Cedo demais?

Futebol brasileiro voltou em junho e acumula derrotas para argentinos, que retornaram em setembro

Adriano Wilkson e Tales Torraga Do UOL, em São Paulo Ricardo Duarte/Inter

O ano de 2020 não está fácil para ninguém, e menos ainda para os times brasileiros que entram em campo contra rivais da Argentina. Com a queda do Internacional diante do Boca Juniors, em Buenos Aires, já são cinco as equipes do país eliminadas pelos vizinhos em competições continentais na temporada.

Flamengo, Athletico-PR (também na Libertadores), São Paulo e Vasco (na Sul-Americana) completam a lista de fregueses argentinos. Apesar de ter perdido ontem para Defensa y Justicia, por 3 a 2, nas quartas da Sul-Americana, o Bahia é o único brasileiro até aqui a vencer um duelo contra os argentinos, já que havia superado o Union nas oitavas. Será que a pressa que os clubes brasileiros tiveram para voltar a jogar após o pico da pandemia de covid-19 no país influenciou no fracasso continental?

Quando a Libertadores foi retomada, em setembro, os times argentinos pareciam em desvantagem. Todos faziam suas primeiras partidas oficiais depois de um hiato de seis meses, nos quais ficaram impedidos de jogar em razão de rigorosas medidas de controle do vírus no país. Enquanto isso, os times brasileiros já vinham treinando e jogando pelo menos desde junho.

A expectativa era que os argentinos sofressem com a falta de ritmo de jogo e com pouco condicionamento físico, mas os resultados em campo mostraram o contrário. O UOL Esporte lista algumas razões extracampo que podem ter levado o futebol argentino a bater os times brasileiros, mais ricos e com elencos mais estrelados.

Ricardo Duarte/Inter
Leo Burlá/UOL

Enquanto Brasil discutia protocolo de volta, Argentina pregava calma

No dia 19 de maio, os presidentes do Flamengo, Rodolfo Landim, e do Vasco, Alexandre Campello, se reuniram com o presidente da República, Jair Bolsonaro, para elaborar estratégias para o retorno do futebol. Naquele mesmo dia, o Brasil ultrapassava pela primeira vez a marca de mil mortes diárias pela covid-19.

Foram semanas intensas em que os dirigentes expuseram a necessidade da volta do esporte. "Por que não voltar o futebol? Só porque a curva da pandemia é ascendente? Mas está ascendente porque outras atividades não estão usando o nosso protocolo. Qual o protocolo das lojas de construção? O futebol está dando exemplo", disse Landim no fim de maio.

Nas semanas seguintes, CBF e especialistas dos clubes produziram um protocolo de práticas, que tinha a intenção de minimizar os riscos de contágio entre jogadores, membros de comissão técnica e seus familiares. O Flamengo voltou a campo no dia 18 de junho pelo Estadual, no Maracanã.

Nessa mesma época, dirigentes da Argentina, país que fechou maio com 539 mortos, pregavam cautela nas estimativas de retorno. "É difícil colocar uma data nesses momentos tão difíceis e com o crescimento do contágio. Tomara que possamos voltar a jogar, seguindo os protocolos, nos últimos três ou quatro meses desse ano", escreveu em maio Marcelo Tinelli, presidente do San Lorenzo. A estimativa se concretizou, e os times argentinos voltaram a disputar partidas oficiais apenas em setembro. A AFA (associação argentina de futebol) também reformulou o calendário para impedir que os clubes ficassem sobrecarregados.

O que interessa é isso: os jogadores querem voltar a jogar. E não se sabe quando vai acabar essa pandemia, ficar até quando parado? E todo mundo perde com isso aí. Esporte é vida, é saúde. No que depender do Ministério da Saúde, o ministério também é favorável a dar um parecer nesse sentido. Para que a gente possa assistir a um futebolzinho no sábado, domingo, até ajuda a deixar o povo em casa, menos estressado. É muito bom ver futebol".

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, em 22 de maio

Tenho muito interesse em que o esporte e o futebol voltem, mas vejo muitas complicações. Muitos jogadores são jovens que vivem com suas famílias e vêm de lugares humildes. Não se contagiará somente o jogador, que certamente tem uma vida saudável e pode se recuperar. Mas contagia seus pais, seus parentes. Aí a coisa começa a ficar mais difícil. É preciso ser muito prudente".

