Outro obstáculo

Não é só a pandemia: a volta do Campeonato Paulista depende também na solução de impasses políticos

Do UOL, em São Paulo Edson Lopes Jr./UOL

Os clubes que disputam a Série A1 do Campeonato Paulista se reúnem semanalmente há mais de dois meses, em busca de um caminho para viabilizar a retomada do futebol no estado. A realidade de São Paulo, que tem uma das maiores densidades demográficas do país em meio a uma pandemia que não dá sinais de ser controlada, é um obstáculo externo difícil de ser enfrentado. O novo coronavírus, entretanto, expõe também divergências políticas e divisão de estratégias entre os que pretendem superá-lo.

Na última reunião entre as equipes da elite do Paulistão e a Federação Paulista de Futebol, um dos participantes do campeonato admitiu ter retomado os treinamentos, gerando revolta nos demais, que falam na existência de um pacto para retorno simultâneo de todos. A partir do incidente, realidades diferentes mostram a falta de um plano único para a conclusão da competição. Há uma série de arestas a serem aparadas.

Os municípios paulistas são atingidos de formas distintas pela pandemia: alguns ainda pretendem manter regras mais rígidas de isolamento social, enquanto outros já caminham para o relaxamento. O mesmo pode ser dito sobre os clubes, que dividem-se entre aqueles que estão estrangulados financeiramente e precisam de um retorno urgente às atividades e aqueles que têm folego para uma decisão mais lenta e deliberada. Há ainda times que tinham contratos com atletas apenas até abril ou junho e agora precisam renegociá-los, mesmo sem nenhuma certeza sobre datas para um novo calendário.

Aos poucos, o protagonismo de São Paulo, Palmeiras, Corinthians e Santos na tomada de decisões começa a gerar mal-estar com os demais clubes do Paulistão, que vivem realidade drasticamente desigual. A partir de conversas com os envolvidos nas negociações, o UOL Esporte tenta posicionar as peças no tabuleiro do jogo de interesses em torno de que a bola volte a rolar.

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Um clima de desconfiança mútua

Não existia uma regra escrita, mas havia um acordo verbal entre os clubes do Paulistão para que todos retornassem aos treinamentos simultaneamente, mediante autorização do Governo do Estado. O pacto teria sido quebrado pelo Red Bull Bragantino, que, entre outras coisas, alegou uma determinação da empresa que o gere para convocar o elenco e retomar as atividades.

Em uma reunião tensa com representantes dos outros clubes e com a FPF no dia 5 de junho, o clube de Bragança Paulista admitiu a volta aos treinos, gerando incômodo e constrangimento. Andrés Sanchez, mandatário do Corinthians, chegou a discutir com Marquinho Chedid, presidente do Red Bull. O fato ainda abriu caminho para um clima de desconfiança mútua, com vários dirigentes acreditando que outras agremiações possam estar adotando, a portas fechadas, a mesma postura.

"Havia um consenso (sobre volta aos treinos juntos). Não era uma regra, mas código de ética. Cumpre quem quer. Alguns clubes voltaram, o que teve a dignidade de admitir foi o Red Bull Bragantino, que justificou dizendo que eles tiveram uma orientação, quase determinação da empresa para retornar às atividades, principalmente por preocupação com o Brasileiro", diz Sidney Riquetto, presidente do Santo André, líder do Paulista até a paralisação. Ele completa:

Dos outros clubes que não têm a mesma condição de retorno, e os clubes grandes, houve uma reação. Um constrangimento, mas tudo em um nível educado e racional."

A situação criou um movimento geral no sentido de apressar o retorno em todas as frentes. Isso passa, porém, por autorizações do poder estadual ou das autoridades municipais onde cada clube está sediado. Enquanto tentam viabilizar a volta a campo, os clubes se veem cercados por essa sensação de paranoia. Circula pelos grupos de WhatsApp de dirigentes, técnicos e jogadores "denúncias" e supostos flagras das atividades dos concorrentes, num tiroteio de acusações.

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Red Bull teme que clubes paulistas fiquem para trás

Criticado pelos demais integrantes da elite do futebol paulista, o Red Bull Bragantino tentou mostrar, durante a reunião ocorrida na última semana, que há a possibilidade de retomada dos treinos. O departamento de futebol do clube teme que haja um desnível no preparo físico dos atletas em atividade em São Paulo em relação aos de outras regiões durante os torneios nacionais. Há o receio que especialmente Inter e Grêmio, por exemplo, tenham melhor condicionamento no decorrer das competições, por terem retomado seus treinos um mês antes.

Hoje, os jogadores do Red Bull fazem exercícios físicos em espaço aberto, com grupos de até oito atletas. Cada grupo tem seu próprio estafe para condução das atividades, com um fisioterapeuta, um preparador físico e até mesmo um roupeiro específicos. O técnico Felipe Conceição não participa dos trabalhos. O clube teve o aval das autoridades de vigilância sanitária locais.

