Êxtase e agonia

Maradona completaria 61 anos hoje (30), sábado marcado pelo saudosismo dos súditos e revolta dos seus críticos

Tales Torraga Colunista do UOL Getty Images

"Do êxtase à agonia/Oscila nossa história". O trecho está no rock "La argentinidad al palo", hino nacional informal entoado por toda a Argentina na canção da banda Bersuit Vergarabat. Êxtase e agonia são descrições precisas para a vida e obra de Diego Armando Maradona, que completaria 61 anos hoje (30).

Expoente sem igual da "argentinidade ao máximo", o craque morreu no último dia 25 de novembro, por uma parada cardiorrespiratória, e sua recente desaparição fará do sábado argentino uma catarse melancólica digna do mais amargo tango.

Acostumados a tratar Maradona como um parente querido - e em alguns casos muito mais que isso -, os argentinos já prestam muitas homenagens a Diego. Desde missas da Igreja Maradoniana a shows de música, passando pelos jogos de futebol beneficentes e profissionais. Mas quem imagina um consenso pró-Diego desconhece o cotidiano argentino, onde o consenso é impossível. Parte da população do país promete boicotar e hostilizar as homenagens pela revelação dos seus últimos e mais pesados escândalos.

Filha do craque, Giannina Maradona definiu nas redes sociais o clima deste sábado: "Tenho medo, meu coração não vai aguentar". Para alguns, hoje é Natal e Ano Novo, o início do ano 61 D.M (Depois de Maradona). Para outros, o culto não faz sentido no mundo civilizado que condena relações abusivas.

Êxtase, pelas glórias de Maradona em campo. Agonia, pelos graves atos fora dele.

La argentinidad al palo.

Getty Images
Carl de Souza/AFP

Para Diego que está no céu

Quem viu a Copa do Mundo de 2014 certamente cansou de ouvir a música "Brasil decime qué se siente", cantada sem parar pela torcida argentina nos mais diferentes estádios e concentrações. Na Argentina, hoje, há um novo "cântico", como eles chamam, tão pegajoso quanto este de sete anos atrás. E a canção atribui a Maradona, "hoje no céu", o milagre de fazer a seleção argentina campeã de novo.

"Y al Diego, desde el cielo lo podemos ver /Con Don Diego y con la Tota / Alentándolo a Lionel".

"Ao Diego, desde o céu podemos ver/Com o Seu Diego e com a Tota/Torcendo por Lionel Messi", é a referência a Maradona e seus pais, todos já mortos. A música começa com a afirmação que escancara o famoso orgulho dos vizinhos: "Nasci na Argentina, terra de Diego e Lionel".

A letra adapta a música "Muchachos", da banda de pop/rock La Mosca, cantada por diversas torcidas no país, especialmente a do Racing.

Caminhando pelas ruas de Buenos Aires ou parando em um típico café portenho para conversar sobre futebol, não é raro ouvir que, sim, é Maradona o responsável pela excelente fase argentina. A azul e branca não perdeu nenhuma vez sequer desde a morte do craque, conquistando um título, a Copa América, contra ninguém menos que o Brasil em pleno Maracanã. A Argentina estava na fila fazia 28 anos.

Os milagres maradonianos, claro, não se limitam à torcida, e viraram grandes oportunidades de negócio. Líder do mercado argentino de cervejas, a Quilmes fez um comercial de TV a respeito cheio de emoção.

Reprodução/Twitter

Igreja Maradoniana terá "sábado santo"

Choro, velas, abraços, mantras. O fim de semana será de comoção extrema nas Igrejas Maradonianas espalhadas pela Argentina e pelo mundo.

A igreja tem mais cara de fã-clube do que de igreja propriamente dita. Os "fiéis" se unem para beber e festejar vitórias de futebol, não para um compromisso religioso ou contemplativo. A Argentina do Papa Francisco tem 75% de católicos (cerca de 35 milhões) e traz na rotina diversas analogias a Cristo e Deus. É natural, portanto, que uma comparação recaia sobre o "deus do futebol" Maradona. Mais ligado às monarquias, o Brasil prefere os "reis", Pelé e Roberto Carlos.

Com adaptações do Pai Nosso, da Ave Maria e dos Dez Mandamentos, a Igreja Maradoniana foi fundada em 1998 na cidade de Rosário e promete um sábado enlouquecido nas suas sedes (algumas ficam em campos de várzea).

Seus fundadores copiam frases curtas de efeito que caracterizaram Maradona. "O dia em que eu morrer, façam o que quiserem", pede Hermán Amez. "Já me velaram no dia 25 de novembro [morte de Diego]. Os que estão sob a luz de Maradona são felizes."

Reprodução

Abuso que apaga tal luz

Movida a polarizações - as famosas "grietas"-, a Argentina reserva espaço também aos detratores de Diego. E eles cresceram consideravelmente nas últimas semanas.

Até Lionel Messi, que vive uma inédita lua de mel com a torcida, é usado como exemplo de ídolo esportivo para atacar a figura de Diego. Ninguém questiona a canhota mágica de Maradona. Mas também não dá para ignorar suas insanidades.

