Por trás do brilho

Salário baixo, calor extremo e quarto com 12 pessoas: a realidade dos trabalhadores da Copa do Qatar-2022

Tiago Leme Colaboração para o UOL, em Doha (Qatar) Tiago Leme/UOL

O Qatar vai inaugurar os oito estádios que receberão os jogos da Copa do Mundo de 2022 mais de um ano antes da partida de abertura, marcada para o dia 21 de novembro de 2022. São instalações modernas, com sistema de resfriamento para suportar o calor do Oriente Médio e construídas de maneira acelerada em um país riquíssimo.

Por trás do luxo, porém, está a realidade dos imigrantes que estão construindo o Mundial. O preço pago é mais alto do que os bilhões de dólares das obras: milhares de homens estão encarando rotinas no trabalho árduas e vivendo em condições precárias, em meio a acusações de violações de direitos humanos e pelo menos 6500 mortes.

A reportagem do UOL esteve no Qatar, conversou com alguns desses trabalhadores, ouviu histórias de vida e viu de perto esta situação que gera críticas internacionais. Quem sofre e luta em busca de sonhos bem mais humildes são operários anônimos vindos de países pobres, principalmente da Ásia Meridional.

Essa é a primeira reportagem de uma série sobre o país que vai abrigar a Copa do Mundo de 2022.

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Saí de casa para tentar uma vida melhor aqui, para ajudar minha família. Minha expectativa era grande, mas depois vi que não seria fácil. O Qatar é um bom país, seguro, moderno, mas existem duas realidades distintas aqui. O país que se vê na televisão pelo mundo é só para gente rica. O nosso dia a dia é bem diferente, com trabalho pesado, cansativo e pouco dinheiro".

Shajj, de 29 anos, trabalhador vindo de Bangladesh

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Salário baixo, quarto lotado, calor

Em uma tarde de sol forte, só o que se via era areia e poeira. Em frente às obras do estádio Icônico de Lusail, que fica a 20 km da capital Doha e vai receber a final da Copa, um grupo de operários vestindo coletes amarelos e capacetes, com ferramentas na mão, trabalhava na construção de uma via de acesso ao lado de uma novíssima estação de metrô. Em conversa com a reportagem, eles relataram as principais dificuldades enfrentadas: salários baixos, moradias precárias e trabalho intenso sob muito calor.

Mohamad Amran, de 32 anos, de Bangladesh, demonstrou desconfiança ao ser abordado pela reportagem, mas depois ficou à vontade. Aos poucos, foi revelando detalhes da sua realidade. Conversando em inglês com certa limitação no idioma, contou que, assim como a maioria dos trabalhadores deste nível mais simples, ganha por mês um salário de 1.500 rials qataris, a moeda local. É o equivalente, hoje, a 400 dólares ou R$ 2.300. São pelo menos oito horas de trabalho por dia, com uma folga por semana.

Deste dinheiro, ele explicou que consegue guardar cerca de 800 rials, pouco mais da metade do que recebe, para enviar à família a cada mês. Para isso, é preciso viver no limite. O restante do salário é gasto com hospedagem, alimentação e quase nada em lazer. A despesa com aluguel do local onde ele mora é de 250 rials mensais. O quarto, com seis camas beliche, ele divide com 12 pessoas. A casa tem 11 quartos assim e oferece zero em conforto e muita sujeira.

"Nossa rotina aqui se resume a trabalho, casa e falar com a família por telefone. Mas fiz vários amigos do meu país aqui no Qatar. Moramos todos juntos, cozinhamos comidas do Bangladesh e falamos do futuro. Isso tudo ajuda a matar as saudades de casa", disse Mohamad.

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"Cidade do Trabalho" vigiada por guardas armados

As imagens do Qatar espalhadas do pelo mundo destacam prédios suntuosos e arranha-céus espaçosos. A maioria desses cartões-postais fica na região de West Bay e no The Pearl (A Pérola), onde a elite local mora. Essa classe dominante é formada por qataris e estrangeiros expatriados. São eles que têm acesso a empregos melhores, em empresas multinacionais ou da área de gás natural e petróleo, as principais receitas do país.

Mas não é preciso ir longe para notar uma enorme diferença do ambiente. A apenas 20 km ao sul de Doha fica o bairro chamado de Labour City —cidade do trabalho em inglês. O local, que também é conhecido como Asian Town, é um conjunto habitacional em que vivem cerca de 70 mil empregados na construção civil.

A maioria desses operários vem de Índia, Bangladesh e Nepal, países pobres da Ásia Meridional. Juntos, os imigrantes destes países somam 1,3 milhão de pessoas no país-sede da Copa de 2022. É importante citar que mais de 80% da população de 2,8 milhões de habitantes do Qatar é formada por estrangeiros.

