Aos alunos, com carinho

Sem falar sobre futebol, Fernando Diniz ganhou o elenco do São Paulo para resistir e buscar títulos

Thiago Fernandes Do UOL, em São Paulo Paulo Pinto/São Paulo FC

No imaginário do futebol brasileiro, quando se fala em Fernando Diniz, talvez a primeira cena que venha à cabeça de torcedores e da crítica é a da saída de bola com os pés do goleiro para os zagueiros —quando Daniel Alves não está disponível—, supostamente correndo riscos dentro da grande área. A chamada "saidinha", que de alguma forma virou a jogada a simbolizar o que se presume ousado ou até louco na proposta de jogo do técnico do São Paulo.

Para os jogadores em seu convívio, dos medalhões às crias de Cotia, o que Diniz projeta em termos táticos nem é o principal, embora seja evidentemente importante. Esqueça os treinadores que gostam de falar sobre futebol com um vocabulário repleto de neologismos, pensando em formações mirabolantes. O que se escuta sobre o treinador ao redor do Centro de Treinamento da Barra Funda se volta mais ao modo como se relaciona com o grupo.

Não é por falta de aviso, de todo modo. O técnico do atual líder do Brasileirão, que tem um jogo para lá de importante hoje (16) contra o Atlético-MG, o segundo colocado, sempre reitera em suas entrevistas que o futebol não deve se limitar aos eventuais rabiscos numa prancheta. Mais errado ainda seria avaliar jogadores exclusivamente sob esse prisma, no seu entender.

Diniz é psicólogo de formação. Mesmo que o rótulo também não o deixe totalmente à vontade quando citado entre suas virtudes, o UOL Esporte mostrará a seguir como a busca por vínculos até profundos com atletas sempre foi sua meta —e pode estar por trás do sucesso hoje desfrutado na temporada. Foi, certamente, algo que lhe ajudou a permanecer no Morumbi até aqui.

O interessante é que, quando um grupo de jogadores prestigiados do São Paulo, com Daniel Alves e Hernanes entre eles, recomendou à diretoria de futebol sua contratação em setembro de 2019, o que eles tinham em mente eram justamente os ideais táticos. Eles queriam um professor. Também ganharam um amigo.

Paulo Pinto/São Paulo FC
Felipe Rau/Estadão Conteúdo

Alô, Tchê Tchê

Danilo das Neves Pinheiro já era bem conhecido no futebol brasileiro como Tchê Tchê. Projetado no Audax vice-campeão paulista com Diniz em 2016, o polivalente jogador teve passagem proveitosa pelo Palmeiras entre 2016 e 2018 até viajar para jogar na Ucrânia, pelo Dínamo Kiev. Estava, portanto, bem distante de São Paulo, sua cidade, e do São Paulo, seu próximo clube, quando mantinha contato constante com seu atual treinador —que, lembremos, à época era somente um ex-treinador. A essa altura, já era um hábito de ambos.

Ao deixar o Audax em 2016 para se transferir para o Palmeiras, aos 23 anos, o meio-campista se deparava com uma nova realidade. Acostumado a defender clubes de menor expressão, chegou à Academia de Futebol com a responsabilidade de justificar a indicação de Cuca.

A grandeza do novo desafio foi sentida pelo garoto de 23 anos em um primeiro momento. As incertezas suscitadas o impeliram a ligar para Diniz, então um técnico também habituado a clubes menores, mas que, como jogador, já havia vivido, digamos, o outro lado. Pois a conversa não durou um dia só. Virou um bate-papo recorrente, quase como se fosse um "disque Diniz". O pupilo buscava orientações para questões de vida e também, claro, aquelas geradas em campo. Demorou um pouco, mas Tchê Tchê adquiriu a confiança necessária e deslanchou pelo Palmeiras campeão nacional em 2016.

Quando o jogador partiu para a Ucrânia, a companhia (virtual) de Diniz se tornou ainda mais valiosa. A mudança de país, o clima bem mais frio, a barreira da língua mais uma vez assustaram ao meio-campista, e o técnico seguiu dando suporte. Um ano depois da aventura no Dínamo de Kiev, voltou ao Brasil para defender o São Paulo, pelo qual primeiro reencontraria Cuca. Pouco mais de cinco meses depois do retorno ao país natal, voltou a seguir as orientações de Diniz, dessa vez diretamente, olho no olho.

