O mais vitorioso do mundo

O Corinthians feminino venceu 34 jogos e se tornou o time mais vencedor da história, entre homens e mulheres

Brunno Carvalho e José Edgar de Matos Do UOL, em São Paulo Bruno Teixeira/Corinthians

Trinta e quatro vitórias seguidas. Sim, você não leu errado: 34 resultados positivos consecutivos. Nunca antes na história do futebol profissional, pelo menos no que se tem registro, uma equipe embalou tamanha sequência. O feito tem o DNA brasileiro e as cores alvinegras. A assinatura é do elenco feminino do Corinthians.

Em um momento de alta do futebol das mulheres no Brasil, potencializado pela audiência recorde da Copa do Mundo da França, as corintianas aguardam o carimbo do Guinness Book por um lugar (possivelmente por muito tempo) no livro dos recordes. Mas, afinal, qual o segredo de tamanha soberania?

O UOL Esporte visitou o Parque São Jorge, conheceu o projeto a fundo e traz nesta matéria os grandes destaques da equipe, que disputou hoje (29), na própria Fazendinha, o título do Campeonato Brasileiro diante da Ferroviária. De valentes adversárias que conseguiram segurar dois empates com as favoritas dando ao clube de Araraquara seu segundo título nacional, diga-se.

Independência em relação à imagem do masculino, gerenciamento próprio de quem trabalhava no futebol feminino e um projeto longevo com a mesma comissão técnica surgem como fatores exaltados dentro do clube, que mira algo maior. Além dos títulos, o Corinthians quer construir um legado.

Bruno Teixeira/Corinthians
Bruno Teixeira/Corinthians Bruno Teixeira/Corinthians

Título da Libertadores e independência forçada

O Corinthians feminino existe desde 2016, ano no qual o clube uniu o próprio símbolo ao Audax e comandou um projeto para levar as duas marcas ao topo do futebol nacional. Deu certo. Logo na segunda temporada, a união entre paulistanos e osasquenses resultou no título da Copa Libertadores, que tem hoje o troféu devidamente exibido no memorial corintiano localizado no Parque São Jorge.

A parceria com o Audax, contudo, terminou com a glória sul-americana. O Corinthians quis a independência. Mais do que querer, o Corinthians precisava da independência. A Conmebol obrigou a criação de um departamento feminino aos clubes que miravam as competições no masculino. A partir de então, com dois anos de experiência, o time assumiu a gestão própria.

"Fizemos a lição de casa com os parceiros e trouxemos muitas coisas para cá. A gestão não veio pela obrigação em si, achamos que era a oportunidade com o crescimento do feminino. Quisemos toda a gestão própria, mas com a cara e formato de Corinthians", contou à reportagem Cris Gambaré, diretora do futebol feminino.

Cris é a cara do futebol feminino na diretoria. Ela é responsável por um departamento de 19 pessoas. A carta-branca do presidente Andrés Sánchez surge como respaldo para o departamento agir como julgar melhor, em campo e fora dele, com campanhas de empoderamento das mulheres e fortalecimento da marca de cada atleta.

"Vivo o futebol feminino há pelo menos 11 anos no clube, e nós nos falamos uns com os outros [times]. A aceitação é geral, embora não se tenha a cultura do futebol feminino. O Corinthians, com este trabalho, está mudando a visão. Como, a partir de então, vai vir o São Paulo, o Palmeiras. Agora vai mudar", aposta Cris, já enxergando um possível legado do departamento que classifica como "um bando de loucos".

A engrenagem corintiana

Bruno Teixeira/Ag. Corinthians
  • O departamento

    Cris lidera um departamento de 19 pessoas no futebol feminino corintiano. O elenco possui à disposição médicos, preparadores, psicólogo e nutricionista próprios. A comunicação nas redes sociais é própria e independente -- no Twitter, a conta é seguida por 37 mil seguidores; no Instagram, mais de 300 mil seguem o dia a dia do time. A equipe profissional e a base ainda contam com um ônibus próprio.

    Imagem: Bruno Teixeira/Ag. Corinthians
  • A comissão técnica

    Um dos legados da parceria com o Audax se encontra na comissão técnica. Arthur Elias levou parte dos profissionais e algumas atletas, como Grazi, Cacau, Lelê, Mimi e Pardal, de Osasco para o Parque São Jorge. O trabalho de mais de quatro anos gera entrosamento e versatilidade e surge na avaliação interna como um dos segredos dos quase 40 jogos de invencibilidade. O treinador tem o elenco "na mão".

