"Não me arrependo"

Jornalista Carina Pereira fala sobre demissão da Globo e o resultado de denunciar ex-chefe por assédio moral

Ana Flávia Oliveira Do UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

"Que bom que você vai estar aqui a semana toda." Foi assim que a jornalista Carina Pereira se despediu do apresentador Cadu Alvim em sua última participação no bloco esportivo do "Bom Dia Minas", programa da TV Globo em Minas Gerais, em 4 de janeiro deste ano.

Os internautas entenderam que ela participou do programa já sabendo que seria demitida naquele dia. Em entrevista ao UOL Esporte, ela nega. "É uma coincidência engraçada. Sei lá, acho que a vida é cheia de coincidência engraçada. Eu não tinha a menor ideia que era meu último dia. Só que ele [Cadu Alvim] não era o titular do horário. Tinha um outro apresentador. Então eu falei 'que bom que você vai estar aqui a semana toda' porque ele nunca estava. [...] Eu juro que não sabia".

Consciente ou não da demissão, Carina já não estava feliz profissionalmente e queria sair da emissora na qual havia trabalhado nos últimos sete anos — a maior parte do tempo como repórter e depois apresentadora do Globo Esporte Minas. Foi no programa que viveu grandes alegrias profissionais, mas também as maiores decepções.

Conhecida em Minas Gerais, ela ganhou o noticiário nacional após usar seu Instagram para acusar o seu chefe de assédio moral. O caso chegou a público depois de repetidas denúncias ao Compliance (departamento responsável por fazer cumprir as regras da empresa) e ao RH da emissora. Ela diz que o caso não foi solucionado e conta que, por pelo menos um ano e meio, se sentiu vítima de retaliações, como mudança de horário e falta de equipe e equipamentos para trabalhar.

Carina diz que não se arrepende de ter exposto a situação em que vivia e que fica feliz por ter tido coragem de falar, mesmo ao custo de seu emprego. Ela diz que a demissão abriu novas portas e, aos 41 anos, avalia novas oportunidades profissionais — quem sabe, até, uma nova carreira.

Arquivo pessoal/Instagram @carinaapereira

"Assédio te limita"

Carina Pereira define o assédio moral como uma barreira que te impede de agir, sobretudo quando parte de um superior hierárquico. "Assédio é uma coisa para te limitar. Às vezes, as pessoas falam aquilo para te colocar uma barreira. E é uma barreira psicológica. Eu mesma não conseguia me defender".

A impotência a que ela se refere tem relação com o assédio moral praticado pelo seu antigo chefe, que ela prefere não identificar. "Ele falava coisas do tipo: 'Carina consegue essas [entrevistas] exclusivas porque é mulher, tem o que você não tem'", conta a jornalista, que não conseguia rebater as falas do superior e se calava. "Eu não sei se é porque era chefe e sempre achava assim: 'Pô, chefe a gente tem que respeitar'. Eu via uma ofensa. A pessoa estava tentando me desmerecer, me diminuir. Mas eu não sabia que aquilo me afetava, entendeu? Eu não tinha noção da gravidade", explica Carina ao UOL.

A jornalista também foi vítima das "piadinhas machistas" por parte de colegas de trabalho, sobretudo por ter pouca experiência no jornalismo esportivo e por ser mulher. Ao contrário das provocações do ex-chefe, nestes casos ela conseguia revidar. "Os colegas falavam assim: 'Pô, agora você faz sua vida, vai engravidar de algum jogador, você está aqui para isso'. E falando com naturalidade, como se fosse uma coisa normal, como se não fosse ofensivo. Dessas situações, eu conseguia me defender. Ou eu xingava ou falava: 'Você está louco? Você deseja isso para sua filha? É esse o ambiente que você imagina que sua filha vai encontrar no futuro?'".