Esse complexo foi construído pelo governo exclusivamente para abrigar esses operários e conta com shopping center, teatro, cinema, mesquita e campo de críquete —esporte tradicional nesses países asiáticos. O efeito disso é que esses imigrantes pouco se misturam com os outros cidadãos do país. São centenas de prédios iguais, bem vigiados por guardas, e com entrada permitida apenas para residentes ou com autorização especial.

Tiago Leme/UOL Tiago Leme/UOL
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"Gostaria de ver um jogo na copa, mas sei que vai ser impossível"

Apesar das reclamações e relatos de trabalho duro, a maioria dos imigrantes resiste com um objetivo: juntar dinheiro para dar uma vida melhor à família em casa. Sem opção de emprego melhor em Bangladesh, Mohamad contou sobre o seu sonho: "É um sacrifício válido por alguns anos, mas quero voltar para casa logo pra ficar com minha mulher e filhas, dar melhores condições para elas. Não tem jeito de trazer elas para cá, infelizmente. Tenho uma filha de quatro anos e outra de nove e quero que elas tenham no futuro uma qualidade de vida melhor do que a minha".

Enquanto estão longe dos familiares, os trabalhadores tentam matar as saudades de casa ao lado dos amigos. A reportagem conversou com um grupo de cerca de 30 bengaleses que jogavam críquete em um gramado perto da Corniche, a orla de Doha. Com tacos, luvas e bolas na mão, deixaram claro que a preferência esportiva é pela modalidade que surgiu na Inglaterra e é semelhante ao beisebol. Mas também explicaram que muita gente no país gosta de futebol. Entre eles, dois indivíduos se destacavam: vestiam camisetas do Barcelona e do Paris Saint-Germain.

"Eu gostaria de ir ao estádio para ver um jogo na Copa, mas sei que vai ser impossível. Os ingressos são caros. Gosto muito do Messi, do Neymar e de outros craques. Lá em Bangladesh, minha família torce para o Brasil. Tem muita gente também que torce para a Argentina. Então, vou acabar meu trabalho aqui, voltar pra casa e ver os jogos pela TV. O futebol não é popular no nosso país atualmente. Antes era um pouco mais, mas nem se compara com o críquete, que é realmente o esporte que todos gostam, jogam, entendem", afirmou Shadman Hossain, que também trabalha em construções.

Falar de mortes é tabu entre operários

Em todos os contatos que a reportagem teve com trabalhadores das obras no Qatar, um assunto sempre foi um tabu para os entrevistados: as mortes no trabalho. Mesmo depois de contarem histórias de dificuldades e situações precárias, todos evitaram falar abertamente sobre o tema. Bastava tocar no assunto que os semblantes se fechavam e o sentimento parecia ser de preocupação. Os poucos que falaram usaram poucas palavras, mas deram a entender que, mesmo sabendo dos riscos, não possuem alternativa a não ser continuar lutando.

"A gente escuta algumas histórias. Teve um amigo que contou sobre um colega da Índia que passou mal e morreu no quarto dele. Mas eu não sei dizer, não conheço ninguém que passou por isso [morte]. Temos que nos cuidar aqui. Apesar de ser muito calor no verão, a gente tenta descansar quando está mais quente", disse um operário do Paquistão que preferiu não dizer o nome.

Mais de 6.500 mortos

Segundo reportagem do jornal britânico The Guardian, publicada em março deste ano, mais de 6.500 trabalhadores imigrantes morreram no Qatar desde dezembro de 2010, quando o país foi eleito sede da Copa do Mundo de 2022. Essas mortes incluem pessoas vindas da Índia, Paquistão, Bangladesh, Nepal e Sri Lanka, mas os números podem ser ainda maiores, já que não estão computadas outras nacionalidades, como os operários que vêm das Filipinas e do Quênia, por exemplo.

De acordo com a publicação, entre 69% e 80% dessas mortes foram atribuídas a "causas naturais", mas essas classificações geralmente são feitas sem uma autópsia, o que impede que haja uma explicação médica legítima. Apesar da falta de esclarecimentos oficiais, existem denúncias de que problemas respiratórios e paradas cardíacas tenham acontecido por causa do forte calor.

A Copa teve seu período de realização alterado por causa das altas temperaturas no verão do Oriente Médio, que podem chegar até a 50 graus Celsius. A competição saiu de junho e julho, como acontece normalmente, e foi para novembro e dezembro. Nesses meses do fim do ano, inverno no Qatar, as temperaturas variam em média entre 15 e 30 graus Celsius. A construção da infraestrutura do Mundial, no entanto, não parou durante todos esses anos.

A situação dos imigrantes gerou protestos e ameaças de boicote ao Mundial do Qatar durante jogos das eliminatórias europeias, no fim de março deste ano. Jogadores das seleções de Alemanha, Holanda, Noruega e Dinamarca entraram em campo vestindo camisas com mensagens a favor dos direitos humanos. Eram críticas ao país que sediará a Copa.