Alberto Fernandez, presidente da Argentina, em 6 de junho

Marcelo Endelli/Reuters

Argentina adaptou calendário e cancelou competições

Mesmo quando resolveu voltar, a Argentina agiu para evitar a sobrecarga aos jogadores. Acostumado aos mais diferentes improvisos estruturais e financeiros, o país não sofreu para impor rédeas ao seu futebol neste complicado 2020. A modalidade foi paralisada em 17 de março, com a suspensão da Copa da Superliga que depois foi cancelada.

Os dirigentes dos clubes e da AFA passaram a discutir a criação de um "campeonato tampão" para substituir o campeonato nacional e evitar que os times ficassem totalmente parados. Foi assim que nasceu a Copa LPF (Liga Profissional de Futebol), chamada hoje de Copa Diego Maradona, em homenagem ao ídolo morto no mês passado. Com 24 equipes, a competição estipulou seis grupos com quatro times cada, evitando um número alto de jogos ou viagens. O campeonato está em sua segunda fase, e a decisão em jogo único ocorre em 17 de janeiro, valendo vaga na Libertadores. Os rebaixamentos foram abolidos.

O cancelamento do Campeonato Argentino e a adoção da Copa Maradona não foram as únicas mudanças colocadas em prática pela AFA neste 2020. A Copa Argentina, versão vizinha da Copa do Brasil, também foi riscada do calendário em março em meio ao risco de contágios.

Divulgação/Conmebol

Surtos e maratonas desfalcaram elencos no Brasil

No Brasil, foi bem diferente. As federações locais e a CBF não cancelaram nenhuma competição, o que obrigou a maioria dos times a enfrentar uma maratona, com até três jogos por semanas e longas viagens para cumprir as tabelas. O excesso de jogos pode ter causado uma sobrecarga física e emocional aos jogadores e afetado o desempenho em campo.

Para piorar, o protocolo para evitar contágios se mostrou falho. De acordo com um levantamento da CBF, divulgado no final de novembro, 19% de todos os jogadores das séries A, B, C e D contraíram o vírus, o equivalente a 1.257 atletas. Na rodada disputada entre os dias 21 e 22 de novembro, só os times da Série A tiveram 60 desfalques decorrentes do coronavírus.

A Argentina também lidou com um surto, mas foi localizado e controlado com eficiência. O Boca Juniors detectou 18 atletas com covid-19 no começo de setembro e, como disputava somente a Libertadores, conseguiu contornar a situação, terminando a fase de grupos na liderança e com uma campanha invicta. Os outros argentinos na Libertadores não tiveram contágios massivos. No River Plate, o lateral Milton Casco e o atacante Rafael Borré perderam jogos por isolamento. Outro infectado foi o terceiro goleiro Ezequiel Centurión. Além deles, Enzo Pérez, desfalcou a equipe nesta quinta-feira diante do Nacional.

Embora dê noção de maior segurança pela baixa quantidade de casos na comparação com clubes brasileiros, o futebol na Argentina não exige ou realiza testes antes dos jogos, deixando o controle sempre a cargo dos clubes. Ouvidos pelo UOL Esporte, representantes de River, Boca e Racing pregam cautela, não comemoram nada e consideram que a batalha contra o vírus ainda está longe de terminar.

Antonio Lacerda/Pool/AFP

Calendário apertado intensifica dança das cadeiras de técnicos

Quando começaram os duelos entre equipes dos dois países nas competições continentais, os times argentinos vizinho estavam dando os primeiros passos após a largada, enquanto os brasileiros já estavam na metade de uma longa e desgastante maratona. O reflexo foi visto em uma série de atropelos no banco de reservas.

O Flamengo começou a temporada sob o comando de Jorge Jesus, contratou Domenéc Torrent em julho e foi eliminado da Libertadores com Rogério Ceni. Já o Racing, que o eliminou, está com o técnico Sebastián Beccacece desde dezembro de 2019.

O Vasco foi outro que sofreu com a dança das cadeiras. O português Ricardo Pinto também é o terceiro treinador do clube no ano e foi contratado após a demissão de Ramon Menezes, em outubro. Foi eliminado da Sul-Americana pelo Defensa y Justicia, que tem o mesmo treinador, Hernán Crespo, desde o início do ano.

