. Foi difícil lidar com essas transformações, com os olhares tortos. Só a força materna de uma mulher para suportar o preconceito da sociedade e do esporte ao paralisar uma carreira vitoriosa e, sozinha, decidir iniciar uma família feliz composta por uma mãe e uma filha.

Divulgação

A vontade de ser mãe não tem nada a ver com a opção sexual. Namorei dois ou três meninos na adolescência, mas desde os 16 anos não escondo o fato de gostar de meninas. Também desde essa época, tudo que eu fiz foi jogar handebol. Comecei a treinar aos 14 anos e, com 15, eu já estava na seleção brasileira cadete.

Quando completei 23 anos, já queria muito ser mãe. Queria muito, muito mesmo, mas não podia naquele momento, por causa da minha carreira. Os anos iam passando e o sonho ia sendo adiado. 24, 25, 26... Sempre tinha um novo contrato, um outro campeonato, uma Olimpíada, um Mundial ou Pan-Americano. E o sonho de ser mãe ia ficando em segundo plano.

Sempre deixava o dinheiro me controlar, como a maioria das pessoas. Sempre queremos mais. Mais dinheiro para trocar de celular, comprar uma casa ou um carro novo. E quando conseguimos, queremos algo mais. Interrompi esse ciclo aos 29 anos, no início de janeiro de 2018, quando decidi que era chegada a hora de realizar meu sonho.

Naquela época, eu tinha uma namorada, que também jogava handebol em uma cidade perto da minha, na Hungria. Quando ela soube da minha vontade, deu um passo atrás. Eu respeitei, mas não desisti. Aquariana, sou muito determinada, faço as coisas acontecerem e sigo meu coração, que dizia para continuar. Uma mulher pode ser sempre mais — mais forte, mais determinada, mais resiliente. Eu, mais uma vez, fui tudo isso.

Não vou ser hipócrita de falar que é fácil e nem dizer que não gostaria de ter uma companheira do meu lado me dando apoio. Seria maravilhoso. Mas sei também que sou mulher o suficiente para acreditar em mim e saber que eu consigo, como estou conseguindo. Mesmo à distância, eu no Brasil e ela na Hungria, minha ex-namorada ficou comigo durante a gestação, longe apenas fisicamente. Um mês após o nascimento da minha filha, terminamos. Hoje, vejo que foi melhor assim.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Família, para mim, é o amor, não importa se entre dois homens, duas mulheres, você e o seu animal de estimação ou um casal hétero que as pessoas chamam de "normal". No meu caso, a minha família somos eu e a minha filha, a Aya. O que importa, em toda a família, é o amor.

Decidida a engravidar, fiz toda a papelada, exames, e fui até a Alemanha, onde realizei o procedimento. Contei os planos para três amigas. E elas meio que não acreditaram.

Engravidei na primeira tentativa. Descobri em um passeio no shopping. Para variar, foi uma daquelas situações de entrar no banheiro feminino e as pessoas me olhando tentando confirmar se eu estava no banheiro certo. Dessa vez, tinha um teste de gravidez na mão.

O resultado positivo foi um choque, porque eu realmente queria. Fiquei completamente paralisada de felicidade.

Arquivo pessoal

Quando decidi engravidar, sabia, claro, que meu corpo passaria por mudanças. Mas, admito, foi muito difícil lidar com toda aquela transformação. Não tive nenhuma complicação de saúde, foi tudo ótimo. Mas eu não me reconhecia.

Meu corpo mudou, meu humor mudou, meu cabelo não crescia, enfim, fisicamente eu já não era mais a mesma. Eu gosto de ter uma alimentação saudável e cuidar do meu corpo. E naquele momento não poderia fazer nada além de esperar.

Meu quadril ficou largo, meu peito ficou enorme e meu rosto ficou gordinho, mais feminino. Foi difícil para mim. Meu estilo é completamente masculino. Imagina você se olhar no espelho e, no meio dessa mudança louca do seu corpo, ver seu peito crescendo cada vez mais e uma barriga de grávida... As pessoas me olhavam três vezes. A primeira era: "opa, um menino". A segunda: "nossa, tá grávida". A terceira era: "parece menino, mas tá grávida".

Foi um pouco desconfortável lidar com esses olhares. E me ver com o corpo feminino. Entre 13 e 14 anos, como toda criança, meus peitos começaram a crescer, e, mesmo com pouca idade, eu pensava: "não quero, não gosto". Sempre tive vontade de fazer alguma coisa sobre isso. Mas não podia, porque queria poder amamentar. Fui adiando junto com a gravidez. Agora, quero muito reduzir os seios.

Aya nasceu, em Recife (PE), em novembro de 2018. De 27 partos por aqueles dias, só o meu foi normal. Fiz questão, porque eu queria sentir isso. Queria sentir o que é a dor do parto. E, claro, também por ser atleta. Queria voltar o mais rápido possível às atividades.

Depois do parto normal, tenho certeza aguento qualquer coisa. É uma dor tão incrível que a gente consegue passar que hoje em dia qualquer coisa eu vou passar como se fosse nada. Se eu não tivesse espaço para jogar, eu ia trabalhar com qualquer coisa, não tenho medo, nem vergonha de nenhum trabalho. Depois que passa pelo parto normal, a mulher pode passar por qualquer coisa. Descobri que sou mais forte do que eu mesma imaginava.