    Imagem: Bruno Teixeira/Ag. Corinthians
  • Os treinos e a "casa própria"

    O elenco profissional treina todos os dias no espaço destinado à base corintiana no CT Joaquim Grava -- o mesmo do time masculino de Fábio Carille. O Parque São Jorge, que passou por reformas recentes para abrigar até 5 mil pessoas, se tornou a casa oficial da equipe feminina, como mais uma forma de criar uma identidade própria.

    Imagem: Bruno Teixeira/Corinthians
  • Direitos e deveres

    Por falar em casa, algumas jogadoras dividem repúblicas localizadas próximas ao clube. Os apartamentos são bancados pelo Corinthians. As atletas ainda possuem benefícios como plano de saúde no contrato firmado para vestir alvinegro. Por ouro lado, recebem um manual de conduta e ética que se enquadram ao clube como um todo.

    Imagem: Bruno Teixeira/Corinthians
  • A base

    O Corinthians também criou uma equipe de base sub-17. As jovens usam a estrutura do Parque São Jorge e são comandadas por Daniela Alves, ex-jogadora histórica da seleção brasileira e destaque ao lado de Marta e Cristiane no vice-campeonato mundial de 2007. Meninas de 14 a 17 anos, aprovadas em uma peneira, fazem parte do elenco.

    Imagem: Bruno Teixeira/Corinthians
Bruno Teixeira/Corinthians Bruno Teixeira/Corinthians

A voz e o rosto do Corinthians feminino

Cris Gambaré circula pelas alamedas da sede social do Corinthians há décadas. "Boleira" amadora, entrou há 11 anos no conselho deliberativo para cuidar do departamento de futebol feminino. Em 2015, quando o clube era presidido por Roberto de Andrade, recebeu o pedido de Andrés Sánchez para tocar um time profissional com a "cara corintiana".

"Tinha um grupo de 65 garotas, mulheres que brincavam de jogar, todas as terças e quintas dentro do clube. Tenho uma história aqui dentro, sempre fui muito atuante e recebi esse pedido do próprio Andrés. Para uma modalidade que não seria bem vista, precisava ser alguém que quisesse dar certo. Precisava estar nisso para tentar dar certo".

A dirigente abandonou a vida de conselheira para se dedicar ao feminino desde a parceria com o Audax. No Corinthians, enfim, recebe carta-branca e tem a independência para tocar o departamento exatamente como imaginou.

Bruno Teixeira/Corinthians

É Cris quem tem ligação direta com o hoje presidente Andrés, quem conversa com a comissão e também dá a cara a tapa para dar credibilidade a um projeto que, recentemente, trouxe a lateral esquerda Tamires, destaque do Brasil na Copa do Mundo.

Como o 'rosto do futebol feminino' na política corintiana, Cris quis trazer independência. A liberdade, segundo ela, dada pela diretoria do clube resultou em campanhas de marketing direcionadas ao público feminino e com o objetivo de apresentar o perfil próprio do time das mulheres.

"A ideia é cativar. Fomos conquistando passo a passo. Temos o ônibus próprio e parceiros que estão felizes. O futebol feminino ainda é barato e mostramos que é possível, se você alimentar uma marca, que ela seja bem vista. Queremos que nossas jogadoras vivam o tempo todo para o futebol feminino, só damos o mínimo que elas precisam", encerra a dirigente responsável por liderar fora de campo.

Trouxemos as ideias acumuladas de dois anos de parceria para o mundo corintiano, que é louco mesmo. Mostramos a outros clubes que é possível ser feito"

Cris Gambaré, diretora do time feminino do Corinthians

Bruno Teixeira/Corinthians

Alô, Guiness Book?

34 vitórias entre 26 de março a 18 de setembro, com 114 gols marcados e só 10 sofridos