Uma delas estourou há dois meses. A cubana Mavys Álvarez revelou a emissoras de TV de Argentina e Estados Unidos que se relacionou com Maradona quando tinha apenas 16 anos. Diego estava com 40.

Segundo Mavys, ambos se conheceram em Havana e o "namoro" foi consensual, mas Diego a iniciou nas drogas, a agredia e a levou para Buenos Aires, mesmo menor de idade, para implantar uma prótese de silicone. A autorização da viagem não foi concedida pela sua família, e sim por Fidel Castro, presidente cubano de famosa amizade com Maradona.

Mavys hoje está com 37 anos. Segundo ela, Diego cogitou transportá-la para a Argentina até mesmo dentro de uma caixa. Este e outros detalhes dão sustento à denúncia da ONG argentina Fundación por la Paz y el Cambio Climático, que pede o indiciamento de Maradona e quatro amigos seus por tráfico de menores.

"Estamos falando de uma verdadeira gangue que cometeu uma série de crimes. Foram anos de abusos e coisas ilegais", disse Fernando Miguez, responsável pela ONG, à TV Record. Mavys em 2001 fez a cirurgia estética e ficou em um hotel de Buenos Aires por dois meses (sendo menor e sem o consentimento dos pais).

Outras histórias de arrepiar estão na série "Maradona: Conquista de um Sonho", que estreou ontem na Amazon Prime Video. A produção tem dez capítulos e começa com uma das overdoses de Maradona. Promete surpreender até os mais letrados nos escândalos do ídolo.

Reprodução

Vai um "maradólar" aí?

Quanto custa a idolatria por Diego Maradona? A partir de hoje haverá uma criptomoeda com seu nome, a "maradólar".

Segundo seus desenvolvedores, a ideia tem tudo para vingar na Argentina onde Maradona é um célebre item de coleção. O valor será cotado pela oferta e demanda de quem já tem criptomoedas (a mais conhecida delas é o bitcoin).

De acordo com o site oficial da "maradólar", haverá o sorteio de 10 mil unidades para 10 mil pessoas cadastradas na plataforma, que pretende começar a liquidar os créditos após 100 mil usuários ativos. Com a criptomoeda em homenagem ao ídolo, será possível comprar bens e serviços.

As homenagens do aniversário

  • Argentinos Juniors

    Fará shows de músicas e um jogo beneficente no Estádio Diego Armando Maradona, onde o craque despontou para o futebol.

    Imagem: Getty Images
  • Boca Juniors

    O clube que teve Maradona como camisa 10 e torcedor enfrenta às 20h15 na Bombonera o Gimnasia y Esgrima de La Plata, time treinado por Diego em seu fim. Ambos não divulgam o que farão.

    Imagem: Getty Images
  • Campeonato Argentino

    Faixas e bandeiras serão estendidas pela AFA neste fim de semana em todos os jogos da 19ª rodada. Todas as partidas serão paralisadas e terão silêncio quando o relógio chegar ao minuto dez.

    Imagem: Reprodução
  • Villa Fiorito

    A humilde casa onde Maradona cresceu será declarada oficialmente "lugar histórico nacional".

    Imagem: Reprodução
  • Família

    As filhas mais velhas de Diego pediram nas redes sociais que os fanáticos saiam às ruas com bolas para entregar a crianças carentes.

    Imagem: AFP
Reprodução

Cadê o 10?

Muitos argentinos consideram Maradona melhor que Pelé pela sua magia. Diego, de fato, reproduziu no futebol de elite os dribles ("gambetas") aprendidos na várzea ("potrero"). É por isso que os vizinhos continuam afirmando: ninguém jogou mais bonito que ele (eficiência é outra história).

Camisa que o eternizou, a 10 vive hoje uma desvalorização sem precedentes na Argentina. River Plate e Boca Juniors, os dois gigantes do país, a dão a jogadores colombianos sem transcendência.

No River, a 10 é usada por Jorge Carrascal; no Boca, era Edwin Cardona, que de tão apático passou a usar a 8, depois que a 10 foi oficialmente deixada de lado depois da saída de Carlitos Tevez, em junho.

Dos outros clubes grandes, apenas o Independiente tem um 10 argentino - e ainda assim uma promessa, Alan Velasco, 19 anos. O Racing deixou a 10 com o esforçado paraguaio Matías Rojas, e o San Lorenzo a inutiliza depois do afastamento, no mês passado, do paraguaio Óscar Romero, irmão gêmeo do ex-corintiano Ángel Romero.

Assim, o legado do número aguarda herdeiros que honrem o mito da 10.

Ivan PISARENKO / AFP Ivan PISARENKO / AFP

+ Especiais

Arte UOL

Pelé faz 81 anos com "cabeça a mil", sem medo de expor a fragilidade do antigo atleta perfeito.

Ler mais
FC Barcelona

A vida após Messi: lenda deixa o Barça depois de 17 temporadas e decreta fim de era. E agora?

Ler mais
Mark Leech/Offside/Getty Images

Meião de 2006: Roberto Carlos revive mágoa da eliminação para França e protesta contra críticas.

Ler mais
Amilcar Orfali/Getty Images

Gallardo ensaia "último tango" no River Plate, e o UOL revira arquivos para explicar culto ao técnico.

Ler mais
Topo