Em passe de sobrevivência

Clubes das séries B e C do Brasileiro enfrentam aviões lotados e dias em ônibus para sobreviver à covid-19

Bernardo Gentile, Karla Torralba e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro André Moreira/VRFC

O dia é 8 de agosto. Às 21h, o CSA enfrenta o Guarani em Alagoas, pela Série B do Campeonato Brasileiro — a partida terminou 1 a 0 para os alagoanos. Cinco dias depois, o CSA anuncia que 20 de seus atletas estão com covid-19. No dia 9 de agosto, na Paraíba, Treze x Imperatriz é adiado pela Série C. O Imperatriz tem 14 jogadores infectados pelo novo coronavírus.

Esses dois jogos, mais o duelo entre Goiás x São Paulo, adiado quando o São Paulo já estava em campo em Goiânia, resumem o primeiro final de semana de bola rolando do Campeonato Brasileiro na pandemia: protocolos de testagem falhos e muitos atletas doentes e em risco.

Com a obrigação do Hospital Albert Einstein de entregar os testes RT-PCR (aqueles coletados pela via nasal, mais preciso para identificar a presença do vírus) feitos em jogadores de todo o Brasil antes das partidas, muitos clubes que precisavam viajar para jogar acabaram fazendo grandes deslocamentos sem saber se havia pessoas infectadas a bordo. Alguns resultados saíram tão tarde que times já estavam em campo quando souberam que o rival não poderia jogar por causa da doença.

Até 12 de agosto, mais de 50 atletas já tinham recebido diagnóstico positivo. O número sobe a cada dia, a cada teste feito. Com o Brasil em segundo lugar no ranking de infectados —com mais de 3,2 milhões de casos confirmados—, o futebol apenas mostra a realidade: a pandemia não está perto de acabar.

A partir de agora, o UOL Esporte conta histórias de clubes da segunda e da terceira divisões nacionais que sofreram na primeira rodada de suas principais competições do ano e, principalmente, como o protocolo da CBF falhou e colocou pessoas em risco. As determinações foram alteradas com os jogos em andamento.

André Moreira/VRFC

Imperatriz: 14 jogadores infectados viajam 1600km de ônibus com elenco

No dia dos pais, o Treze-PB estava em campo aguardando seu adversário, o Imperatriz-MA, para estrear na Série C do Campeonato Brasileiro. Tudo pronto, jogadores uniformizados. Mas o rival não apareceu. O jogo foi adiado porque 12 atletas do Imperatriz souberam no dia da partida que estavam com covid-19. Detalhe: esses 12 infectados viajaram mais de 1600 km de ônibus até Campina Grande, na Paraíba, local do duelo, ao lado do restante do elenco.

O Imperatriz voltou ao Maranhão com os infectados em um ônibus e os atletas saudáveis em avião. Em novos testes, o clube ainda descobriu que, na verdade, eram 14 os jogadores infectados. O presidente do clube preferiu não conversar com a reportagem. Ele também se recupera da covid-19.

Na quinta-feira (13), o clube do Maranhão teve outro jogo da Série C adiado pelo mesmo motivo, desta vez contra o Jacuipense, da Bahia. "A partida foi adiada em virtude dos resultados dos testes realizados no elenco, que constataram, em prova e contraprova, a contaminação por coronavírus de 14 dos 19 jogadores inscritos pela equipe maranhense na competição", publicou em nota oficial o Imperatriz.

Em campo no Estádio Amigão, os jogadores do Treze trocaram de roupa e fizeram um treinamento para não perderem "a viagem". "Não podemos culpar a delegação deles porque, se o resultado tivesse saído com antecedência, com certeza não teriam se deslocado mais de 1600 quilômetros para chegar até aqui. Acho que o futebol pode continuar, mas desde que a testagem seja feita com antecedência", disse o presidente do Treze-PB, Walter Júnior, que estima prejuízo de R$ 15 mil ao clube por causa da partida não realizada.

Augusto Oliveira/CSA

CSA: 20 infectados e "imunidade de rebanho no time"

CSA x Guarani pela, primeira rodada da Série B, no último sábado (8), gerou uma corrida por testes de covid-19 depois que a bola rolou. O efeito dominó se deu porque 20 atletas do time alagoano estão com o novo coronavírus. A história começou antes, na final do Campeonato Alagoano, contra o CRB.

