A mar é para todos

Crianças do Complexo do Alemão vão à praia pra surfar e descobrir novos horizontes

Marcello De Vico Colaboração para o UOL, em Santos (SP) Facebook/Surf no Alemão

No Complexo do Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas da Zona Norte do Rio, vivem cerca de 70 mil pessoas. Aos moradores do Alemão são negados muitos direitos, e um deles parece tão banal que outros cariocas talvez nem o considerem um direito: o acesso ao mar.

Para chegar à praia mais próxima do morro leva-se cerca de uma hora. Muitas crianças da favela crescem diante de uma estranha contradição: moram em uma cidade celebrada no mundo inteiro por suas praias, mas conhecem o mar apenas pela televisão. Desde 2010, um projeto social instalado no coração da comunidade leva crianças à praia para ter aulas de surfe e oferece a elas uma alternativa de vida.

Idealizado pelo empreendedor social Wellington Cardoso, o "Surf no Alemão" dá transporte e aulas gratuitas de surfe a crianças da comunidade, mas, no fundo, faz mais que isso. O esporte é apenas uma motivação para que meninos e meninas do Alemão mergulhem em uma realidade diferente da que eles estão acostumados. "Nosso foco é dar alguns prismas para a criança", afirma Wellington, ele mesmo uma "cria" do Alemão. O projeto já atendeu por volta de 200 crianças e chegou a ter uma fila de 100 pessoas à espera de uma oportunidade de surfar na praia.

O "Surf no Alemão" não formou nenhum surfista profissional, mas esse nunca foi o objetivo. Entre os que aprenderam a pegar onda ali estão Luís Fernando Rego, que hoje é bailarino profissional na Dinamarca, se formou na escola mais importante do mundo e já dançou para a rainha Margarida II. A seguir, o UOL Esporte conta as histórias dos surfistas do Alemão.

Facebook/Surf no Alemão
Facebook/Surf no Alemão
Luis Fernando (dir.) surfou por um tempo, mas se apaixonou mesmo pelo balé

Luís conheceu o surfe, mas virou bailarino profissional

Luis Fernando Rego tem 20 anos e virou bailarino de uma companhia de dança na Dinamarca depois de passar pelo Bolshoi, maior referência em dança clássica do mundo.

Luís Fernando se mudou para o Alemão quando tinha 11 anos. Ele se lembra de ver uma van sair todos os finais de semana, distribuindo lanches, e muita movimentação de criança.

"O que acontece todo final de semana que aquela van sai dali com todo mundo segurando lanche?", ele perguntou aos amigos.

"É o surfe. Todo fim de semana nós vamos à praia, no Recreio, para surfar", respondeu uma amiga. Luis logo entrou no projeto, surfou algumas vezes, mas sua verdadeira paixão viria a ser outra: "Minha mãe colocou minha irmã no balé e eu, por ser menino, optei por fazer o surfe, também por ter acesso à praia e um pouco de lazer. E foi quando o Wellington me falou que o Surf no Alemão tinha uma 'pontezinha' para o balé."

Foi então que Luís conheceu outro projeto social na favela: o ViDançar, fundado pela advogada Ellen Serra. Mas com o interesse no balé, veio também o medo do preconceito. Wellington recorda: "Ele começou no surfe e ficava olhando o balé, e eu falei: 'A gente não tem que ter preconceito. Quer tentar?'" Luís teve medo de ser zoado pelos amigos, mas Wellington o incentivou. "Levei ele pra fazer a prova do Teatro Municipal do Rio, ele se formou e está fazendo carreira. Tinha tudo para dar errado, e deu muito certo."

Luis Fernando frequentou o "Surf no Alemão" e virou bailarino do Bolshoi

Alinne Volpato / Bolshoi Brasil Alinne Volpato / Bolshoi Brasil

Do surfe ao balé: basta um salto

Rebeldia e notas baixas afastam garotos da praia

Para fazer parte do 'bonde' do surfe, é preciso se adequar aos três pilares do projeto: tirar boas notas, se comportar e ajudar em casa. Muitos meninos e meninas que já ficaram de fora de algum 'rolê' por conta de notas ruins ou mau comportamento.