  • 5 x 0 (casa) Internacional, Brasileiro
  • 3 x 1 (casa) Santos, Paulista
  • 5 x 0 (fora) Portuguesa, Paulista
  • 7 x 0 (fora) Sport, Brasileiro
  • 1 x 0 (fora) Taubaté, Paulista
  • 1 x 0 (fora) Avaí/Kindermann, Brasileiro
  • 3 x 0 (casa) São José, Brasileiro
  • 4 x 1 (casa) São José, Paulista
  • 4 x 0 (fora) Audax, Brasileiro
  • 4 x 0 (fora) Juventus, Paulista
  • 3 x 1 (casa) Iranduba, Brasileiro
  • 3 x 2 (fora) Santos, Paulista
  • 5 x 0 (casa) Vitória das Tabocas, Brasileiro
  • 3 x 0 (casa) Portuguesa, Paulista
  • 3 x 1 (casa) Taubaté, Paulista
  • 2 x 0 (fora) São José, Paulista
  • 4 x 0 (casa) Juventus, Paulista
  • 1 x 0 (fora) Foz Cataratas, Brasileiro
  • 9 x 0 (casa) São Francisco, Brasileiro
  • 2 x 0 (fora) Ferroviária, Brasileiro
  • 1 x 0 (casa) Flamengo, Brasileiro
  • 4 x 0 (fora) Minas Icesp, Brasileiro
  • 2 x 0 (fora) Juventus, Paulista
  • 2 x 1 (casa) Vitória, Brasileiro
  • 6 x 0 (casa) Ponte Preta, Paulista
  • 4 x 1 (fora) São José, Brasileiro
  • 4 x 0 (fora) Ferroviária, Paulista
  • 1 x 0 (casa) São José, Brasileiro
  • 3 x 1 (casa) Ferroviária, Paulista
  • 3 x 0 (fora) Ponte Preta, Paulista
  • 2 x 1 (fora) Flamengo, Brasileiro
  • 4 x 0 (casa) Juventus, Paulista
  • 2 x 0 (casa) Flamengo, Brasileiro
  • 4 x 0 (fora) Ferroviária, Paulista

São 38 jogos na temporada, 36 vitórias, 1 empate (1 a 1 com a Ferroviária, em 22 de setembro, pelo primeiro jogo da final do Brasileiro) e 1 derrota (2 a 1 para o Santos, em casa, pela segunda rodada do Brasileirão, no dia 21 de março). 125 gols marcados e 15 sofridos.

E o recorde no livro dos recordes?

O Corinthians enviou um ofício ao Guinness Book para oficializar o recorde de vitórias consecutivas no futebol profissional. O processo ainda está sob análise do livro dos recordes.

Bruno Teixeira/Corinthians Bruno Teixeira/Corinthians

"Nossa casa é o Parque São Jorge"

Se o time masculino tem retrospecto excelente dentro da Arena Corinthians em Itaquera, o lugar que o feminino domina é o Parque São Jorge. É na famosa "Fazendinha" que as comandadas de Arthur Elias mandam seus jogos. A cada nova partida, ações de marketing distintas são feitas para aumentar o interesse do público.

"Aqui nunca é um jogo igual ao outro. Sempre a gente faz alguma coisa diferente, coloca um bandeirão novo. As meninas se sentem muito bem jogando aqui. O Parque São Jorge abriga um número de público adequado à nossa realidade", explica Cris Garambé.

A sequência de jogos no Parque São Jorge fez com que a equipe tivesse um estádio para chamar de lar. A identificação resulta que sugestões esporádicas de levar jogos para a Arena Corinthians sejam prontamente rechaçadas por elas.

"Aqui já virou a casa do futebol feminino. A gente acha legal mandar jogos na Arena, já mandamos uma vez, mas aqui [Parque São Jorge] é a nossa casa. Não queremos levar jogos do nada para Itaquera. Se for para isso acontecer no futuro, tem que ter treinos, planejamento. O Parque São Jorge já é nossa casa do coração", diz a atacante Cacau.

Bruno Teixeira/Corinthians Bruno Teixeira/Corinthians

As campanhas

  • "Não é não" e "Respeita As Minas"

    Campanha lançada na véspera do Dia Internacional da Mulher de 2018 e abraçada por todo o clube, como alerta para o combate à violência e ao abuso sofrido por mulheres. No vídeo, até jogadores do time masculino pedem respeito. A hashtag #RespeitaAsMina virou camiseta e já estampou o painel de LED da Arena Corinthians.

  • "Cale o Preconceito"

    A campanha combate o preconceito enfrentado pelo futebol feminino. Em vídeo, as jogadoras leram comentários retirados da internet e estamparam frases machistas na camisa, como "lugar de mulher é na cozinha". O clube ainda criou um site para detalhar a peça, que objetivava trazer patrocínios direcionados ao time feminino para "calar o preconceito".

  • Bando de loucas

    Patrocinadora máster do time feminino, a Estrella Galícia se juntou ao time e colocou as jogadoras como protagonistas para novamente ressaltar o futebol feminino. "Loucas por fugir à regra e loucas por resistir ao preconceito", diz o centro da mensagem, que pegou um bordão clássico da torcida e transportou para as mulheres da equipe profissional.