Lars Baron/Getty Images Lars Baron/Getty Images

Lidar com o corpo não foi o único problema que a gravidez me causou. Quando avisei o clube, a conversa foi rápida: quebrou seu contrato, pode voltar para o Brasil. Fui demitida mesmo depois de carregar o time nas costas em algumas ocasiões. Cheguei ao Kisvarda, em uma cidadezinha húngara de 16 mil habitantes, quando a equipe estava subindo para a primeira divisão. Eu fazia 9, 10, 11 gols por jogo. Eu engravidei e o clube não me deu nenhum suporte.

Mas me preparei para isso, afinal, a gravidez era planejada. Foi uma decepção, mas eu já sabia que seria assim. Ninguém no clube ficou do meu lado. No esporte é assim: cada um cuida da sua vida. "A Samira recebeu uma multa? Ainda bem que não fui eu". É algo que não consigo entender, mas aprendi que mesmo sendo um esporte coletivo, que coletividade não estava presente naquela equipe. Eu simplesmente teria que seguir as regras imposta pelo técnico, mesmo sabendo que não estava no caminho certo. Para uma aquariana, não contestar o porquê das coisas é uma tortura.

Se eu tivesse realmente condição financeira, pararia de jogar. Mas eu não posso nem pensar nisso, porque tenho minha filha e minha mãe. Quando eles me ligaram para voltar para o time, ganhando menos, a minha vontade era de mandar tomarem naquele lugar. Pense num palavrão. Queria falar tanta coisa... Mas a gente tem que reconhecer nossas fraquezas.

Eu tinha que voltar a jogar depois da gravidez. Além disso, o dinheiro estava começando a acabar, não tinha bolsa do governo na época em que minha filha nasceu. Queria muito falar não, mas acabei aceitando. Eu olhei o lado bom. Vou estar com minha filha, ter um emprego, vou poder ajudar minha mãe. Eu sei que eu poderia receber mais, mas eu tive um sentimento de gratidão. Tenho que pensar no meu futuro e no delas. É injusto, mas infelizmente é assim. Depois da minha gravidez o clube já colocou uma cláusula em todos os novos contratos para romper com qualquer atleta que engravidasse.

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Ainda que minha ex-namorada tenha mantido a relação durante a gravidez, eu sabia que seríamos eu e minha filha. Na minha cabeça, quando eu voltasse a jogar, e eu tinha certeza que voltaria. Contrataria uma babá para ficar com ela enquanto eu fosse treinar e jogar.

Descobri na prática que não é bem assim. Outras jogadoras que tiveram filho deixam a criança com o marido ou com algum familiar e vão jogar. A rotina com criança é bem cansativa. Não ia ser qualquer uma que eu ia conseguir deixar minha filha, e tem os horários. Se o técnico decide que tem um treino daqui a uma hora, como vou ligar para a babá e falar para vir? O atleta não tem uma rotina.

Graças a Deus minha madrasta aceitou meu convite para vir à Hungria e está me ajudando muito. Meu pai está aqui também, desde dezembro. Na pré-temporada, cheguei a viajar com a minha filha e minha madrasta, mas foi muito cansativo para a bebê e para todo mundo. Eu queria ter essa experiência, saber como seria.

Sempre que possível, a Aya vai ver os jogos, a não ser que esteja muito frio ou se eu já sei que a gente vai perder. Mas é tão gostoso terminar um jogo e sair com ela abraçada. Você sente que todo mundo te olha com um olhar de admiração.

Por mais que eu more num país com um governo de direita, nunca senti preconceito aqui, pelo contrário. As pessoas gostam de mim e foram muito atenciosos comigo e com minha filha. A cidade é minúscula, literalmente como uma cidade de quando contamos uma piada. Tem a padaria, duas farmácias, dois supermercados e uma delegacia. Quando não tinha o coronavírus, as meninas e alguns fãs vinham aqui em casa visitar a Aya, brincar com ela. Sempre deram muita atenção.

Carmen Jaspersen/picture alliance via Getty Images Carmen Jaspersen/picture alliance via Getty Images

Depois de tantos anos de dedicação, eu tenho o direito de voltar à seleção. Minha última convocação foi para o Mundial, em dezembro de 2017. Num jogo contra Montenegro, eu fiz o gol de empate que levou a partida para a prorrogação, mas errei a última bola no tempo extra. Perdemos e fomos eliminadas.

Após o jogo, o técnico não me ligou, não quis conversar comigo. Tenho certeza que nenhum atleta trabalha para chegar na hora da competição e errar. Ele não falou mais comigo, não mandou mensagem, não perguntou o que aconteceu. Fiquei muito triste. Ser crucificada por uma bola que perdi no final?

Admito que já pensei as portas estão fechadas para mim porque sou gay e agora eu tenho uma filha, mas procuro evitar esses pensamentos. Prefiro que falem que eu sou uma jogadora ruim. Ser punida por algo que você não pode escolher? Seria bem baixo, então prefiro nem pensar.

Acho que mereço respeito por tudo que eu já fiz pela seleção: tenho um título mundial, disputei quatro Mundiais e em um quinto fui cortada por lesão, joguei duas Olimpíadas e não sei quantos Pan-Americanos, Sul-Americanos. Mais de dez anos de seleção brasileira e não ter a oportunidade de ser convocada novamente é triste.

Independentemente de ter sido mãe, eu tenho o direito de voltar e lutar novamente pelo meu espaço. É questão de respeito. Cada pessoa, cada atleta tem uma história. Engravidei, fui mãe, mas tenho o direito de voltar.

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