O caso de Tchê Tchê é o mais emblemático, uma vez que ambos emergiram em cenário nacional juntos. Aliás, os jogadores comandados por ele no Audax entre 2013 e 2017 seguem à sua procura, independentemente do time que defendam hoje. É como se fossem parte de uma família. A abertura para conversar diariamente com os jogadores transforma Fernando Diniz em um conselheiro. A paciência, a tentativa de orientá-los e o seu tato permitem que ele dialogue com jovens e veteranos, não importando a distância que os separam.

Paulo Paiva/AGIF Paulo Paiva/AGIF

Primeiro a informação, depois o papo. E o Pato

A pressão externa, as críticas da imprensa e da torcida e os movimentos de redes sociais não costumam interferir no trabalho de Fernando Diniz. O técnico procura se manter alheio ao mundo fora do CT da Barra Funda. Mas não é que esteja fechado a histórias e ao que testemunha no trabalho do cotidiano. Ele procura tomar conhecimento sobre o passado dos atletas para tomar decisões relevantes envolvendo a equipe. Tudo para tentar acertar o ponto certo na hora de abrir uma conversa.

Nem sempre dá certo, é verdade. Que o diga Alexandre Pato.

Antes mesmo de assumir o comando da equipe, Fernando Diniz escutou de pessoas próximas que seria difícil lidar com o atacante. Mas o técnico fez o movimento que julgava necessário, abriu contato direto com o atleta e o escutou a fim de entender por que ele não vinha rendendo em seu retorno ao clube.

O comandante ouviu de tudo um pouco sobre a história do jogador, indo atrás até mesmo de fontes que conviveram com o atleta nos tempos de Internacional, time que defendeu dos 11 aos 18 anos. Os relatos do atleta, sobretudo sobre sua experiência nas categorias de base, comoveram o comandante são-paulino, que decidiu apostar em sua recuperação. A insistência em Alexandre Pato é mais um retrato do que o técnico costuma fazer em seus trabalhos. Ele também acredita que essa aproximação com os jogadores tende a colocá-los ao seu lado quando a bola está rolando.

No caso de Pato, virou uma empreitada, que durou quase um ano inteiro. Em agosto passado, o jogador decidiu deixar o São Paulo e teve a rescisão aprovada pelo comandante, já com relatos de que o técnico estava bastante contrariado com a resposta dada pelo atleta em campo. "Foi por iniciativa dele", disse. "Os jogadores que estão no São Paulo, um time desse tamanho, e querem sair, acho que eles têm que sair mesmo."

LUCAS MERÇON / FLUMINENSE F.C.

"Você vai ser aquele Ganso"

A negociação do Fluminense com Ganso foi mais uma demonstração do lado humano de Fernando Diniz. Depois de um encontro pelo Campeonato Paulista em 2016, o treinador fez questão de ir até o meia para fazer uma promessa: "Quero ser seu comandante. Um dia você vai jogar para mim".

Três anos depois, Diniz negociava com o Flu, e Ganso já vivia uma espécie de ostracismo na Europa. O interesse do Tricolor pelo meia condizia com o do treinador. Gozando de boa relação com a diretoria, Diniz pediu o telefone do camisa 10. A primeira ligação foi clara: "Estarei lá e farei de você 'aquele' Paulo Henrique Ganso que encantou o Brasil".

Algumas outras chamadas foram feitas entre os dois no período de negociação. Ao aceitar a proposta do clube e fechar a transferência, o meia que ligou para o técnico e cobrou a lembrança. Diniz, em tom de brincadeira com fundo de verdade, começou com uma exigência. "Vou te mostrar que você pode competir, mas vai ter que dar carrinho", avisou.

A relação entre os dois era tão boa, que quando o técnico deixou o Fluminense, o jogador passou alguns dias cabisbaixo. A tristeza era clara, ainda que, antes do entrevero, Oswaldo de Oliveira tenha mostrado muita confiança no meia. Ganso só voltou a se sentir importante sob o comando do interino Marcão, exercendo também a liderança em assuntos de cúpula com o diretor Paulo Angioni e o presidente Mário Bittencourt.

