Do outro lado

Cicinho fala o que mudou para virar comentarista, do clima no Arena SBT e que jogadores "não o atendem mais"

Arthur Sandes Do UOL, em São Paulo Lucas Lima/UOL

Toda semana, Cicinho deixa a pequena cidade de São Luís de Montes Belos, no interior de Goiás, e viaja para São Paulo. O compromisso é sempre nas noites de segunda-feira: o Arena SBT, programa esportivo do canal de Silvio Santos. Todo o esforço é para estar perto do futebol, em um encontro semanal com o universo "onde sempre quis estar", mas também para corresponder às expectativas e às cobranças da pequena Eloá, a filha de 7 anos, após uma pergunta que o incomodou: "Pai, você não trabalha?"

Cicinho não quer viver a vida da metrópole e valoriza seus outros compromissos, mas diz estar encantado com a função de comentarista. O ex-lateral do São Paulo, nas últimas semanas, tem mostrado seu lado contador de histórias e, entre um comentário e outro, arranca risadas dos companheiros de bancada com os causos que viveu —sempre engraçados e contatos de um jeito único. Ele já falou de uma mala de dinheiro que chegou da Rússia para sua contratação, contou uma briga nos vestiários em que ele e Robinho saíram correndo de Gravensen e de quando Luís Fabiano ameaçou "arrancar" seus dentes.

É no meio do caminho entre o conforto do interior de Goiás e a empolgação com o programa em São Paulo que nasce um dilema: há rumores de que o programa pode se tornar diário, e aí? O contador de causos vai mudar para a metrópole? Cicinho desconversa. O importante, por enquanto, é viver o momento e aproveitar a troca de provocações com Emerson Sheik, seus companheiros de bancada. Cicinho considera que o Arena tem tido sucesso por ser feito com a linguagem do torcedor e valoriza o projeto do SBT como alternativa para quem estiver "enjoado" de outros canais.

Ele só não esperava que, do outro lado, seus amigos jogadores parassem de atender suas ligações:

Não sei que medo é esse de comentarista..."

Lucas Lima/UOL

"SBT não é carro de pamonha"

Brasileirão ou a igreja?

O convite para ser comentarista partiu do apresentador Benjamin Back, no ano passado; o SBT aprovou seu nome, e Cicinho estreou no final de outubro. Só que esta não foi a primeira proposta que o ex-lateral recebeu para trabalhar na televisão: antes disso, quase foi para a TV Anhanguera, emissora afiliada da Rede Globo em Goiás.

Tive um convite para comentar o Campeonato Brasileiro [em 2020], mas a proposta era para quarta-feira e domingo, então não aceitei porque já tinha compromissos com minha igreja".

Em vez da Globo, o ex-jogador foi "vender a pamonha" dele no SBT, com quem tem contrato até dezembro. Ele ainda não sabe se continua no canal depois disso, mas julga ser cedo demais para antecipar qualquer decisão. "Estamos em maio ainda, vamos curtir estes meses", diz Cicinho. "Quando leio notícia de que o SBT fechou com a Libertadores, fechou com a Champions League, com a Libertadores, automaticamente vem na cabeça que já estou empregado até 2024, mas sei que não é assim", brinca.

Reprodução/Instagram

O preço de ser comentarista

A marca registrada do Arena SBT é a irreverência, e Cicinho de cara comprou a ideia. "Tem um roteiro com começo, meio e fim preparados pelo diretor, mas não tem nada combinado", diz, admitindo ainda estar aprendendo como se portar do outro lado da bancada.

"O Benja sempre conversa comigo, para quando fizer uma pergunta, tentar extrair da pessoa algo que ela não esteja esperando. Não dá para perguntar ao Neymar se ele quer ser campeão; a pergunta é se tem vontade de voltar para o Barcelona. Aí você já cria uma manchete diferenciada. Esse tipo de toque serve para eu aprender, crescer e também trazer audiência para o programa seguir no ar", explica.