Depois do primeiro jogo da decisão, em 5 de agosto, oito atletas do CSA apresentam resultado positivo. A equipe jogou contra o Guarani três dias depois, na Série B. No dia 11 de agosto, chega a notícia de que 18 atletas do time alagoano estavam com o novo coronavírus. O alerta acende. No dia 13, o número subiu para 20. O resultado dos testes do time de Campinas foram negativos, o do CRB também, mas o pânico estava espalhado.

Com mais partidas adiadas pela Série B do Campeonato Brasileiro, contra Chapecoense e Cuiabá, o CSA agora trata dos seus contaminados. São 27 pessoas no total: 20 atletas, seis funcionários e um membro da comissão técnica.

Neste contexto, o presidente do clube deu uma informação, no mínimo, polêmica: espera que o clube seja "agraciado" pela chamada imunidade de rebanho, quando tantas pessoas já foram contaminadas que o vírus não tem mais quem infectar. "Eu não torço para ninguém pegar a doença, mas, já que teve esse surto, seria melhor se todo mundo já pegasse e ficasse imune logo", disse Rafael Tenório.

Ester Vasconcelos/Treze-PR Ester Vasconcelos/Treze-PR

11 horas em ônibus com atletas infectados

Desde que o futebol retornou em meio à pandemia, com o Campeonato Gaúcho, o Ypiranga-RS fechou vestiários, jogadores passaram a ir aos treinamentos já uniformizados, sacolinhas separadas de roupas para a lavanderia, testes de covid-19 e conversa regulares com os atletas. Mas antes do jogo contra o Brusque-SC, pela Série C do Brasileirão, todo esse rígido protocolo foi colocado de lado pelas regras da CBF.

O clube viajou 11 horas em um ônibus fechado até Brusque, em Santa Catarina, às cegas. Os resultados dos testes dos atletas —que haviam sido feitos três dias antes da partida do dia 8 de agosto— não tinham ficado prontos. "Tive que viajar sem saber quem estava contaminado no ônibus. Todo mundo de máscara, álcool em gel, com o maior distanciamento possível. No sábado (8, dia do jogo), 9h e pouco da manhã, recebi a informação de que seis atletas estavam com o novo coronavírus. Viajamos juntos, treinamos juntos, nos alimentamos juntos. Desses, cinco estavam com a delegação", contou o gerente de futebol do Ypiranga, Renan Mobarac.

O Ypiranga foi a campo com 11 titulares e apenas quatro jogadores na reserva. O adversário tinha 11 também na reserva. A equipe gaúcha não teve atletas suficientes nem mesmo para fazer as cinco substituições permitidas, enquanto o Brusque as fez. Resultado: Brusque 2 x 1 Ypiranga. E ainda tinha o retorno para Erechim com mais 11 horas no mesmo ônibus com cinco atletas —até então— infectados.

"Isolei a parte de baixo do ônibus só para eles. Fizemos um mutirão para higienizar o ônibus com álcool em gel, colocamos os demais na parte de cima e os cinco embaixo. Quando chegamos em Erechim, eu contratei o laboratório Qualitá, que fez todos os testes no Gauchão. Dos seis que testaram positivo, cinco negativaram segunda-feira (10). E aí?", lamenta o diretor de futebol.

O que fizeram foi uma irresponsabilidade tremenda. Como vou viajar 11 horas em um ônibus fechado sem saber quem está infectado? Às cegas? O estado de espírito e moral do grupo? Todo mundo com medo. Eu tenho gente de 60 anos de idade na comissão técnica, cara diabético que foi exposto a essa situação por um erro de protocolo.

Renan Mobarac, gerente de futebol do Ypiranga

Correria no aeroporto

O chefe de departamento médico do São Bento, Cássio Rusconi, relembra o atropelo para evitar que o goleiro titular o time, Lucas Macanhan, embarcasse na viagem para o jogo de sábado (8). O time de Sorocaba, no interior de São Paulo, viajou até Porto Alegre na sexta-feira (7) para enfrentar o São José, pela Série C do campeonato.

"Os jogadores foram testados na quarta-feira (5) que antecedeu a partida de sábado. Só que, na sexta-feira, dia do nosso embarque, a gente ainda não tinha recebido os resultados. O embarque era às 17h e, dez minutos antes, recebemos o retorno da CBF com a informação de que nosso goleiro estava contaminado e não poderia viajar", explica Rusconi.

A loucura começou no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Macanhan teve de voltar para a cidade em um táxi, enquanto o terceiro goleiro, Bruno Bezerra —que não estava escalado para a partida— foi acionado às pressas: "Ele não tinha feito o teste porque não viajaria, mas a CBF deu todo o apoio. Às 21h, ele colheu o exame e, em tempo recorde, o resultado chegou às 8h de sábado, dia do jogo", conta o médico.