O Red Bull defende que é possível retornar às atividades de forma responsável neste momento, adotando um protocolo de segurança semelhante ao que foi feito pelos times da Alemanha. Para isso, sua diretoria tinha em mãos o plano adotado pelo RB Leipzig no início de abril, quando a epidemia do novo coronavírus ainda não estava controlada no país europeu — com mais de 6.000 novos casos confirmados por dia, um patamar semelhante ao do Estado de São Paulo atualmente.

O clube, no entanto, não teve a chance de tentar validar sua defesa com esses dados. De todo modo, em que pese a quantia semelhante de casos confirmados em solo germânico à época com o que é divulgado pelas autoridades paulistas no momento, os indícios das autoridades alemãs eram de que sua curva estava prestes a cair. Ao final de abril, a conta já estava em torno de 1.000 diagnósticos positivos para Covid-19.

Apenas o Ituano ensaiou uma defesa à tese que seria apresentada pelo Red Bull Bragantino. O time se preocupa também com a diferença que pode existir na Série C do Campeonato Brasileiro. Entretanto, não conseguiu ter voz ativa na discussão.

De qualquer forma, um movimento da Federação Paulista de Futebol uniu praticamente todos os clubes do interior, incluindo o Red Bull: eles não gostaram quando a entidade chamou o quarteto Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo para conversa separada, uma semana antes da reunião que gerou o desconforto em torno do time de Bragança.

Edson Lopes Jr./UOL Edson Lopes Jr./UOL

Um descompasso entre os quatro grandes

Ao menos publicamente, Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo têm a mesma postura em relação à retomada dos treinamentos. O chamado G4 pretende colocar todos os seus atletas para trabalhar em suas dependências apenas quando tiver autorização das respectivas autoridades responsáveis. O trio da capital tem a expectativa de receber da Prefeitura o aval para ir a campo no dia 15, pelo menos para treinar.

Porém, há uma diferença de ritmo em suas batidas. O Alviverde é o mais cômodo entre os quatro, e isso motiva um questionamento indireto de alguns concorrentes sobre sua toada. Com uma situação financeira mais estável do que os arquirrivais, o clube tem fôlego para tomar as suas decisões e manter os seus atletas em segurança.

Corinthians, Santos e São Paulo já vivem momentos conturbados no que diz respeito a suas finanças. O Alvinegro da capital diminuiu em 25% os salários de seus jogadores. O Tricolor paulista pagou 50%, enquanto o time da Baixada Santista cortou em 70% os vencimentos acordados em contrato. Numa reunião entre os presidentes dos quatro clubes, foi discutida uma uniformização nos cortes salariais, mas a conversa não saiu de um estágio preliminar. O Palmeiras era o menos inclinado a avançar com o assunto.

Uma pesquisa encomendada pelo Sindicato dos Atletas de Futebol do Município de São Paulo (Siafmsp) à consultoria Esporte Executivo dá pistas sobre a posição mais cautelosa do G4. Embora ainda em minoria, os jogadores da Série A1 se mostraram mais reticentes quanto ao retorno do futebol em comparação com as divisões inferiores: 44,88% disseram que eram contra, citando como principal razão o fato de não acreditarem que haja segurança suficiente para preservação de sua saúde. Já as necessidades financeiras motivaram a maior parte dos votos a favor.

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As incertezas dos clubes pequenos

Os clubes de menor orçamento de São Paulo sofrem maior impacto. O caso mais emblemático é o do Santo André, líder geral do Estadual até a décima rodada, quando o campeonato foi paralisado. O time do ABC Paulista tinha 25 inscritos na competição. Destes, 21 já estão com contrato vencido. Sua diretoria se esforça psra tentar manter a base do time que vinha correspondendo. Há no momento até nove jogadores comprometidos, em acordos verbais, em retornar. Todos peças importantes do elenco.

Mas dois de seus atletas já estão fora: o zagueiro Luizão, que foi para a Ponte Preta, e o atacante Ronaldo, vice-artilheiro do Paulista, que se transferiu para o Sport. A Ponte, aliás, com sua atuação no mercado, também expõe mais um impasse para a restauração campeonato. O clube campineiro também desfalcou o Mirassol ao contratar o meia Camilo (foto) e o lateral esquerdo Ernandes. Se o calendário do Estadual tivesse sido cumprido à risca, a dupla estaria do outro lado do campo no duelo marcado para a última rodada da fase de grupos.

Para os atletas que ainda estão no radar do Santo André, a instrução foi dada para que cumpram um plano de exercícios, por ora, em casa. É o mesmo caso do Novorizontino. Em contato com a reportagem do UOL Esporte, o presidente do clube, Genilson da Rocha Santos, frisou que os jogadores do elenco recebem orientações e e as seguem em casa, no quintal e até na garagem. O dirigente ressaltou ainda que o acordo entre os clubes era realizar treinos remotos.