Mesmo com pouco tempo, ele já sentiu que algumas relações pessoais mudaram por causa da nova função. "Às vezes a gente é odiado por algumas expressões. Faz algum comentário e acaba sendo julgado por isso. Converso muito com o Emerson [Sheik] sobre isso, porque nós não estamos acostumados".

Eu tinha relação com muitos jogadores, mas hoje em dia alguns já nem respondem ou demoram para responder a mensagem. Não sei que medo é esse de comentarista".

Imprensa derruba técnico?

Ali, no programa, estou sendo a pessoa que sou, não estou vestindo nada: se eu tenho que falar mal de um jogador ou treinador, vou falar mal dele dentro de campo, não como pessoa -mesmo que eu o conheça."

Cicinho, dizendo que, na visão dele, o comentarista de TV não fabrica a pressão aos técnicos --ainda que a divulgue

É claro que alguns exageram, mas não acho que o intuito seja derrubar um treinador. Peguei no pé do Diniz. Sou são-paulino, lia o que a torcida escrevia, via o que acontecia em campo e as táticas que o Diniz usava."

Cicinho, para quem as análises podem inclusive acrescentar ao trabalho de um técnico. "Às vezes, o treinador precisa ter a humildade de ouvir."

Transmissão SBT
Emerson Sheik escreve o nome de Cicinho no cabelo após perder aposta no Arena SBT

Sucesso e futuro na TV

Apesar do horário ingrato (23h45 de segunda-feira), o Arena SBT tem excedido expectativas. Na semana passada, chegou a bater 7 pontos de audiência e atraiu quase 10% dos televisores ligados no começo da madrugada. O sucesso tem motivado discussões internas sobre dar maior visibilidade à atração, seja antecipando na grade ou multiplicando as edições na semana.

"Quando cheguei no SBT, perguntei o porquê de o programa ser tão tarde. As pessoas me perguntavam e eu não sabia responder. Aí me disseram que era o único horário na grade. 'O Silvio Santos não vai tirar um jornal do meio-dia para colocar esporte', me disseram. Então não sei, vamos ver", diz Cicinho, para quem os rumores não criam tanta expectativa.

"A gente compartilha as notícias que saem, mas só seguimos fazendo o nosso papel toda segunda-feira. Não existe muita conversa entre nós sobre isso", afirma, referindo-se aos integrantes do programa. Sobre as consequências logísticas de uma mudança na grade, ele aguarda: "Se o programa virar diário, tenho que pensar em me mudar para São Paulo e nem sei se minha família vai querer", resume.

Reprodução/Instagram
Cicinho e Eloá, hoje com sete anos

"Papai, você não trabalha?"

O curioso é que foi justamente a família que o levou a aceitar o trabalho. Há dois anos, ele estava em um período sabático. Tinha acabado de se aposentar (seu último time foi o Brasiliense, em 2018) e passava seus dias em casa, vivendo do que ganhou na carreira.

"Um belo dia, a minha filha, que tinha cinco para seis anos, olhou para mim e disse: 'Papai, porque que você não trabalha?' Eu peguei e falei: 'Filha, porque você está me perguntando isso?' Ela falou: 'Por que meu tio trabalha, mas o papai não. O papai fica em casa'. O tio era o irmão da minha mulher. Eu expliquei para ela que o papai jogava futebol, trabalhou por 20 anos, machucou o joelho e hoje é aposentado. Mas aquilo mexeu com meu ego", conta.

Falei assim: 'Como uma criança de cinco anos vem me chamar de vagabundo?' Eu até brinquei com ela: 'Filha, essa comida que você está comendo foi o papai que ganhou. A escolinha que você estuda é por que o papai trabalhou. Não foi o titio, não. Mas aquilo mexeu comigo".

Cicinho, então, pensou em como iria sair de casa para trabalhar. Decidiu que iria voltar ao futebol, afinal "é a única coisa que eu sei fazer". As opções eram trabalhar no campo novamente, fazendo parte de uma comissão técnica. Ou como dirigente. Ele chegou a ter convites do Sivasspor, seu último clube internacional, da Turquia, mas não aceitou. "Hoje, meu foco está em ser comentarista e em crescer no SBT".

