Isolados e sob pressão

CBF concentra arbitragem em CT para aliviar pressão na reta final do BR: "O árbitro é um ser muito isolado"

Igor Siqueira Do UOL, em Teresópolis Alex Ramos/CBF

Árbitro mais experiente do quadro da CBF, Marcelo de Lima Henrique vira e mexe apela para os óculos escuros e o boné para passar despercebido pela rua. "Com máscara ainda, para disfarçar mais", conta ele.

Aos 50 anos, 27 deles dedicados à arbitragem, o carioca é quem há mais tempo experimenta o nível de pressão e cobrança típico desta reta final de Brasileirão. Não é por acaso. A classe rejeita a tese de que o resultado final do campeonato já está ou será afetado pelos erros ao longo das rodadas. De todo modo, a ideia da CBF foi levar um grupo que considera de elite — 19 árbitros centrais e 55 assistentes — para um regime de concentração na Granja Comary, em Teresópolis. O grupo está lá desde 18 de novembro e ficará até sábado (4).

No local em que as seleções brasileiras costumam se preparar para suas competições, a ideia da arbitragem é atingir, ao menos na reta final, um desempenho de Copa do Mundo. Os árbitros jogam sinuca, videogame e pingue-pongue. E até comem o cardápio preparado pela equipe do chefe Jayme Maciel, desde 1995 na cozinha da seleção brasileira. Mas o foco maior é na sala de aula, no trabalho físico em campo e na evolução psicológica.

"Afinar os conceitos, ter conceitos únicos. É um trabalho que já vinha sendo feito e a gente intensifica isso aqui. Outro aspecto é trazer os árbitros para cá para ficar 100% focados na atividade. Todos têm família, alguns têm trabalho, mas nesse momento era importante que eles estivessem aqui. Nesse ambiente, de mais descontração, a pressão diminui. Eles já têm pressão excessiva do campo de jogo. A gente pode realizar os debates com todos. Sem melindre, aponta equívocos e acertos", explica Alício Pena Júnior, presidente interino da comissão de arbitragem da CBF.

Alex Ramos/CBF
Igor Siqueira/UOL
Alício Pena Júnior, mineiro de 53 anos, presidente interino da comissão de arbitragem da CBF

Pressão também para quem comanda

A questão da pressão não se limita a quem está em campo ou entra na cabine do VAR. Na própria estrutura da CBF há uma demanda por uma melhor resposta de quem comanda a arbitragem. Tanto que em 12 de novembro a entidade anunciou a demissão do então presidente da comissão, Leonardo Gaciba.

A gestão interina de Ednaldo Rodrigues recorreu a Alício Pena Júnior, que era o vice, como alternativa provisória para conclusão das competições deste ano. A oferta foi feita em uma ligação telefônica, já que a arbitragem agora funciona em um prédio separado da CBF, ainda que na mesma rua.

"Lógico que foi um susto. Mas estou na arbitragem desde 1999. Estou preparado para cumprir a missão. Lamentamos a saída do Gaciba. É um companheiro de arbitragem, foi importantíssimo nessa implantação do VAR, é um cara que veio de TV, conhece TV. Foi muito importante, deu uma contribuição incansável. Mas é do processo. Não iria me furtar de cumprir a missão. Depois das competições, é decisão do presidente. Não tem compromisso de seguimento. O que ele decidir vai ser cumprido", explicou Alício.

Mas trocar o comando traz efeito para o campo?

"Acho que a situação vai ficando de uma maneira que se torna praticamente impossível a sequência, né? As decisões são superiores, a gente atende e tenta ter algum tipo de avanço para melhoria do processo. O presidente tem falado em reestruturação, algo feito para dar um novo gás aos árbitros", completou o presidente interino.

Entre os árbitros, a impressão da estratégia de levá-los para concentração foi bem recebida. A resposta virá jogo a jogo — até dia 3 de dezembro, por exemplo, todo dia tem pelo menos um.

A CBF procurou uma nova rota, com pessoas que estavam aqui e sentiram o cheiro da grama, como o Gaciba sentiu. Veio um momento muito conturbado, com liberação de áudio, com alguns equívocos nossos. Fica o agradecimento ao Gaciba. Alício entrou dando novo ânimo. Tenho certeza que a arbitragem vai dar uma resposta de excelência.

Marcelo de Lima Henrique, Árbitro do quadro Master da CBF

Gaciba fez um trabalho muito legal com a arbitragem. A implantação do VAR passou muito por ele. Agora, é um novo momento. Alício é querido por nós, muito capacitado. Isso me leva a crer que vamos terminar o Campeonato Brasileiro em alto nível.