Além dela, outros colegas foram vítimas das "piadas" do chefe, também denunciadas ao RH e ao Compliance da TV Globo. Segundo ela, os dois departamentos nunca deram aos colegas um posicionamento a respeito das denúncias. Carina recebeu ligações dos responsáveis pela apuração das denúncias, mas, de acordo com a jornalista, o caso nunca foi solucionado. "Meus colegas falavam: 'ninguém entrou em contato comigo'. A gente tinha o protocolo [de atendimento] e ficava olhando um do outro e não respondiam protocolo. Não tinha um fechamento sabe? O tempo simplesmente passou e nada aconteceu".

O que diz a Globo?

Procurada pela reportagem, a Globo diz que comportamentos abusivos não são tolerados e que apura todos os relatos de assédio. A assessoria de imprensa não se pronunciou sobre o caso específico de Carina Pereira por causa do Código de Ética do Grupo —que prevê sigilo na apuração de toda e qualquer denúncia.

Leia a nota na íntegra:

"A Globo não tolera comportamentos abusivos em suas equipes e todo relato de assédio é apurado criteriosamente assim que a empresa toma conhecimento. A empresa não comenta questões relacionadas a Compliance, pois, de acordo com o Código de Ética do Grupo Globo, assume o compromisso de investigar toda e qualquer denúncia de violação de regras, assim como o de manter sigilo dos processos, não fazer comentários sobre as apurações e tomar as medidas cabíveis, que podem ir de uma advertência até o desligamento do colaborador. Mesmo nas hipóteses de desligamento, as razões de Compliance não são tornadas públicas. A empresa é muito criteriosa para que os estilos de gestão estejam adequados aos comportamentos e posturas que a Globo quer incentivar e para que as medidas adotadas estejam de acordo com o que foi apurado".

Reprodução/Globo

"Tinha vergonha de ser eu mesma"

Contratada em 2014, Carina foi repórter do Globo Esporte Minas e, em 2017, passou a apresentar o programa. Os casos de assédio a que ela se refere aconteceram nesta época. Apesar do desconforto com a postura do chefe, ela diz que só notou que era vítima de assédio moral após fazer a primeira denúncia interna.

"A menina que atendia o Compliance era uma psicóloga e ela falou assim: 'Isso que ele faz com você é assédio. Como você se sente?' E aí comecei a chorar. [...] Você lembra das piadas, mas você não lembra como você se sente. Eu me lembrei como eu me senti e me lembrei do dia em que eu fiquei trancada no banheiro que eu não conseguia sair. Eu fiquei lá porque eu tinha vergonha de me expor. Tinha vergonha de ser eu mesma. Foi a primeira vez que eu falei assim: isso é grave".

Após perceber como as "piadas" do chefe a afetavam, Carina resolveu limitar o contato com ele. "Não estava conseguindo lidar com aquilo. E a partir daí eu comecei a fazer terapia. Eu precisava me defender. A partir do momento em que eu fiz essa denúncia, parei de conversar com ele. Eu estabeleci esse limite. Agora ele não me ofende mais, agora ele não me magoa mais. E eu não conversava mais com ele. Essas ofensas duraram mais de um ano".

Eu chegava [na redação] rindo, sou extrovertida, falando alto. Às vezes era uma piadinha assim: 'nossa, morro de medo da minha filha parecer com você'. Eu [pensava] assim: 'por que ele tem medo da filha dele parecer comigo? Será que meu pai tem vergonha de mim? O que eu faço? Eu envergonho as pessoas?'

Carina Pereira

Arquivo pessoal/Instagram

Condições de trabalho pioraram após denúncia

Depois que ela denunciou os casos de assédio ao Compliance e ao RH, Carina diz que as coisas pioraram dentro da empresa. Primeiro foi a mudança de programa. Em junho de 2019, ela deixou apresentação do Globo Esporte para comandar o boletim esportivo do Bom Dia Minas.

"Eu fui contratada para trabalhar num programa, mas eu fui para outro em que tinha que acordar às 4h da manhã. E eu não podia mais apresentar [o Globo Esporte] aos sábados", reclama.

Carina também diz que foi proibida de fazer reportagens especiais e que quadros criados por ela foram cortados. Além disso, muitas vezes, não eram disponibilizados equipe e equipamentos para ela trabalhar.

