Em missão

Única brasileira na WNBA, Damiris fala de racismo, problemas do basquete brasileiro e protagonismo inédito

Demétrio Vecchioli Colaboração para o UOL, em São Paulo Stephen Gosling/NBAE via Getty Images

O ótimo desempenho de Damiris Dantas na primeira metade da temporada 2020 da WNBA, na "bolha" montada na Flórida, tem causado frisson no Brasil. Suas atuações são mais do que triunfo pessoal. São um banho de autoestima em uma modalidade carente de ídolos, de visibilidade e de oportunidades.

Sei que sou a única do Brasil, da América do Sul, é meu papel entrar e dar meu melhor, ser espelho para outras meninas que estão surgindo. Eu recebo muitas mensagens de meninas que estão me assistindo na W, que estão jogando o videogame com a Damiris. Isso é uma motivação. Eu sei a responsabilidade que eu tenho, sei de toda a luta de todo mundo. Eu entro jogar pensando nelas."

Na seleção desde os 17 anos, Damiris Dantas há uma década carrega a responsabilidade de ser a próxima estrela do basquete brasileiro. A herdeira da Rainha Hortência, da Magic Paula, da Tia Jane, porém, precisou segurar a lanterna enquanto a modalidade se dirigia ao fundo do poço, ficando fora de Mundial e Olimpíada e perdendo a hegemonia sul-americana após 34 anos.

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O basquete feminino vivia muito de esse ano é a renovação, esse ano é a renovação, e nunca acontecia. As meninas foram parando e não foram surgindo outras. Não tinha realmente a renovação. Tinha menina, mas não jogava, não era convocada. A minha geração sub-19 conseguiu subir no pódio depois de dez anos, fui MVP, fiquei no quinteto ideal, mas daquela geração só tem quatro meninas jogando. Por quê? Porque a gente não teve continuidade. Se a minha geração tivesse tido a oportunidade de jogar, estar mais tempo junta, com certeza teriam mais Damiris".

Hoje só há uma Damiris, a DD, que ganhou protagonismo no Minnesota Lynx na atual temporada, com mais jogadoras desenhadas para terminarem nas mãos dela. Cada bola na cesta é um ponto para Damiris, outro para o basquete feminino do Brasil. Em entrevista ao UOL Esporte, a jogadora de 27 anos embargou a voz e segurou as lágrimas para contar que carrega os sonhos de milhares de jogadoras e que joga por elas.

Parece clichê, mas não é. A menina, que começou em Ferraz de Vasconcelos, foi draftada aos 19 anos e abriu mão de uma temporada inteira da WNBA para treinar com a seleção, sabe que o basquete feminino precisa do sucesso dela. "Eu amo basquete feminino brasileiro. Eu devo tudo que eu tenho ao basquete. E eu quero muito poder retribuir. Eu estando na W(NBA), acabo tendo mais visibilidade. Quero usar a visibilidade que eu tenho a favor das meninas. Mas pode anotar aí: as meninas não vão deixar barato, não."

Stephen Gosling/NBAE via Getty Images Stephen Gosling/NBAE via Getty Images
Stephen Gosling/NBAE via Getty Images

Não posso ter uma casa legal porque sou preta?

Craque do Minnesota, Damiris vive na cidade onde, em maio, a polícia matou sufocado o homem negro George Floyd, no estopim do movimento Vidas Negras Importatam. "Foi tão próximo de mim, sabe?. É super perto de onde o time tem os apartamentos. Fiquei bem impactada mesmo".

Damiris sente o preconceito na pele. Um dia, ouviu uma pessoa perguntar se ela, que estava lavando a calçada da própria casa, era dona ou empregada do imóvel. "Não posso ter essa casa porque sou preta? É sério? Não posso ter uma casa legal porque sou preta? Até quando?"

"Eu preciso falar porque eu tô sufocada, eu tô cansada. Não posso mais aceitar ligar a TV e ver um irmão meu sendo morto. Eu quero sim poder entrar numa loja sem o segurança ficar me olhando. Não é mimimi, acontece diariamente. 'Ah, mas você joga basquete, passa na TV...'. Eles não tão nem aí. Eu sou preta! É o que acontece".

A jogadora não tem medo de se posicionar. "Eu falo nas minhas redes sociais, falo diariamente com meus amigos, meus familiares. A minha pegada é, na roda de amigo, iniciar uma conversa sobre racismo. Ensinar que meu cabelo não é chacota, minha cor também não. Falar que essa piada que você tá rindo, tá doendo aqui. Falar em massa mesmo, aproveitar para falar não só nas redes sociais, falar diariamente com seus amigos, ensinar."