Vinicius Furlan, Árbitro do quadro AB da CBF

Alex Ramos/CBF

"Pressionado, qualquer profissional tem tomada de decisão pior"

Qual avaliação do desempenho dos árbitros, em geral?

Alício Pena Júnior: O desempenho geral é positivo. Temos números que comprovam isso. Só que em determinados momentos, principalmente no final dessas competições, os erros têm uma dimensão muito exagerada. Situações polêmicas que para nós são acertos têm também essa dimensão exagerada. É uma situação que acontece em todo final de competição, quando se resolve título, rebaixamento, Libertadores e Sul-Americana. O ambiente de pressão é muito grande. Essas situações de campo são superdimensionadas. A avaliação do todo, de todas as decisões, é positiva.

Por que o erro acontece? Teve muito "elefante", que, no jargão da arbitragem, é o erro grave?

Alício Pena Júnior: Pode ser alguma coisa de aspecto físico, mental, ângulo de visão, conceito. Não tem algo isoladamente. Essa questão do elefante é algo muito pessoal, não é a média padrão. Todos esses aspectos estão envolvidos na tomada de decisão equivocada. Seja pilar mental, conceitos técnicos, posicionamento, deslocamento... Pressionado, qualquer profissional tem tomada de decisão pior. A gente está trabalhando para minimizar ao máximo.

O resultado do campeonato até agora foi afetado pela arbitragem?

Alício Pena Júnior: Não digo que a disputa foi afetada porque não temos: "Ah, esse time aqui foi favorecido". Alguns equívocos que aconteceram foram indistintamente. Não entendo que houve influência na definição de quem foi campeão. Ou de quem vai para Libertadores, rebaixamento... Não foram equívocos para prejudicar A ou B.

Como eles lidam com os erros

Robson Mafra/AGIF

Vontade de desaparecer

"Quando erro, eu quero sumir. Ficar em casa trancado, se for possível. Mexe com emoções. Mas antes mexe com a nossa vontade de acertar. No dia seguinte, vou rever o meu jogo, para ver se estava cansado, com decisões acumuladas ou uma coisa imponderável. Comi demais? Não dormi bem? Tive problema em casa? Identifico o erro para ir para a próxima partida. A gente comemora muito pouco também quando acerta. O árbitro é um ser muito isolado", contou Marcelo de Lima Henrique, que foi escalado para 27 partidas organizadas pela CBF em 2021, sempre como árbitro principal, sendo a mais recente o duelo entre Avaí x Sampaio Corrêa.

Marcello Zambrana/AGIF

Ferida fica aberta

"Existem alguns tipos de erro. Aquele em que eu não consegui enxergar, estava encoberto, não foi humanamente possível, tendo a absorver de forma melhor do que aquele maior, crasso. Já tive alguns na carreira, atrás. A ferida fica aberta e demora a cicatrizar. Mas a gente vem na busca para minimizar. Ainda bem que faz tempo que não passo por essa situação", comentou Vinicius Furlan, que atuou na cabine do VAR em 19 jogos organizados pela CBF em 2021. Ele ainda diz que os erros dos outros servem como aprendizado: "Somos uma equipe. Por mais que eu esteja em um jogo no Sul e o cara lá do Norte errou, vai refletir na gente de alguma maneira".

Alex Ramos Alex Ramos

O que já foi dito sobre a arbitragem em 2021

  • Guilherme Bellintani, presidente do Bahia

    "O futebol brasileiro virou um escândalo, um assalto, um absurdo. Fechem as portas. Terceiro jogo seguido com erro afrontoso contra o Bahia. Vergonhoso, indisfarçável. Querem rebaixar o Bahia? Eu imagino por que. Mas não vão conseguir".

    Imagem: Felipe Oliveira / EC Bahia
  • Rodrigo Caetano, diretor de futebol do Atlético-MG

    "Critérios existem para alguns. Para o Galo, não. Vimos um pênalti igual ao que aconteceu hoje, e em Palmeiras e Internacional, hoje à tarde. Espero, sinceramente, que seja incompetência, não nada além disso".

    Imagem: Bruno Cantini
  • Renato Gaúcho, técnico do Flamengo

    "Falo isso há três, quatro anos: quem apita o jogo é o VAR. Infelizmente é o VAR. O Flamengo hoje não está disputando o título justamente pelos erros de arbitragem claríssimos".