O bailarino Luís Fernando costumava ser punido por não se comportar bem: "Fui poucas vezes [surfar] porque eu era um aluno indisciplinado na escola, e às vezes não conseguia alcançar a meta para ir à praia. O Wellington sempre exigia boas notas na escola e bom comportamento na vida. Ele exigia muito, e acredito que fez muita diferença para todos que passaram por lá".

Luis Fernando agradece ao professor de surfe por tê-lo levado a seu primeiro teste no balé, no Teatro Municipal do Rio.

"Eu estava num momento para desistir de tudo, era muito rebelde", recorda. Na ocasião, o garoto costumava faltar aulas do curso de balé, e, quando ia, chegava atrasado. O professor de surfe conversou com a professora de balé, e os dois resolveram dar um ultimato ao garoto. "Foi quando coloquei minha cabeça no lugar. A partir dali comecei a chamá-lo de paizão, pois vi que o sermão que ele deu foi pelo meu bem."

O garoto acabou sendo aceito no Maria Olenewa, a mais antiga instituição brasileira dedicada ao ensino da dança e à formação de bailarinos clássicos. De lá, entrou na filial de Joinville do Bolshoi, até chegar à Dinamarca.

"Consegui minha graduação no Bolshoi. Em 2020, o Bolshoi me deu um contrato como funcionário dentro da escola, como bailarino. Ou seja: me formei como bailarino e continuei dançando com eles até abril." Depois disso, o bailarino foi contratado pela Companhia Tivoli Ballet Theatre. "Ela é localizada dentro de um famoso parque na cidade onde eles fazem espetáculos de balé em dois teatros que ficam dentro desse grande parque. É bem turístico, tem espetáculos todos os dias, e a gente dança balés que foram feitos com a participação com a rainha da Dinamarca."

Facebook/Surf no Alemão Facebook/Surf no Alemão
Arquivo pessoal/Matheus

Primeiro 'surfista' começou aos 9 e virou marinheiro

A história do projeto está diretamente ligada ao CineCarioca Nova Brasília, instalado dentro da favela e gerenciado por Wellington Cardoso. A inauguração da sala aconteceu no Natal de 2010, mesma data de início do Surf no Alemão.

Por causa do curiosidade das crianças da comunidade pelo cinema, a relação com Wellington se tornou cada vez mais intensa, a ponto de ele passar a ser chamado de 'pai' por várias delas. Com ele, elas tiveram o carinho e cuidado que talvez não encontrassem em casa. "Acabavam as sessões e os meninos iam na porta, me chamavam de 'pai'. E fui falando pra eles do surfe, da praia. Pegamos essa ferramenta para eles poderem estudar", conta.

O primeiro menino atendido foi Matheus Oliveira, à época com nove para dez anos — hoje tem 20 e ainda morador no Alemão. "O Wellington perguntou se eu queria ver um filme, se queria uma pipoca, e se eu queria ir à praia com ele. Chamei um primo e fomos. Ele pegou uma prancha e ensinou a gente a surfar." Com dinheiro do próprio bolso, Wellington levava as crianças até a Barra da Tijuca em um trajeto que durava cerca de uma hora.

"Eu ficava felizão quando ia à praia, era a melhor coisa! Esse projeto foi algo que me ajudou pelo fato de processar, distrair minha mente. Se eu não tivesse esse projeto, poderia estar na rua." Hoje Matheus trabalha como marinheiro em Itacuruçá, na ilha da Marambaia, no Rio. Com o interesse de outras crianças e a necessidade de oferecer melhor infraestrutura, foi criada a parceria com o Cades (Centro de Aprendizagem e Desenvolvimento do Surf), uma ONG que promove a educação através do surfe. Com isso, as aulas foram transferidas para o Recreio dos Bandeirantes, praia localizada a cerca de 15 minutos da Barra da Tijuca.