"O acordado foi que os clubes aguardassem o posicionamento da Federação. Para que todos voltassem ao mesmo tempo para usar suas estruturas", disse Genilson.

O discurso é endossado por Adalberto Baptista, presidente do conselho de administração do Botafogo-SP: "Havia sido deliberado no Conselho Arbitral, por unanimidade dos clubes da Série A1, que todos retornariam aos treinamentos conjuntamente, para que não houvesse um desequilíbrio ainda maior além daqueles que a pandemia já trouxe na competitividade entre os clubes. Estamos cumprindo fielmente o que fora deliberado e temos certeza que a FPF tomará todas as medidas e providências para que essa desigualdade não ocorra", disse ao UOL.

A Ferroviária, por sua vez, passou a disponibilizar a estrutura do clube depois que a prefeitura de Araraquara flexibilizou o isolamento social na cidade. De acordo com apuração da reportagem, não há treino com bola — apenas físico, na academia. Com mais dinheiro no caixa, o clube enfrenta a paralisação com certa tranquilidade na comparação com os outros clubes do interior.

A Ferrinha se prepara para a disputa da Série D do Campeonato Brasileiro. Mirassol, São Caetano e Novorizontino. Ituano e São Bento (que disputa a A2 do Paulista) estão na Série C do Brasileirão. Quatro clubes estão na Série B nacional: Botafogo, Guarani, Oeste e Ponte.

Já a Inter de Limeira, que não tem competições nacionais no segundo semestre, solicitou autorização à Prefeitura de Limeira para a retomada dos treinamentos. Dirigentes do clube vão falar sobre o assunto em entrevista coletiva que acontecerá até sexta-feira (12).

Reprodução

Globo acena com pagamento do restante dos direitos em duas parcelas

As receitas de transmissão da TV Globo aparecem como um dos principais itens no debate sobre a volta do futebol. Afetada pela pandemia do novo coronavírus de diferentes maneiras e sem contar com as partidas para transmitir, a emissora suspendeu os pagamentos da última parcela aos clubes da Série A1. O último jogo transmitido pela organização foi o dérbi campineiro entre Guarani e Ponte (foto) em seu sistema de pay-per-view.

Os pagamentos são uma das maiores fontes de renda de praticamente todos os clubes brasileiros. Para que voltem a contar com esse dinheiro, a receita é fazer a bola voltar a rolar. Mesmo sem público nos estádios, há expectativa de grande audiência com o retorno das partidas, fazendo toda a cadeia de patrocinadores que sustenta o futebol paulista voltar a girar.

Hoje, a Globo acena com um pagamento em duas parcelas: uma cinco dias antes do apito inicial para a primeira partida, após um acordo para a retomada, e outra cinco dias antes da final. Os quatro grandes (Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo) têm direito a uma fatia maior do que os demais clubes. Vale destacar ainda que a Globo pagou aos envolvidos uma fração dos direitos de transmissão do Brasileirão.

Angelo Baima/Prefeitura de Santo André

Próximo passo depende de resposta. Já existe plano B

A Federação Paulista elaborou no dia 5 de junho um protocolo específico de volta aos treinos, que foi reapresentado ao Governo do Estado de São Paulo com o objetivo de viabilizar um retorno geral a todos os clubes que disputam a Série A1. Uma nova reunião aconteceria hoje (10), mas foi adiada para amanhã, à espera de uma resposta das autoridades.

O protocolo envolve uma testagem tão logo os atletas se apresentem. Aqueles que forem negativados ficariam praticamente confinados nos Centros de Treinamento, sem contato externo com familiares ou locais públicos. No momento em que as competições retornarem, dois dias antes dos jogos, seria feita uma nova testagem. Assim, as equipes que permanecem na competição são testadas antes e depois das partidas.

Caso o Governo não autorize, já há um plano B: a partir disso, os clubes passam a negociar com autoridades municipais em busca dessa liberação, cada um dentro da sua realidade. Na prática, já está acontecendo. Em alguns casos, como o do Santo André, isso pode passar até por uma mudança de cidade.

"O que vai haver é cada um buscar sua solução dentro do município. Alguns clubes conseguem autorização, é o caso do RB Bragantino, que inclusive disse para a gente que estava abrindo essa porta, mas alguns clubes têm uma entrada maior, outros não. Nós, por exemplo, vamos ter que buscar CT fora de Santo André. O estádio virou hospital de campanha. Todos os setores do futebol profissional ficaram desativados. Tem que buscar uma autorização em um local fora", diz o presidente Sidney Riquetto.

Edson Lopes Jr./UOL Edson Lopes Jr./UOL

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