    Imagem: Alexandre Vidal/CRF
  • Romildo Bolzan, presidente do Grêmio

    "Nós temos passado por uma situação muito constrangedora com a arbitragem brasileira. O Grêmio a todo jogo, que se sente prejudicado, faz reclamações e recebe respostas. A ouvidoria tem confessado erros. Tenho muito receio da arbitragem".

    Imagem: Reprodução/SporTV

Quando me perguntam em cima de um suposto favorecimento ao meu time, eu fico mais à vontade para responder. Porque o caminho único que existe para o futebol é a profissionalização. O árbitro não pode ser um servidor público, advogado, contador, como eles são. Eles podem ser isso se não forem um cara da arbitragem. Futebol envolve milhões e milhões, a coisa mais cara do mundo, e não profissionaliza uma das funções mais importantes que tem, que é a condução. Hoje, o pessoal da Central do Apito é profissional. E por que não se profissionaliza. Não vai mais ter erro? Hoje, os caras estão treinando lá na Granja. Legal. Mas não é só agora. Tem que ser direto. E aí eles vão, dentro dessa profissionalização, ser cobrados.

Cuca, Técnico do Atlético-MG

Igor Siqueira/UOL

"Às vezes, tem uma festa, um casamento, e você não vai"

Fuzileiro naval da reserva, Marcelo de Lima Henrique é figurinha repetida na arbitragem carioca há pelo menos duas décadas. Nos bastidores, é chamado pelos árbitros de "vovô, master e 01". Aos 50 anos, planeja apitar em alto nível, no mínimo, por mais um ano. Membro do quadro da Fifa entre 2008 e 2014, ele foi responsável por algumas decisões de estadual no Rio, sabe bem o que é a rivalidade local e, por isso, toma algumas medidas de segurança para preservar sua integridade física.

"Se sair de um grande clássico do Rio ou do Brasil com um erro, vamos dizer assim, você tem que deixar de ir a alguns lugares. Tem que deixar de ir ao mercado, sim. De fazer compras, de ir ao cinema, porque você vai encontrar pessoas com nervos aflorados, mal-educadas. E você tem que saber lidar com isso. É bonezinho, óculos escuros. Agora, com máscara ainda para disfarçar mais. As pessoas esquecem que somos pessoas normais, que têm que pagar conta, fazer compra. Infelizmente, a falta de respeito pelas instituições no Brasil reflete na arbitragem. Se a maioria não respeita pai e mãe, por que seria diferente com a arbitragem? Às vezes, tem uma festa, um casamento, e você não vai", contou ele.

Para onde você já deixou de ir?

Marcelo de Lima Henrique: Já perdi vários eventos. Eu me lembro de uma festa de 15 anos que seria em um domingo. E no domingo anterior tinha apitado uma final de Carioca que não foi muito bacana para a equipe de arbitragem. Eu sabia que poderia ter problemas, com muitos jovens. Resolvi não ir. Minha esposa entendeu bem. Os filhos não entenderam, mas eles foram sozinhos. Foi em 2014, final Flamengo x Vasco.

(O Flamengo foi campeão estadual ao empatar aos 45 minutos do segundo tempo, com gol de Márcio Araújo, impedido).

Mas e quando não dá para driblar?

Marcelo de Lima Henrique: Eu tive um episódio extremo na fila do cinema uma vez, nesse mesmo ano de 2014. O cidadão, com sua esposa, ofendeu a gente moralmente. A mim e minha família. As pessoas no Niterói Plaza foram falar com ele, dizendo que ele não estava no Maracanã. Eu assisti à sessão. Ele foi impedido de entrar pela segurança. Já tive que desviar caminho na praia. Eu gosto muito de ir em Arraial do Cabo. Fui caminhar, correr e ficaram me esperando na volta. Eu tive que dar uma volta maior para não passar e evitar um problema.

Reprodução
Montagem com Marcelo de Lima Henrique: vizinho acrescentou escudo do Flamengo e faixa vermelha

Montagem que "causou problemas" foi feita por vizinho

Você já foi vítima de fake news quando o termo não era nem popular. Como foi aquela história da montagem que te colocaram com a camisa do Flamengo, em 2008?