Além da conexão com o próprio Cades, onde rolava um curso de salva-vidas e aula de skate, tinha um espaço no Alemão onde rolavam algumas aulas, era muito legal. O Wellington tirava um ou dois dias da semana e a gente ia para o espaço fazer funcional.

Jonathan, 21 anos, Ex-integrante do projeto que hoje é professor de música e toca clarinete na Orquestra da Juventude da Petrobrás

Idealizador trabalhou em bancos e no jogo do bicho

Facebook/Surf no Alemão

O trabalho e o surfe

"Sou nascido e criado no Complexo do Alemão. Meu primeiro trabalho foi na feira. Depois fiquei com jogo do bicho. Trabalhei na padaria entregando pão na madrugada, no hortifruti, lava-jato, camelô. Fiz estágio no Unibanco, fui efetivado, e em 2005 entrei no Itaú, onde cheguei a gerente-geral. Na crise de 2008, todos os gerentes foram desligados. Na adolescência, também trabalhava na praia, e nisso passei a amar o surfe. Só que não tinha dinheiro, pois o surfe é um esporte caro, então comecei a pegar jacaré."

Facebook/Surf no Alemão

O amor pelas crianças

"Meu pai morreu de HIV quando eu tinha seis anos, mas eu só fui descobrir isso quando tinha 25. Todo mundo falava que ele tinha morrido de ataque cardíaco. Eu era uma criança muito difícil, muito brigão, e graças a pessoas como meu vizinho Jean, ou minha mãe, eu me transformei. Minha mãe trabalhava de manhã até de noite e eu queria honrar ela. E como a gente honra? Sendo uma pessoa do bem, pra que ela possa olhar e falar: 'Meu filho se tornou uma pessoa do bem'". Tento passar isso pras crianças também".

O projeto usa a curiosidade e a vontade desses jovens de ir à praia e praticar um esporte que está tão longe da realidade deles como ferramenta de transformação do ser humano

Carlos Burle, bicampeão mundial de ondas grandes e um dos maiores nomes do surfe brasileiro

O Wellington me convidou para conhecer o projeto. Vi a relação das crianças com ele, chamando de pai, e todo trabalho que ele faz de acompanhar na escola, um trabalho não só no mar. Tenho maior prazer de ver crianças que conheci em 2012 e hoje são cidadãos de bem. Não é só pensar no futuro campeão.

Phil Rajzman, Bicampeão mundial de longboard e padrinho do projeto

Fico emocionado quando falo que todos nós que temos alguma relação com o surfe deveríamos tocar esses projetos com muito carinho e ajudar esses líderes. O Wellington consegue transformar a vida de tantas pessoas e famílias.

Carlos Burle, bicampeão mundial de ondas grandes

O esporte sempre foi um caminho importante para a garotada das comunidades, e no Rio temos o surfe como alternativa. Eu aprendi a surfar em São Conrado, com a molecada da Rocinha. Além de trazer os adeptos para um ambiente saudável, o surfe tem muito a ensinar e faz bem para qualquer pessoa, independente da classe social.

Gabriel, O Pensador, Cantor, escritor e 'solitário surfista'

Facebook/Surf no Alemão

Projeto tenta patrocínio via lei de incentivo

Com a crise financeira provocada pela pandemia, o "Surf no Alemão" praticamente parou - a não ser por algumas aulas no próprio Complexo - e hoje busca patrocínio para continuar atendendo as crianças da favela.

Sem dinheiro, as idas para a praia e as aulas de surfe tornaram-se cada vez mais escassas. "Fomos aprovados e agora é correr atrás de patrocínio", afirma o idealizador do projeto, que está orçado e aprovado na Lei de Incentivo ao Esporte para a captação de recursos, no valor de R$ 537 mil por ano, com captação mínima de 20% até setembro de 2022. "Nosso maior custo é o transporte, porque do Complexo até a praia são 50 km. Eu gastava do meu bolso e conseguia fazer, só que a demanda começou a ficar muito grande", afirma Wellington.

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