"Se eu quisesse fazer alguma coisa diferente, às vezes, faltava um cinegrafista. Eu ia para rua e gravava com o meu celular. [...] Não era uma condição de trabalho igual à de todo mundo. Só para mim era diferente. Teve uma gincana que eu propus, fiz toda a produção, estava tudo certo e no dia de editar, não tinha editor de imagem. O editor de texto que editou para mim. Tudo que eu queria fazer era difícil".

Reprodução/Instagram

Sem arrependimentos

Carina afirma que nunca teve a intenção de expor ninguém e que, ao denunciar os casos de assédio moral, queria fazer com que as coisas melhorassem para todos os funcionários. Em outubro, ela postou um vídeo em que aparece chorando e denuncia ter sido vítima de piadas machistas. Ao UOL, disse que decidiu expor a situação após conversar com um diretor do Compliance da Globo que havia feito uma palestra para os funcionários da sucursal de Belo Horizonte. Na ocasião, ela questionou o motivo de ter sofrido retaliações após as denúncias contra o chefe.

A gente conversou mais de meia hora e, no final, ele pegou minha mão e falou 'não importa onde você está e não importa onde você estará. Mas eu tenho um conselho para te dar: as coisas só vão mudar nesse mundo a partir do momento que as mulheres se unirem e falarem. Se você não expor [sic], nunca vai mudar. Você precisa falar. Esse é o conselho que eu te dou. Fale, não se cale'. E aquilo ficou na minha cabeça. Sai de lá chorando".

Ela gravou o vídeo em seguida, mas ficou indecisa se deveria postar. Chegou a revisar o contrato de trabalho para checar se não poderia sofrer novas retaliações — ou mesmo perder o emprego — caso falasse sobre o assunto. Por causa da repercussão do vídeo, levou uma bronca do chefe. Mas a jornalista diz que em nenhum momento se arrependeu de ter falado sobre a sua situação, nem mesmo quando foi demitida.

"Que bom que aconteceu comigo porque eu tenho coragem de falar. Eu tenho coragem de colocar para fora. Hoje, inclusive, eu recebi uma ligação de um colega que representa o sindicato [dos jornalistas] e falou o seguinte: 'depois do seu pronunciamento já tivemos reunião e saiba que as coisas vão melhorar para as pessoas que estão lá dentro e para o futuro das pessoas'. Então, se eu posso, ou pude, de alguma forma, contribuir para melhorar a vida de alguém, valeu a pena. Não me arrependo de falar em hora nenhuma".

Chefe nova e esperança de mudança

Carina afirmou que em 2020, com a chegada de uma nova chefe, ela achou que as coisas iriam melhorar. Não foi bem assim. A nova superiora propôs "passar uma borracha" em tudo que havia acontecido e começar uma nova história. Em contrapartida, Carina teria que conversar com o antigo chefe.

"Eu fui. Eu acho que esse foi talvez o maior erro da minha vida: fingir que nada tinha acontecido porque aconteceu. A minha sorte é que isso [a conversa] aconteceu no começo da pandemia e eu fiquei de quarentena e fui para casa [em Pains, em Minas Gerais], tirei férias em maio [de 2020], fiquei em home office, fiz uns quadros lá na roça. Voltei para mim, me lembrei de quem eu era, de tudo que eu já tinha passado na vida e falei 'eu acho que ultrapassou meu limite. Eu não aceito isso mais'", disse Carina em vídeo no Instagram.

Ao UOL Esporte, a jornalista contou que, insatisfeita com a posição de apresentadora do bloco esportivo do Bom Dia Minas, em novembro de 2020, pediu para voltar ao GE e apelou para "empatia" da nova chefe. "Eu falei: 'eu acho que já fiz muito, me esforcei, trabalhei muito, mas queria que você tivesse empatia. Se você não tem, prefiro vender linguiça e cachaça'. Depois dessa conversa, eu sabia que estava com os dias contados porque eu fui muito clara".