Bruno chegou em Porto Alegre duas horas antes da partida, que terminou com a derrota do São Bento por 1 a 0. "A gente sabia que poderia dar errado, mas é uma situação atípica. Agora, a CBF mudou o protocolo e, em vez de testar só os 23 atletas escalados, vai testar todos. Eles prometeram, ainda, que as equipes vão receber os resultados dos testes 12h antes da viagem, enquanto os mandantes receberão com 24 horas de antecedência".

Rusconi diz que a viagem de sexta-feira foi um tanto tensa não apenas pela questão de Macanhan, como também pela lotação do avião. Segundo ele, a aeronave estava "completamente lotada" e, apesar de a equipe ter sido testada, não tem como saber se havia pessoas infectadas nas poltronas ao lado.

Celso da Luz/ Criciúma E.C.

Viagens de ônibus passam a durar dias

Por temer a aglomeração dentro das aeronaves, o Criciúma decidiu que, enquanto for possível devido à distância, viajará de ônibus. O supervisor de futebol profissional Tiago Neotti explica ao UOL Esporte que a primeira viagem aconteceu no dia 10, para a primeira partida do time pelo Brasileirão, contra o Londrina.

"A gente ficou receoso com toda essa movimentação de aeroporto, de muvuca no avião. Temos visto muitos casos de contaminação por avião. De ônibus, são 12 horas. A gente dividiu a equipe em ônibus e vans — para que apenas fosse preenchida 50% da capacidade dos veículos", explica.

Para evitar paradas, Neotti afirma, o grupo dividiu a viagem em dois dias: foram seis horas até Curitiba, onde dormiram, e outras seis até Londrina. "É perigoso parar em restaurante, a gente não consegue afirmar se os estabelecimentos estão recebendo os devidos cuidados. Por isso, dormimos em Curitiba, em um hotel, e continuamos a viajar no dia seguinte".

Nos hotéis, segundo o supervisor, o clube pede que comissão técnica e jogadores fiquem isolados durante as refeições. "Por enquanto, tivemos sucesso no pedido aos hotéis. Então, eles fecham um espaço para que a gente tome café da manhã sozinho, por exemplo. Na viagem a Londrina, consegui, ainda, que todos ficássemos hospedados no primeiro andar. Assim, a gente evitaria elevador —e mais contato com outras pessoas".

A garantia da viagem de ônibus acaba na quarta rodada do campeonato, quando o Criciúma enfrenta o Tombense, em Tombos (MG). Para chegar até lá, o time precisará pegar, além de um voo, dois ônibus: um até Florianópolis, já que não há aeroporto em Criciúma, e outro de Juiz de Fora a Tombos.

André Moreira/VRFC André Moreira/VRFC

Protocolo intenso

O mesmo pedido de isolamento a hotéis foi feito pelo Ituano, que enfrenta o Volta Redonda no próximo dia 17. O principal executivo do clube, Paulo Silvestri, conta que a viagem será de ônibus —e que o meio de transporte é higienizado a cada saída. Os jogadores escolhem assentos distantes um do outro e, além de todos viajarem usando máscara, cada um ganhou seu próprio frasco de álcool em gel.

"O primeiro jogo, contra o Tombense, foi em casa. Só que nosso estádio ainda não pode receber jogo devido à fase em que está Itu no plano de reabertura de São Paulo. Por isso, precisamos jogar em Osasco, já teve viagem, já teve hotel e tudo. A gente pediu uma área isolada para o time na hospedagem, com refeições em uma sala de reunião. Não foi um problema, já que os hotéis não estão lotados", explica.

As viagens de ônibus também são prioridade do time de Itu. Segundo Silvestri, a organização dos horários das partidas acontece de modo que jogadores e comissão não precisem parar para fazer refeições durante o trajeto. "Nosso próximo jogo é em Resende. Daqui até lá, não demora cinco horas. A gente se organiza para evitar o máximo de contato possível", afirma.

O dirigente afirma que o clube teve jogadores que tiveram coronavírus, diagnosticados em uma testagem voluntária que aconteceu em junho. Atualmente, nenhum membro do Ituano está contaminado com a covid-19. "O protocolo de saúde é muito rígido no dia a dia, a gente mede a temperatura tanto dos jogadores como a de funcionários muitas vezes por dia", diz.