O Athletico-PR também viveu uma situação dramática. Após demitir Eduardo Barros, convocou Paulo Autuori para acumular o cargo de treinador e diretor. O improviso não deu certo, e a equipe foi eliminada da Libertadores pelo River Plate, treinado por Marcelo Gallardo desde junho de 2014.

O que disseram os argentinos

Falaram que a falta de ritmo atrapalharia, mas a superação do atleta argentino prevalece em situações assim. Os jogadores foram muito profissionais, sem a ajuda deles não estaríamos frescos e capazes de sermos superiores durante os 180 minutos, como fomos".

Marcelo Gallardo, técnico do River após eliminar o Athlético-PR

Trabalhamos certo o ano todo para chegar a isso, por isso tivemos pernas para ganhar na Argentina e no Rio. Na Argentina, anularam nossos gols, e aqui ainda vimos o rival, mesmo cansado, achar o gol no fim, mas nossa classificação é muito justa".

Lisandro López, atacante do Racing após eliminar o Flamengo

Derrotas aumentam freguesia histórica do Brasil

Embora historicamente, a Argentina leve vantagem sobre o Brasil nos mata-matas da Libertadores, a freguesia deste ano foge de qualquer padrão. Contando toda a história do torneio, criado em 1960, brasileiros e argentinos mediram forças em 60 confrontos até a abertura das atuais oitavas de final. Os argentinos venceram 34 duelos (56,6%), contra 26 classificações brasileiras.

Nos três cruzamentos das oitavas deste ano, os times do país vizinho atropelaram os brasileiros, vencendo todos os confrontos. Na semana passada, o River Plate bateu o Athletico-PR por 2 a 1 no placar agregado, e o Racing eliminou o Flamengo em pleno Maracanã nos pênaltis. Nesta quarta-feira, o Boca Juniors avançou às semi-finais da competição depois de derrotar o Internacional também nos pênaltis.

Somando também a atual Sul-Americana, são duas classificações a mais dos argentinos contra os brasileiros - a do Lanús sobre o São Paulo e a do Defensa y Justicia contra o Vasco, com os dois mata-matas sendo definidos no Brasil.

O único brasileiro que levou a melhor sobre um argentino foi o Bahia, que pela Sul-Americana eliminou o Unión, um nanico no cenário vizinho. O único brasileiro que levou a melhor sobre um argentino foi o Bahia, que pela Sul-Americana eliminou o Unión, um nanico no cenário vizinho, nas oitavas. Apesar de ter sido derrotada pelo Defensa y Justicia, do ex-atacante Hernán Crespo, nesta quarta-feira, a equipe de Mano Menezes segue na competição.

Os resultados deste 2020, pós-retorno, deixam a freguesia brasileira perante os argentinos com 83,3% de derrotas (cinco quedas em seis mata-matas).

Reuters

Morte de Maradona gera incentivo extra para Libertadores argentina

Além das pernas e das cabeças mais frescas, o "sangue quente" tão cultuado pelos argentinos promete entrar em campo nesta reta final da Libertadores. Acostumada às narrativas épicas, como ganhar a Copa de 1986 em tributo aos combatentes das Malvinas, a Argentina acompanhou empolgada as entrevistas dos dirigentes de Boca, River e Racing prometendo "deixar a vida" em campo para conquistar a primeira Libertadores d.M ("depois de Maradona").

A primeira razão do pacto tem a ver com o jeito extremamente apaixonado de se viver o futebol no país. Como define o ex-atacante Jorge Valdano, o futebol na Argentina "é inicialmente sentido com o coração para depois ser processado pela mente". E ninguém tocou tanto o coração argentino como Diego Armando Maradona, cuja morte no último dia 25 paralisou o país vizinho e gerou diversas homenagens dos representantes na Libertadores, como a camisa usada por Carlitos Tevez e mostrada depois do seu gol contra o Inter no Beira-Rio.

O segundo motivo para os argentinos suarem em busca das Copas? O dinheiro. Como Maradona era mundialmente reverenciado, um confronto entre dois argentinos geraria cifras maiores que uma final habitual, sem os condimentos que apimentariam esta decisão em memória a Diego. A decisão da Libertadores será em jogo único, como no ano passado, e está marcada para 30 de janeiro, no Maracanã. Uma exposição gigante como a da final da Libertadores 2018, entre River e Boca, seria muito bem-vinda para o futebol do país.

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