Cicinho voltaria ao futebol?

Eu não queria ser treinador, mas auxiliar. Eu não tenho perfil de treinador, sou mais um embaixador, gosto de promover a paz. Como treinador, você tem de dar uma dura no Daniel Alves. Eu serviria para, depois, chegar no Daniel e dizer: 'Olha, ele gosta de você'. Sou apaziguador".

Cicinho

Lógico que ainda passa pela minha cabeça ser diretor ou gestor, embaixador de algum clube. Eu fui convidado pelo Sivasspor, da Turquia, para ser diretor e representante no Brasil, mas teria de mudar pra Turquia. Foi antes do SBT. Direto, me ligam e falo com eles. Mas não é mais o meu foco."

Cicinho

Reprodução/Instagram

"Iludidinho" com o São Paulo de Crespo

Cicinho brilhou na ala direita do São Paulo de 2005, que venceu Libertadores e Mundial em um esquema com três zagueiros. Anos depois, foi a vez de Muricy Ramalho usar no clube uma variação do modelo e conquistar o tricampeonato brasileiro. Agora, é Hernán Crespo quem monta o Tricolor com uma linha de três. Cicinho aprova a estratégia.

"O futebol brasileiro é alegre, peladeiro; a característica dos laterais daqui é apoiar. A maior dificuldade recente de São Paulo e Palmeiras era a bola nas costas dos laterais, mas a 'Avenida Reinaldo' hoje já não existe mais. O Crespo percebeu que tem um líder de assistências, com uma presença espetacular no ataque, então por que não dar uma cobertura para ele?".

"Isso é a visão do treinador. O mais chato é um treinador chegar e dizer que vai 'dar sequência ao excelente trabalho anterior'. Se o Fernando Diniz foi mandado embora do São Paulo, [o sucessor] tem mesmo que mudar tudo. O Crespo estudou antes de vir, não caiu de pára-quedas no São Paulo; o Abel no Palmeiras, a mesma coisa", opina Cicinho, que admite estar "iludidinho" com a boa fase tricolor.

Eu tive a oportunidade de ver o Crespo jogador. Cara vencedor, raçudo, um jogador que toda equipe gostaria de ter. E ele implantou isso como treinador. Aguerrido, querendo vencer, sempre tirando o melhor. E trazendo uma cultura diferente pro São Paulo, que estava precisando, de suar mais a camisa; Como torcedor, estou gostando muito. Estou 'iludidinho'".

Lucas Lima/UOL

"Se tivesse sido mais profissional, talvez jogasse até hoje"

Cicinho surgiu no Botafogo-SP, passou pelo Atlético-MG, chegou ao São Paulo em 2004 e se tornou um galáctico do Real Madrid antes do Natal do ano seguinte. Foi rápido, ele admite, e a chegada meteórica ao topo aos poucos foi ofuscada pela descida.

"Se o atleta cumprir os princípios de treinamento, alimentação, dedicação, enfim, ele vai se tornar um grande jogador e chegar onde almeja; mas se manter lá é mais difícil", reflete o ex-lateral. "Foi rápido [chegar ao Real Madrid]. Hoje, tem cara no Brasil que é vendido depois de seis meses, sem nem ser titular, mas para minha época foi rápido, sim."

"Se eu tivesse me dedicado mais, sido mais profissional, talvez estivesse jogando ainda hoje. Senão até hoje, até um ou dois anos atrás. Só que eu não cumpri esses princípios: quando cheguei no ápice, onde eu queria, joguei tudo por terra. Então minha decadência foi muito mais meteórica do que a subida", avalia.

Cicinho teve uma carreira de superação. Viveu sérios problemas com a bebida e passou por uma depressão. Nos tempos de Real Madrid, ele conta, "todo o mundo esperava que entrasse em coma alcoólico". Ele falou sobre suas lutas extracampo em uma outra entrevista ao UOL Esporte, de 2018.

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