Quando a bola rola...

Daniel Vorley/Daniel Vorley/AGIF

Os jogos sem torcida por conta da pandemia do novo coronavírus possibilitam ao telespectador uma experiência ainda mais rica em detalhes: ouvir o que é dito à beira do campo entre os treinadores e os jogadores.

Pois as falas de Fernando Diniz estão hoje entre as mais repercutidas. Se a comunicação com os atletas virou uma virtude, as interações durante os 90 ingressaram no mundo dos memes rapidamente. Nesta temporada, por exemplo, o comandante do Tricolor paulista chegou a dizer de modo nada singelo ao atacante Luciano as seguintes palavras: "Parabéns, Luciano. Tomar no c*", esbravejando após a arbitragem assinalar pênalti para o Red Bull Bragantino, no Morumbi, devido a um toque de mão do atacante.

Agora, se formos voltar a fita, lembramos que Diniz já havia sido alvo de críticas por seu discurso acalorado na beira do campo em 2017 —quando ainda era técnico do Audax e venceu por 4 a 2 uma partida contra o São Paulo, na abertura da temporada. Durante a parada técnica para reidratação dos atletas, o treinador se desentendeu com um deles e disse: "Cala a boca, quem manda aqui sou eu".

Essa postura só é possível, hoje no São Paulo, devido ao relacionamento estabelecido nos dias que antecedem os jogos. O técnico sabe que tem o grupo nas mãos. Diniz é querido pelos atletas do elenco são-paulino, e quando, nesta temporada, quando foi levantada a possibilidade de ele deixar o clube depois do fracasso no Campeonato Paulista ou da queda na fase de grupos da Libertadores, muitos jogadores saíram em defesa do treinador.

Isso foi atestado após a classificação da equipe contra o Fortaleza, nas oitavas de final da Copa do Brasil. Suspenso, o técnico não estava em campo. Mesmo assim, após a vitória nos pênaltis, o herói Tiago Volpi fez questão de citar Diniz como um dos protagonistas daquele triunfo, usando o termo "paizão".

Ainda que tenha o ouvido dos jogadores, o técnico tem a ciência de que por vezes passa do ponto com sua postura enérgica quando a bola está rolando. Já ouviu conselhos para maneirar, se esforça por um maior controle, mas, no fim, reconhece que seu lado competitivo fala mais alto.

Miguel Schincariol/São Paulo FC Miguel Schincariol/São Paulo FC

Bem, amigos

"Não é um trabalho só de técnico e jogadores e nem só de comissão técnica e jogadores", disse Diniz após a vitória por 4 a 0 sobre o Botafogo, na semana passada. A declaração do técnico é sútil, mas fazia menção a um restrito grupo de amigos que o auxilia no dia a dia da profissão, além dos membros do departamento de futebol do São Paulo.

O treinador tem por hábito se aconselhar com pessoas que não atuam diretamente na área do futebol. Os amigos costumam contar casos de suas rotinas. A partir daí, Diniz carrega algumas ideias para seu campo de ação.

Talvez, os únicos do esporte que tenham liberdade para falar com o comandante diariamente sejam o agente Beto Rappa e o amigo Guilherme Prado. A dupla, contudo, pouco fala sobre esquema tático, filosofia de jogo ou padrão dentro das quatro linhas. As conversas costumam seguir a linha que ele justamente mais preza, sobre questões pessoais.

Aliás, para um técnico cujo estilo de jogo desperta tanta repercussão, não deixa de ser irônico que ele fale tão pouco sobre tática em seu círculo mais próximo. Por outro lado, vale o registro: é raro que ele adote sugestões de pessoas que estejam fora desse círculo de amizade e da sua comissão técnica.

O treinador são-paulino costuma dizer que não se inspira em nenhum outro colega de trabalho, mesmo referências contemporâneas como Pep Guardiola ou Jürgen Klopp.

Além da inspiração fora das quatro linhas, ele costuma trabalhar com um método empírico ao buscar soluções para a equipe. Diniz testa alternativas até encontrar uma que funcione em seu dia a dia de São Paulo.