André Moreira/VRFC André Moreira/VRFC

Clubes se ajudam por segurança

As precauções não têm sido suficientes para acalmar os ânimos tanto de jogadores como de comissões técnicas. É o que conta o supervisor do Ferroviário-CE, Clécio Sousa. O novo protocolo da CBF ameniza as angústias em relação aos jogos, mas não diminui a ansiedade e o medo da covid-19.

"Estamos receosos, não só no jogo ou dentro do avião, mas também na nossa vida pessoal. Temos nos cuidado e cuidado dos nossos jogadores, mas é difícil. A competição começou e ela exige certos sacrifícios", diz.

Os cuidados na hora de escolher hotéis, por exemplo, se intensificaram. Segundo o supervisor, antes de definir qual será a hospedagem do time em cidades de clubes mandantes, ele faz uma pesquisa detalhada para garantir a segurança na higienização: "Pesquiso avaliações e, se conheço pessoas que moram na cidade para onde vamos, peço que ela cheque para mim as condições de higiene", afirma.

"Tem havido um intercâmbio interessante de informações entre os clubes, um ajudando o outro, porque todo mundo se arrisca, né? Nosso próximo jogo é em Belém, então liguei para um amigo que mora lá e ele me recomendou um hotel que está seguindo as recomendações de higiene", diz.

Sousa afirma que, para proteger o time, acaba pagando mais na hora de escolher a hospedagem, "mas faz parte. Precisamos proteger a equipe. A situação financeira do clube está complicada. Contamos com uma ajuda da CBF, mas não é suficiente para colocar nossas finanças em dia".

Divulgação Divulgação
André Moreira/VRFC

Teste detectou coronavírus em quem já havia contraído

O problema com o primeiro protocolo de testes estipulado pela CBF acometeu, também, o Volta Redonda, na primeira rodada do campeonato. Diz o vice-presidente do clube, Flávio Horta, que o teste detectou o coronavírus em três atletas que já haviam sido infectados em junho.

"Os três foram isolados em junho, no teste de véspera do jogo contra o Fluminense, pelo Campeonato Carioca. Agora, no jogo contra o Boa Esporte, no último dia 10, o teste detectou o vírus nos mesmos jogadores. A gente alegou que eles haviam sido infectados em junho, mas não adiantou. Viajamos para o jogo com apenas 20 atletas", diz.

A partir de agora, segundo a CBF, jogadores que já foram contaminados não serão mais testados —e poderão jogar normalmente.

"Agora, mudou o protocolo, graças a Deus. A CBF descentralizou o laboratório —antes, os exames eram feitos por equipes do hospital Albert Einstein, em São Paulo. Agora, podemos fazer em laboratórios próximos, desde que informemos o resultado dos testes duas horas antes da viagem. Isso ajuda, já que caso algum jogador esteja contaminado, dá tempo de tirá-lo do time", afirma.

CBF muda protocolo após 1ª rodada

A CBF usou o protocolo criado pelas federações nos campeonatos estaduais para elaborar o seu próprio guia para a disputa do Campeonato Brasileiro. Na competição nacional, no entanto, as práticas não tiveram o mesmo resultado e foi preciso apenas uma rodada para que mudanças fossem necessárias.

No total, três importantes alterações já foram implementadas para a disputa. A primeira é que todos os atletas dos clubes serão testados, até mesmo os não relacionados. Antes, a CBF pagava apenas os exames dos jogadores que participassem do duelo.

Além disso, a exclusividade do Albert Einstein na realização dos exames foi retirada. Os clubes, portanto, poderão fazer os testes em locais próximos e serão reembolsados pela entidade.

Por fim, os resultados deverão sair até 24h da partida por parte dos mandantes e até 12 horas antes de o clube visitante iniciar sua viagem. Isso tem como objetivo evitar casos como o de São Paulo x Goiás, cancelado já com o time paulista em campo por conta de novos caso dois goianos, que só tiveram resultado horas antes da partida.

Apesar da necessidade de mudanças no protocolo, o secretário-geral da CBF, Walter Feldman, afirmou que o saldo foi positivo. Segundo ele, é normal que tenham ocorrido alguns problemas e que já foram corrigidos.

"Entendo que um jogo suspenso e o problema com o laboratório atraiam a atenção e gerem debate, mas foram casos muito específicos em um universo de 25 jogos em todas as séries do Campeonato Brasileiro que se iniciaram neste fim de semana. O balanço é positivo. Tivemos sucessos em todas as outras operações", afirmou o secretário-geral da CBF, Walter Feldman.

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