Ao ser questionada sobre a razão de não ter pedido demissão, Carina explica: "A minha cabeça abriu durante a pandemia, eu procurei outras coisas para fazer, mas eu tinha uma dívida de quase R$ 4 mil por mês por causa do financiamento da minha casa, que só ia acabar agora em março. Então, para mim foi um alívio a demissão porque pelo menos não vou ficar endividada".

Arquivo pessoal/Instagram @carinaapereira

Porta aberta para o futuro: 'Quero algo leve'

Recém-demitida, Carina diz não saber o que vai fazer no futuro. As propostas já apareceram, mas ela está analisando. Aos 41 anos, vê o futuro aberto e opções fora do jornalismo.

"A [demissão me deu a] liberdade de estar no mercado, esfriar a cabeça. Deu essa oportunidade de buscar o que eu quero. [...] Eu quero fazer algo que me dê dinheiro, mas quero fazer algo que me traga mais leveza, em que eu possa ser eu mesma, possa ficar feliz, que não pese tanto. Eu quero algo mais leve na minha vida. Eu quero trabalhar muito porque eu gosto de trabalhar muito, mas que seja algo que me deixe mais leve. Acho que a demissão me proporcionou isso. Agora eu quero pensar numa coisa que eu vou fazer. Eu já recebi algumas propostas de publicidade. Fechei alguns contratos [de comerciais] que vão pagar as minhas contas", disse sem especificar para quais empresas.

Mas o sonho, mesmo, de Carina é outro: "Se eu tivesse grana, eu iria para roça. Eu ia tirar leite, ia ter uma fazenda. Esse é o grande sonho da minha vida: morar no meio do mato, sabe? Mas eu não tenho condição financeira ainda".

Eu me encontrei dentro de mim. Não é o que eu faço. Por isso é muito difícil... Eu tenho medo de pegar o primeiro emprego que aparecer e fazer aquilo e daqui seis meses falar 'não, não é isso' porque não tem o que eu goste demais. Tem o meu jeito de fazer. Eu quero ser só do meu jeito e ser respeitada fazendo do meu jeito

Carina Pereira

Reprodução/Instagram

Jornalista por acaso

O jornalismo entrou na vida de Carina Pereira por acaso. Ela queria mesmo era ser artista circense. "Me imaginava, sonhava em ser a bailarina do circo, a trapezista. Tinha vontade de morar em trailler, de tomar banho de bacia com aquela galera do circo". Mas o sonho da adolescência ficou para trás.

Ela recorda que começou a trabalhar aos 14 anos no departamento pessoal de uma mineradora, ainda em Pains. Também foi vendedora e fez comerciais e eventos em Divinópolis, para onde se mudou aos 19 anos. Aos 21 anos, resolveu prestar vestibular para direito, mas como não conseguiu entregar o histórico escolar a tempo, não pôde se matricular. Jornalismo foi o que sobrou.

O jornalismo esportivo também não estava nos planos de Carina, que começou a carreira estagiando na TV Integração, afiliada da TV Globo em Divinópolis, em que foi produtora e apresentadora. Depois que se divorciou, foi para os Estados Unidos estudar e trabalhou em uma TV para brasileiros na Flórida.

Ao voltar para o Brasil, soube de duas vagas na Globo Minas, em Belo Horizonte: uma delas era temporária e a outra fixa para reportagem esportiva. Ela mandou uma mensagem no Facebook para o responsável pela contratação. Na conversa, ele perguntou se ela tinha experiências com reportagem e jornalismo esportivo. A resposta foi "não" para as duas perguntas. "E ele falou 'então você é muito cara de pau de me pedir uma vaga'. Eu falei 'mas eu gosto de esporte'. A resposta convenceu o futuro chefe que mandou ela fazer um teste, gostou e a contratou.

Não sou boleira de ir a estádio, mas, emocionalmente, eu tenho essa identificação [com esporte]. Meu pai até hoje joga bola. A gente, eu e meu pai, conversa de futebol o tempo todo. É a nossa ligação. Eu fui criada com [Ayrton] Senna e [Nelson] Piquet. Meu pai fazendo maionese e eu assistindo corrida de Fórmula 1 todo domingo

Carina Pereira

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