Bruno Teixeira/Corinthians Bruno Teixeira/Corinthians

Técnico foi cogitado para assumir seleção antes de Pia

O sucesso do Corinthians passa pelo banco de reservas. Firmado como treinador do clube desde a parceria com o Audax, Arthur Elias é apontado como um dos principais técnicos do futebol brasileiro. Seu nome chegou a ser cogitado para a seleção brasileira quando Vadão foi demitido - a sueca Pia Sundhage ficou com a vaga.

"O meu papel é liderar um processo construído junto com a comissão e as jogadoras. Minha função é colocar tudo em ordem nos momentos certos. Obviamente, minha experiência dentro da modalidade ajuda", explica.

A experiência de Arthur Elias é 100% futebol feminino. Ele está na modalidade desde 2006, quando tinha 24 anos. Durante a carreira, conquistou o Brasileirão com Centro Olímpico e Corinthians e a Copa do Brasil e a Libertadores com a equipe corintiana.

"Essa experiência que eu tenho acredito que influencia em dois aspectos. O primeiro é a facilidade de lidar com as jogadoras, que é algo que conquistei em 14 anos trabalhando com as mulheres. Já a segunda é a facilidade de entender a modalidade em um sentido mais macro, entendendo suas características, dificuldades e potencial", afirma.

Bruno Teixeira/Ag. Corinthians

Como uma jogadora da seleção foi parar no Corinthians?

Durante a campanha histórica, o Corinthians ganhou um reforço de peso. Titular na Copa do Mundo, a lateral esquerda Tamires acertou sua ida para o clube com um contrato até o fim do ano. Mas o que faz uma titular de seleção brasileira aceitar voltar para o Brasil?

"O que me fez fechar com o Corinthians foi ver esse trabalho sério que eles estão fazendo. Essa foi a melhor estrutura que eu encontrei. Antes de jogar por quatro anos na Europa, atuei aqui no Brasil e não via nenhum clube com a organização que o Corinthians tem hoje", explica Tamires.

"Quis ajudar um pouco também. Eu, estando no Brasil, ajuda um pouco a dar uma alavancada no futebol feminino. Isso também foi uma ideia minha. Claro, ainda levei em consideração estar mais próximo da família", acrescenta.

Apesar dos elogios ao Corinthians, Tamires ainda vê alguns problemas na estrutura do futebol brasileiro em geral. "A questão dos campos é o principal. O do Corinthians é bom, mas muitos outros deixam a desejar. Mas isso é algo que acontece também no masculino".

Elas dizem por que o Corinthians é um sucesso

Bruno Teixeira/Corinthians Bruno Teixeira/Corinthians
Bruno Teixeira/Corinthians

Tamires: "O olhar profissional ajuda você a ser mais profissional também"

"O olhar profissional deles ajuda você a ser mais profissional também. Há muitas pessoas nos bastidores sempre trabalhando para o melhor do nosso futebol, sempre dando mais visibilidade. A gente sabe que com toda essa visibilidade vem mais responsabilidade. Se eles estão dando isso para gente, a gente tem que retribuir sendo mais profissional, nos cuidando melhor, para que a gente possa mostrar um bom futebol para todos os torcedores corintianos."

Bruno Teixeira/Corinthians

Grazi: "Posso dizer que é o momento mais especial da minha carreira"

"Já passei por vários clubes, um deles foi o Santos em 2010, mas nem no Santos eu tive essa estrutura que tive no Corinthians. Começou lá atrás com a parceria com o Audax, depois entramos para dentro do clube e a coisa só tem melhorado. Posso dizer que é o momento mais especial da minha carreira. Além de o clube nos valorizar, a gente nos valoriza. Quem acompanha os treinamentos sabe que da mesma forma que a gente treina, a gente joga."

Bruno Teixeira/Corinthians

Cacau: "Roí o osso a vida inteira para agora ter um valor"

"É o melhor momento da minha carreira, em tantos anos que jogo futebol. Com 33 anos, agora estou vivendo o melhor momento, tanto financeiramente como de visibilidade, estrutura. Tudo vem em uma evolução. Roí o osso a vida inteira para agora ter um valor que deveria ter há muito tempo atrás. Fico feliz porque a gente vai deixar um legado para as novas gerações. Tem muita gente trabalhando na nossa comissão, como até analista de desempenho. Tudo isso coopera para a gente estar onde está."

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