Ned Dishman/NBAE via Getty Images Ned Dishman/NBAE via Getty Images

As pessoas estão morrendo e ninguém tá se importando. As pessoas precisam ter empatia, respeitar o próximo. A gente tem sim que falar de racismo. E eu sou preta, minha família é preta, eu tenho medo por mim, pela minha sobrinha, pelo filho que eu possa ter um dia

Damiris, única brasileira da WNBA

A gente tem que falar com a família. Eu falo com minhas sobrinhas. Alisava meu cabelo até 2015. Não sabia como era meu cabelo. Quando parei, minha irmã parou também. Recebo mensagens de meninas que pararam, que a filha parou, jogadoras e amigas também

Damiris, única brasileira da WNBA

Protagonismo inédito

A temporada 2020, da bolha, é a sétima de Damiris na WNBA. Recrutada em 2012 pelo próprio Lynx em primeira rodada, ganhou experiência por Celta (Espanha), Maranhão e Americana (SP) antes de se apresentar em Minneapolis, dois anos depois. Reserva, mesmo jogando com regularidade, acabou trocada pelo Atlanta Dream durante a temporada 2015.

No ano seguinte, não jogou a WNBA para se dedicar à seleção que disputaria a Olimpíada do Rio. Quando voltou, em 2017, virou reserva. "Tudo aconteceu quando tinha que acontecer", afirma. Foi trocada de novo, para voltar ao Lynx, para recomeçar. Depois de atingir média de 9,2 pontos por jogo na temporada, recorde na carreira, ganhou protagonismo no time que está jogando na bolha.

"A coach (Cheryl Reeve) me deu outro papel, de assumir mais o jogo, de ter mais jogada para eu definir. Eu estou aproveitando a oportunidade que ela está me dando de ter mais chances no ataque. Eu ainda posso melhorar muito na W, de acordo com a o que a técnica vem me pedindo. Ano passado foi a melhor temporada para mim. Quero melhorar para, no fim dessa temporada, dizer que foi a melhor de novo"

Sempre muito elogiada por ser uma atleta dedicada aos treinamentos, em constante busca por aperfeiçoamento, Damiris se concentrou ainda mais. "Eu estou num momento que tô me cuidando muito. Não me cuidava tanto fisicamente, psicologicamente também. Ainda posso melhorar muito. Essa temporada vai ajudar muito, vou me cuidar ainda mais", promete.

Divulgação/CBB Divulgação/CBB

Sobrevivente de uma época em que a base respirava

Damiris é fruto de uma época em que o Brasil tinha estrutura para formar jogadoras de base. Natural de Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, ela se destacou jogando na escola, onde recebeu indicação para participar de uma peneira do projeto social de Janeth Arcain, em Santo André.

"A gente tinha espalhado que o Instituto Janeth ia fazer uma peneira e ela foi uma das meninas que apareceu, junto com uma amiga, que não passou no teste. Uma técnica falou que tinha dúvidas, porque a Damiris não sabia nada. Eu olhei e falei: 'Ela é alta, tem potencial, pode alcançar o que a gente planeja, a gente pode dar uma oportunidade para ela'", lembra Janeth.

De 80 participantes da peneira, só Damiris, então com 13 anos, foi selecionada, recebendo apoio da ONG para ir todo dia de Ferraz para o ABC. Janeth se aposentadoria no ano seguinte, 2007, para se dedicar ao instituto e a Damiris, que ganhou um plano de carreira. Aos 15, foi à Espanha para jogar no Marista, de La Coruña, onde Janeth tem contatos — inclusive, estava lá quando deu entrevista para o UOL.

De volta ao Brasil, Damiris seguiu para Jundiaí, que tinha uma estrutura "perfeita" desde antes de formar a Magic Paula. "Ela continuou me orientando, mesmo não jogando mais na escolinha dela. A partir daí virou a Tia Jane", conta. "Ela cuida de mim, cuida da minha família. No ano passado, foi para a Coreia (do Sul), ficou um mês comigo lá. Quando eu passei por cirurgia, ela veio me acompanhar. É mais do que basquete." Janeth fez curso e se tornou agente Fiba apenas para poder ser oficialmente empresária da jogadora.

Romain Chaib/Divulgação

Talento precoce

Maria do Carmo Ferreira, a Macau, era assistente da seleção sub-19 na primeira convocação de Damiris, ainda aos 16 anos. "Na época, eu era a responsável pelo trabalho de pivô e já via um diferencial, uma técnica muito refinada. Ela é muito inteligente também. Já dava para perceber que ia chegar longe. Ela era a mais nova do grupo, mas não devia nada para ninguém", lembra.

Macau é parte da história do basquete feminino do Brasil. Também estava na comissão técnica do vice-campeonato mundial sub-21 de 2003, que revelou Erika e Iziane. Há 30 anos comandando as categorias de base de Osasco (antigo BCN, hoje Bradesco), viu de perto a formação de atletas no Brasil minguar.

Era uma geração muito forte, que também não teve uma sequência de trabalho. Muitas jogadoras se perdem. A responsabilidade não é só da confederação, mas também da liga e das equipes adultas que não absorvem as meninas mais novas, preferem as mais velhas".