Marcelo de Lima Henrique: Essa montagem me causou muitos problemas. Clubes queriam me vetar porque tinha foto com a camisa... Era uma montagem descarada. Faltou zelo da imprensa também. A foto foi publicada em um jornal de grande circulação, na primeira página. No rodapé, "a editoria de imagem diz que é uma fotomontagem". Faltou zelo. Tem que ter responsabilidade. Me deixou triste. Depois, a pessoa que fez a montagem me pediu desculpa. Ele se identificou, foi um vizinho. Pegou uma foto minha no Orkut. Causou um grande mal. É meu vizinho ainda. "Bom dia, boa tarde, boa noite". Ele errou na época. Era um torcedor, jovem. Fez uma montagem de zoação no grupo. Era uma montagem bem feita, à época. Hoje, é grotesca. Até hoje eu ouço gracinha em relação a isso.

E nas redes sociais, com uma dimensão maior do que em 2008, qual é sua política atual?

Marcelo de Lima Henrique: Sou ativo nas redes sociais para passar aos mais jovens o que a arbitragem me deu. Recebo várias e várias ameaças. Mas não levo a público porque o ameaçador que está ali ele se acovarda. Hoje, a coisa é mais digital. Em 2008, eram ligações para casa, dizendo: "Eu sei onde sua filha estuda, sua mulher trabalha". Mas encarei isso como bravata. Na rede social, excluo, bloqueio, não discuto. Ou deixo um "Deus abençoe".

Alex Ramos/CBF Alex Ramos/CBF

"VAR é um caminho sem volta"

E como está a conexão entre VAR e o campo?

Alício Pena Júnior: A relação com o VAR é boa. Não existe na nossa arbitragem deixar para o VAR decidir. Eles decidem de acordo com o que têm condição no campo de jogo. O VAR é assistente e submete ao árbitro o que ele tem de informação. Lógico que tem imagem, prova de um acerto ou equívoco. Mas quem decide sempre é o árbitro central.

Como avalia o grau de intervenção ou omissão do VAR?

Alício Pena Júnior: A linha de intervenção vai variar de acordo com o que acontece no campo de jogo. Às vezes um erro claro e óbvio não é grosseiro. É fino. Mas pode ser grosseiro. Às vezes o árbitro está encoberto, o que impossibilitou a tomada de decisão correta. A linha de intervenção tem uma variável.

Mas tem críticas ferozes ao VAR. Como lida com isso, agora na função de quem vai liderar os árbitros?

Alício Pena Júnior: É aprimorar ao máximo o trabalho do árbitro no campo de jogo para que ele possa decidir bem. Com as decisões corretas, a gente diminui a intervenção do VAR. A base do futebol continua sendo campo de futebol. Mas o VAR é um caminho sem volta. Temos que avançar, nos adaptar, fazer correções, enxergar o processo e seguir com ele. Não existe possibilidade de o VAR deixar de ser usado. Mas tem que acertar no campo para baixar as intervenções.

Igor Siqueira/UOL

Secretário de Esportes e VAR: "O pessoal está na cova do leão"

"No primeiro jogo, foi uma insegurança muito grande", lembra Vinicius Furlan sobre a primeira experiência como VAR, em 2019. Duas temporadas depois, ele é um dos que já se dizem bem mais acostumados com o ambiente da cabine e com a responsabilidade que lhe é devida.

"Hoje, mudou da água para o vinho. A gente se sente seguro, mais tranquilo. Vamos leves para o jogo. Quanto mais preparado, mais seguro. É um processo", diz ele.

Profissional de educação física, Furlan se divide entre a arbitragem e o cargo de secretário de Esportes de Santa Bárbara d'Oeste, município do interior de São Paulo. A jornada dupla no cotidiano envolve acordar 5h30, fazer o treinamento físico — alternando entre corrida de pista e academia. Depois de bater ponto no trabalho, o segundo tempo é online, com reuniões e aulas teóricas sobre arbitragem. E o acompanhamento psicológico não fica fora da equação.

"A começar pela minha amada esposa, que é uma psicóloga. De formação. Dentro de casa eu sei a importância que esse acompanhamento tem para a vida. Tenho certeza que isso me trouxe até aqui. A arbitragem brasileira evoluiu muito nesse aspecto. O pessoal está na cova do leão na quarta e no domingo. Temos um suporte da psicóloga da CBF. As federações também disponibilizam. Mas acho ideal o cara ter seu próprio profissional", comenta Furlan.

O árbitro evita assistir o que é falado sobre a arbitragem na imprensa. Coletiva pós-jogo, então, nem pensar. Segundo ele, o trabalho após as rodadas é mais interno, "focado no que importa", trocar experiências com os colegas do ramo.

Mas fugir do futebol para outra atividade menos tensa passa longe do radar:

"Nunca pensei em largar. Sou apaixonado por isso aqui".

Alex Ramos/CBF Alex Ramos/CBF

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