Sem tempo, irmão

Como calendário apertado deixa o torcedor mais ansioso e até diminui prazer com o futebol

Arthur Sandes e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Getty Images

Quem piscou, perdeu. A temporada de 2020 no futebol brasileiro, disputada em meio à pandemia e com estádios vazios, agora é a temporada de 2021. Não mudou quase nada: os times, os protocolos, as trocas de técnico e principalmente as discussões sobre o VAR continuam, assim como a pressa — esta, sim, a protagonista desta reportagem.

Os aspectos práticos você já conhece: o futebol parou pela pandemia, foi retomado durante esta mesma pandemia, depois foi espremido em menos tempo do que deveria e agora deu em um ano que começa sem pré-temporada. Para além dos tão debatidos efeitos físicos, este encavalamento de jogos desencadeia também consequências emocionais. São tantos jogos em tão pouco tempo que até a sua relação de torcedor com o próprio jogo já não é mais a mesma.

A desordem do calendário esportivo brasileiro não é culpa particular da covid-19, naturalmente, mas a pandemia acentuou o problema e até o torcedor está capturado pela lógica ansiosa da virada de temporada. Portanto, esqueça o clichê de "aproveitar a jornada" pois a jornada em si é avassaladora e mesmo um título muito esperado, quando vencido, não dá mais do que alguns dias de alegria.

O troféu mais cobiçado do continente foi celebrado pelo palmeirense por menos de 72 horas e novos desafios logo vieram. Até o título da Copa do Brasil foram apenas 36 dias. Já o flamenguista bicampeão brasileiro teve cinco dias de proveito antes da estreia no Carioca. Ganharam o título em um dia, e no outro já estavam convocados a recomeçar a caminhada, um ciclo abusivo de 364 dias de desejo e só um de deleite — este, exclusivo para os poucos campeões.

Se você não tem mais tempo nem de comemorar, torcer pelo seu time te deixa mais alegre ou só mais ansioso? É a pergunta que o UOL Esporte tenta responder.

Getty Images
Thiago Ribeiro/AGIF

Campeão na quinta, em campo na terça: como é o calendário insano

O futebol parou em março de 2020, como quase tudo na vida brasileira. O Campeonato Carioca deu o primeiro passo da retomada três meses depois, num Flamengo 3 x 0 Bangu. Já o Paulista voltou perto do fim de julho, enquanto o Brasileirão começou em 8 de agosto e daí tudo ganhou aparência de normal.

O problema é que havia outros torneios, como Copa do Brasil, Libertadores e Sul-Americana, além de alguns Estaduais e Regionais pendentes. Foi preciso espremer os compromissos, o que fez clubes como Grêmio e Palmeiras entrarem em campo a cada 3,4 ou 3,5 dias.

Os dois times foram os finalistas da Copa do Brasil, com jogos em 28 de fevereiro e 7 de março. Tanto o Paulistão, quanto o Gauchão-2021, começaram em 27 de fevereiro — portanto, antes da final invasora da temporada seguinte que sacramentou o título dos paulistas.

O Palmeiras campeão da Libertadores em 30 de janeiro já entrou em campo no dia 2 de fevereiro para enfrentar o Botafogo pelo Brasileirão. Cinco dias depois estreou no Qatar pelo Mundial de Clubes, contra o Tigres-MEX. Disputou o terceiro lugar no dia 11, perdeu, e dia 14 já estava de volta para duelar contra o Fortaleza. O time que conquistou um dos troféus mais importantes de sua história também viveu uma das maiores frustrações — tudo isso em dez dias. E depois deixou isso para trás com mais um grande título.

Os exemplos de encavalamento das temporadas se multiplicam, como é o caso do Flamengo campeão brasileiro na quinta-feira, que na terça seguinte já estava em campo pela nova edição do Carioca; desta vez com reservas. Também há o caso do Atlético-GO campeão estadual de 2020 no sábado e que viu a temporada 2021 começar no domingo já tendo um jogo adiado.

Isso não significa que qualquer dessas conquistas valha menos, e sim que nenhum torcedor merecia perder o direito de desfrutá-las.

iStock

O torcedor à flor da pele

Estudos já mostraram que o corpo do torcedor reage a vários estímulos durante um jogo, isso não é novidade. O cérebro entende o ato de torcer como se a pessoa fosse submetida a uma situação de estresse, o que ativa um sistema que libera dopamina e adrenalina.

Eles são conhecidos como os hormônios do estresse, ou seja, aumentam a pressão e os batimentos cardíacos. Também intensificam o suor, deixam as mãos frias (pela contração das artérias), dilatam as pupilas e atrapalham funções do organismo —as mesmas alterações de quando uma pessoa está com a vida em risco. A própria Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) reconheceu que há grande aumento de ataques cardíacos e derrames durante jogos. É como uma crise de ansiedade.

"Os resultados de pesquisa em relação aos componentes físicos e subjetivos da ansiedade momentânea nos revelaram que o sintoma mais presente é a incapacidade de relaxar e o hábito de se sentir nervoso. O que pode acontecer com a permanência desses sintomas é um estado de incapacidade de relaxar mais acentuado e duradouro, o nervosismo à flor da pele", explica Aline Colares, doutora em Educação Física pela Unicamp e autora da tese "Fisiologia das emoções: os torcedores fanáticos de futebol".