Tiago Leme/UOL Tiago Leme/UOL

Mudanças nas leis trabalhistas

Acusações internacionais, que incluíram uma carta enviada pela Anistia Internacional, fizeram a Fifa pressionar o Governo do Qatar para dar melhores condições aos trabalhadores. Em agosto de 2020, as autoridades anunciaram mudanças nas leis trabalhistas em um processo que já tinha começado em 2019. Os principais avanços foram o fim do sistema da "kafala" (palavra em árabe que significa "patrocínio"), que não permitia ao funcionário mudar de trabalho ou mesmo deixar o país sem autorização do seu empregador, e a implementação de um salário mínimo mensal de 1.000 rials qataris (275 dólares ou R$ 1.500) sem discriminação por nacionalidade. Também ficou prevista uma ajuda de mais 500 rials para acomodação e 300 rials para alimentação, caso essas despesas não estejam inclusas no contrato.

No entanto, seis meses depois dessas alterações na teoria, na prática nem sempre isso acontece. Apesar de alguns avanços e pontos positivos, ainda há muitos problemas e reclamações. A nova lei permite que uma pessoa possa se desvincular do contrato com a empresa que trouxe ela ao país da Copa, na esperança de conseguir um trabalho melhor. Porém, essa tentativa nem sempre é bem-sucedida.

Vários trabalhadores entrevistados revelaram terem sofrido ameaças por parte dos empregadores quando fizeram o pedido para mudarem de emprego. Outros contaram que não chegaram nem a tentar, com medo após ouvirem histórias de amigos e conhecidos. Muitos não sabem exatamente quais os direitos legais que possuem agora. Também há queixas quanto a salários atrasados e horas trabalhadas além do previsto. Preocupados com possíveis represálias, eles preferiram não se identificar ao falarem com a reportagem, pois disseram ter medo de perder o visto ou serem deportados do Qatar.

O que dizem os operários

Estou morando aqui em Doha há cinco anos, mas muita coisa que me prometeram quando eu saí da Índia não foi cumprida quando cheguei aqui. Me pagaram menos do que tinham falado e tenho menos tempo de folga."

Sunil*

Eu fiz o pedido para mudar de emprego há dois meses, mas até agora não tive uma resposta. Falam que eu tenho que esperar, que seria melhor eu continuar neste trabalho."

Mohammed*

Tenho um amigo também do Bangladesh que queria ir para outro trabalho, mas agora está quase sendo mandado embora para casa. O visto dele no passaporte foi cancelado."

Abu*

Sou um dos poucos que conheço com sucesso desde que mudaram a lei. Deixei a construção e agora sou entregador de comida. O salário é o mesmo, mas o trabalho é bem mais leve."

Abdullah*

* O nome dos trabalhadores foi alterado na reportagem a pedido deles, preocupados com possíveis represálias no Qatar.

Qatar contesta número de mortes; Fifa ressalta melhora

O Governo do Qatar contesta o número de mortes divulgado pela imprensa europeia. Destaca a transformação feita na legislação para melhorar as condições dos trabalhadores imigrantes. A Fifa e o Comitê Organizador da Copa seguem no mesmo caminho. Falam na diminuição do número de mortes nos últimos anos, citando as evoluções realizadas.

Em um documento enviado à reportagem com o título "Bem-Estar dos Trabalhadores", a Fifa e o Comitê dizem que desenvolveram um conjunto de padrões para garantir "saúde, segurança e dignidade" dos trabalhadores, desde o recrutamento a até a repatriação, através de auditorias frequentes.

Os dados mostram que 32 mil trabalhadores estavam na ativa no meio de 2019, época que foi o pico das obras. De acordo com a entidade, com os procedimentos iniciados em 2016, houve inspeções em construções e acomodações, acompanhamento médico, programas de treinamento, nutrição e controle de stress por causa do calor, além do reembolso das taxas de contratação (cobrança que ficou proibida com as mudanças na lei).Uma das medidas implantadas fala na "exigência legal de interromper o trabalho das 11h30 às 15h durante os meses de verão, incluir áreas sombreadas a cada 100 - 200 metros, estações de água com água fria e sais de reidratação a cada 300 - 400 metros, uma garrafa de água obrigatória carregada por cada trabalhador durante todo o turno, áreas ventiladas e áreas de descanso com ar-condicionado".

LEONHARD FOEGER

Desde que a Copa do Mundo de 2022 foi concedida ao Qatar, tem havido um grande esforço coletivo das autoridades locais para trazer mudanças positivas, e estamos realmente satisfeitos em ver que isso se materializou em um grande progresso concreto na área de direitos dos trabalhadores. Este marco importante demonstra a capacidade da Copa do Mundo de promover mudanças positivas e construir um legado duradouro. Definitivamente, ainda há espaço para mais progresso e continuaremos a trabalhar para promover uma agenda progressiva que deve ser de benefício de longo prazo para todos os trabalhadores no Qatar".

Presidente da Fifa, Gianni Infantino, ao site oficial da entidade.

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