Staff Images / CONMEBOL Staff Images / CONMEBOL

Reforços? Fica para a próxima

Quando Paulo André, já atuando como dirigente do Athletico-PR, chamou Fernando Diniz para uma entrevista de emprego em 2017, esperava escutar os planos detalhados para a montagem do time, para a forma como pretendia levar o time curitibano a um salto na elite nacional.

Diniz estava concluindo sua quarta passagem pelo Audax, ainda com o prestígio carregado pelo que apresentaram na surpreendente campanha pelo Paulistão-2016. Quando sua equipe derrotou São Paulo e Corinthians nos mata-matas e perdeu para o Santos numa final parelha.

O encontro, em São Paulo, foi arranjado por um amigo em comum. Foi um bate-papo intenso, na qual o ex-zagueiro acabou escutando muito mais sobre a visão do treinador a respeito do futebol brasileiro —"um moedor de carne", costuma dizer. Pouco se falou sobre eventuais reforços, mesmo que aquele pudesse ser seu primeiro desafio por um clube da elite nacional.

Paulo André até insistiu em uma discussão mais boleira, mas não teve sucesso. Diniz insistiu na mensagem de que seu diferencial seria trabalhar de forma profunda o relacionamento com os atletas. Ainda assim, intrigado com essa filosofia, o dirigente fechou negócio, e Diniz foi anunciado em 3 de janeiro de 2018 também como coordenador técnico. Teve tempo para preparar terreno, assistindo Tiago Nunes comandar um time alternativo rumo à conquista do Paranaense. Paralelamente, preparava a equipe para a disputa de Copa do Brasil, Sul-Americana e Brasileirão.

A boa —e talvez estranha— impressão causada no primeiro encontro com Diniz não foi o suficiente para que o técnico tivesse tempo de trabalho na Arena da Baixada. Em 25 de junho de 2018, o técnico foi demitido por uma sequência negativa de resultados. O Athletico-PR depois seria campeão da Sul-Americana sob o comando de Tiago Nunes. Em campo, na festa do título, diversos jogadores fizeram questão de mencionar Diniz.

Rubens Chiri/São Paulo FC

Atenção, garotada

Segundo técnico mais longevo entre os 20 comandantes da Série A, atrás apenas de Renato Gaúcho, Fernando Diniz carregou por muito tempo a pecha de ser um pedido de Daniel Alves a Raí, o diretor de futebol do clube. Algo, no mínimo, impreciso, pelo fato de Tiago Volpi, Hernanes, Reinaldo, Tchê Tchê e, também, Pablo (com quem havia trabalhado pelo Athletico-PR) terem participado da conversa decisiva. Vagner Mancini era o coordenador do time e seria efetivado como técnico, mas a cúpula optou pela contratação do profissional que havia sido demitido pelo Fluminense há pouco mais de um mês. Hoje, está evidente que não existe uma "panela" protegendo o treinador.

Não há um dia no centro de treinamento da Barra Funda que passe sem bate-papo alongado entre os jogadores e Fernando Diniz, muitas vezes em separado. Neste caso, as principais preocupações são os jovens revelados em Cotia. O zagueiro Diego Costa, o volante Luan, os meias Igor Gomes e Gabriel Sara e o atacante Brenner são aqueles que pedem e recebem mais atenção. As conversas extrapolam os muros do CT, com o telefone do técnico vibrando constantemente.

Diniz tem a preocupação que os jogadores em ascensão se envolvam em problemas extracampo. Quer que o foco deles seja estritamente o desenvolvimento de carreiras que julga bastante promissoras. E lá vai mais conversa sobre amigos, familiares e namoradas. Por que não o planejamento financeiro? É o modus operandi de quando trabalhava sob menos exposição e sob menos pressão.

A cumplicidade gerada também é a mesma, e Diniz vai respaldado rumo às semifinais da Copa do Brasil, contra o Grêmio, a partir da próxima semana, ao mesmo tempo que luta pelo Brasileirão. Caso tenha sucesso, o treinador poderá falar sobre aquilo que falta em seu currículo, títulos. Embora talvez prefira conversar sobre outra coisa.

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