Todo o nosso corpo biológico funciona em um padrão de tensão e relaxamento, e se esse padrão é acentuado para qualquer dos lados nós temos uma disfunção."

A busca da felicidade quando o time vence é um dos achados da pesquisa de Colares, mas outras emoções também aparecem, como tristeza e raiva. Eles podem desencadear exaustão física, emocional ou mental.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

A banalização do espetáculo

Quanto mais frequentes são esses estímulos no corpo, maior é o risco de os jogos serem percebidos pelo torcedor como algo trivial, já muito batido e portanto menos empolgante. "A disputa de um jogo remete a uma conquista. Quando você banaliza esta conquista, ela deixa de ter o efeito entorpecente de curtir a vitória", resume Katia Rubio, psicóloga e professora da Faculdade de Educação Física da USP.

"Tanto o torcedor, quanto o atleta, não têm tempo de elaborar uma conquista, então temos uma banalização. Quando você retira a celebração da vitória, que seria algo parecido como vencer uma guerra, é como se a disputa em si perdesse um pouco o sentido", elabora Rubio. Quanto mais repetido o ritual, menos simbólico ele fica. Na prática, seu time joga demais, e você se importa menos.

Katia Rubio alerta que o risco que todos corremos é de que o "futebol quarta-domingo" tenha o efeito contrário do esperado. "Ao invés de haver um consumo maior do evento, o que se tem é o público refutando o espetáculo medíocre", afirma.

Os números de audiência da TV confirmam a tese: segundo dados do Ibope em São Paulo, o Brasileirão de 2019 rendeu média de 23 pontos, enquanto o de 2020/21 caiu 8,7% para 21 pontos. Cada ponto de audiência equivale a 214 mil lares.

Bruna Prado/Getty Images

Quando o escape vira rotina

A função do futebol como escape das tensões sociais está muito bem estudada em "A busca da excitação: esporte e lazer no processo civilizacional", livro escrito pelo sociólogo alemão Norbert Elias. Na obra, ele explica como o ritual que envolve o jogo serve também para nos aliviar dos dissabores do dia-a-dia.

A análise de Elias não se resume ao futebol, pois a relação do indivíduo com o ritual é bastante semelhante em quase todas as modalidades esportivas. A caça à raposa, por exemplo, foi muito popular na Inglaterra por 300 anos, até ser proibida em 2005.

O sociólogo reflete que "a caça só se tornou realmente um prazer quando se assegurava um período de antecipação suficientemente longo. Tal como no futebol, sem um período de antecedência do prazer bastante extenso e excitante, o clímax da vitória perde alguma coisa da sua sedução". Elias escreveu estas linhas em 1985, mas parece falar exatamente dos Campeonatos Estaduais de 2021.

Com jogos sem parar e temporadas inteiras separadas por apenas 72 horas, este "período de antecedência" simplesmente não existe no futebol brasileiro atual. Faltam raposas para tanta caça. A uma situação como esta, Norbert Elias arremata: "se o jogo é desinteressante em si mesmo, até a vitória pode ser, de certo modo, uma desilusão."

Desta forma, o que deveria ser um escape da rotina se torna ele próprio parte da rotina. "Para o espectador e para o atleta, [os jogos] passam a ter a mesma função do trabalho alienante", acrescenta a psicóloga Katia Rubio. "Este calendário é a própria alienação do esporte."

Jorge Rodrigues/AGIF

"Ganhar um título e começar outro torneio trai a lógica do desejo"

Já parou para pensar que tudo na sociedade é milimetricamente contabilizado? Segundo Aline Colares, "é como se a cada segundo, a cada estímulo competitivo, a cada medição da sua existência, a cada publicação visualizada, o sistema dissesse que é preciso correr mais para se manter vivo, aceito e pertencente a este grupo social". É como se o corpo estivesse numa eterna luta para manter sua vida.

Por trás dessa conclusão fisiológica existe uma dimensão filosófica. Francisco Bosco, filósofo, ensaísta e comentarista do programa "Papo de Segunda", no GNT, sabe bem — até porque é torcedor do Flamengo: "Você acabar de ganhar um título e já começar outro campeonato trai a lógica do desejo, que precisa de um tempo de recuperação. Ninguém deseja o tempo todo a 220 V, nem jogadores, nem torcida, nem amantes, ninguém. O desejo precisa se recuperar, descansar um pouquinho, para poder voltar a experimentar a coisa com intensidade."

O engavetamento do calendário é sintoma de um fenômeno das culturas contemporâneas, de uma sociedade viciada em estímulos sensoriais, em ocupação. Temos horror ao vazio, a tudo que é contemplativo, meditativo, silêncio, signos de baixa intensidade. Há uma compulsão ao reconhecimento também, estamos todos postando coisa e querendo like. É uma sociedade que se organiza a partir de uma dinâmica do vício, e o que caracteriza o vício é a demanda por mais estímulo que, entretanto, gera menos intensidade de experiência. Isso vale para tudo na vida, também para o futebol."

Nos tempos de hoje nem o nosso futebol está a salvo.

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