Se antes havia ao menos quatro programas que formavam atletas de nível de seleção em São Paulo — em Osasco, Santo André, Jundiaí e Americana —, agora só restaram os dois da região metropolitana, e apenas com atletas locais. Nenhum dos grandes clubes sociais da capital tem equipes de base no feminino.

"As meninas não estão vendo a luz no fundo do túnel, que é chegar no sub-19 e ter oportunidade de jogar e pular para o adulto", diz Macau. Promessa repetida há anos, nunca foi criada uma liga nacional de desenvolvimento para o feminino. O único estadual forte, o Paulista, tem só quatro ou cinco equipes no sub-19. No masculino, são pelo menos 11 só na primeira divisão.

Mas e Damiris com isso? É por essa garotas que ela joga.

Alexandre Loureiro/COB

Os caminhos no Brasil

A situação é preocupante, mas nem tudo está perdido. "A gente precisa que a liga cresça, que as coisas aconteçam. Isso vai começar a acontecer quando começar a acontecer na seleção", avalia Damiris.

O ponto de virada foi a contratação do técnico José Neto para comandar a seleção. Diversas vezes campeão com o Flamengo, ele nunca havia treinado times femininos e chegou ao cargo com a mente aberta. Mesmo com poucas atletas "selecionáveis", trouxe peças novas para a equipe, mesclou jovens e veteranas, e levou a seleção ao ouro no Pan de Lima, no ano passado. A vaga olímpica em Tóquio escapou com uma derrota inesperada para Porto Rico, no Pré-Olímpico disputado no começo do ano.

"A minha técnica, quando encontrou a gente em Porto Rico, disse que é outro Brasil", lembra Damiris. "A gente foi vítima da nossa própria expectativa. Estava vindo muito mal nos últimos anos, mas pela maneira que vínhamos jogando desde o Pan a gente foi criando a expectativa. A gente se preparou muito, queria muito a vaga, poderia ter conseguindo, mas não estávamos nos preparando para a Olimpíada de Tóquio. Tóquio era só uma parte de um processo", justifica o técnico José Neto.

O Brasil ficou fora da Olimpíada, mas o impulso ganho em 12 meses reenergizou o basquete feminino. "A gente tem grupos de Whatsapp, tanto da seleção quanto da LBF. A gente conversa muito sobre vários fatores que a gente acha que precisa melhorar. E a gente tem se reunido, tem falado nas redes sociais, tem se manifestado. Acho que é importante a gente estar se movimentando", avalia Damiris.

Reprodução/Fábio Leoni

Basquete feminino no Brasil só teve um jogo em 2020

Desde então, a elite do basquete feminino do Brasil fala a mesma língua. Quando a pivô Erika reclamou, em entrevista ao Estadão, do tratamento diferenciado entre homens e mulheres dado pelas marcas esportivas, todas entraram na conversa e replicaram a crítica.

"A conquista de uma é a nossa conquista. Viu que saiu uma matéria da Ramona? Todo mundo ficou muito feliz. Viu que a Deborinha fechou? É nossa conquista", diz, citando uma foto de Isabela Ramona na capa do Estadão do último domingo, em reportagem sobre o êxodo do basquete feminino do Brasil. Seis atletas estão acertadas com times de primeira e segunda divisão na Europa e o número pode chegar a 11, voltando ao nível de 2017.

"Elas precisam viver isso que eu vivo, que a Erika vive, que a Clarissa vive", opina Damiris. Aos 38 anos, Erika deve continuar na Espanha, onde joga a também pivô Nádia Colhado. Aos 32, Clarissa trocou a França pelo Izmit, da Turquia. "Acho importante sair, ter bagagem. Depois, quando juntar todo mundo no Brasil, vai dar uma liga muito boa. E aí talvez uma liga maior, com mais dinheiro, mais visibilidade."

Sem jogar no Brasil desde 2017, depois de quatro temporadas no Americana/Corinthians, Damiris vai na outra metade da temporada à Coreia do Sul, onde joga há quatro anos. Ela sonha com o dia em que o basquete feminino volte a ter atenção do público brasileiro.

"O que a gente quer é que o basquete olhe para o basquete feminino. Eu até coloquei uma foto no grupo de Whatsapp que aqui na W todo dia tem basquete na TV. Todo dia o basquete feminino tá no canal aberto dos Estados Unidos. Falei que esse é o nosso sonho: de estar numa tarde e nossa família estar assistindo a gente na TV aberta."

Por enquanto esse sonho está distante. A LBF 2020 teria um jogo por rodada na Cultura, depois de ocupar a grade da Gazeta e da ESPN nos últimos anos. A temporada, porém, acabou cancelada após só um jogo ser realizado, por causa do coronavírus. Nova temporada agora só em março do ano que vem, se tudo der certo. Tirando esse jogo único da LBF 2020, a última partida de clubes no Brasil foi em dezembro de 2019. Talvez haja um Paulista para jogar em outubro. Talvez não.

REUTERS/Sergio Moraes REUTERS/Sergio Moraes

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