Eu venci a covid-19

Minha História: Bruno Schmidt e a luta pela vida após contrair coronavírus e ter 70% dos pulmões comprometidos

Bruno Schmidt Depoimento para Nathalia Garcia, colaboração para o UOL, em SP Ricardo Borges/UOL

Não vou mentir, eu não tinha medo da covid-19. Pensava até que já tinha contraído o coronavírus no início da pandemia, quando tive dor de cabeça e moleza no corpo durante o primeiro período de isolamento. Na minha cabeça, só pessoas com idade mais avançada ou com comorbidades podiam ser acometidas de forma mais grave pela doença. Os casos de atletas assintomáticos também me deixavam confiante.

Aí um dia eu acordei muito cansado. Comecei a ter dificuldade de respirar, o que, até então, não era um problema. Quando puxava um pouquinho mais o ar, vinha aquela tosse que chega a machucar, sabe? Parecia que não estava jogando ar no pulmão, que ele estava só na minha boca. Naquele dia, tinha vontade de ficar na cama. Os médicos desconfiaram e decidiram fazer uma tomografia do tórax. Foi quando soube que o comprometimento dos meus pulmões tinha passado de 70%.

O lado esquerdo do pulmão estava todo tomado, assim como o lado direito. A parte de cima e a de baixo também. Só o meio que ainda não tinha sido atingido. "Mesmo o seu teste PCR tendo dado negativo, esse quadro é muito característico de covid-19", os médicos me explicaram. Fui levado direto para a UTI. O pior de tudo: minha família não podia estar presente. Foi assustador.

Pela velocidade com que as coisas estavam acontecendo, eu morri de medo. Será que o antibiótico iria agir a tempo e impedir o comprometimento pulmonar de continuar crescendo? Tinha medo de chegar ao ponto de ser intubado, de apagar. Já pensou voltar e alguém falar que você ficou semanas intubado? Nessa hora, você se lembra da história de pessoas com covid-19 que pioraram rapidamente e morreram. Em uma UTI, sozinho e em uma situação de risco, você começa a pensar só em coisa ruim, infelizmente. Foi o momento mais difícil para mim.

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O contágio

Sou campeão olímpico de vôlei de praia, estava na reta final de preparação para os Jogos de Tóquio. Não podia imaginar que a minha saúde se tornaria motivo de preocupação. Apesar da confiança, respeitava as restrições. Eu estava de máscara o tempo todo e evitava aglomerações. Sou um cara muito caseiro, não era difícil para mim. Mas o voleibol voltou à normalidade. Moro no Espírito Santo, treino e jogo no Rio de Janeiro, pego avião quase duas vezes por semana. Fui mantendo minha rotina, sempre acompanhado da minha esposa, a Lais.

Um dia, a gente apresentou coriza quase ao mesmo tempo. Mas acordamos bem na manhã seguinte e continuamos nossa vida, até que ela relatou: "Bruno, não estou sentindo cheiro, nem gosto da comida". Eu me assustei. Fomos juntos fazer o PCR, o dela deu positivo, o meu, negativo. Desconfiei. "Não é possível. Eu estou com a Lais o tempo todo. Já peguei isso aí." Refiz o teste no dia seguinte e deu novamente negativo.

O que um atleta que está em ritmo de competição faz quando dois testes dão resultados negativos? Continua a rotina. Na segunda-feira, fui sozinho para o Rio. Para entrar no centro de treinamento em Saquarema, fiz mais um PCR. Negativo. Aí minha confiança aumentou, segui o barco. Treinei bem até quarta-feira.

Na quinta à noite, tive aquela sensação de que a gripe estava chegando, fui me sentindo meio mole. Na sexta, tinha academia e treino com bola na parte da manhã e seguiria para o aeroporto para voltar para Vitória. Também acordei mole, mas consegui treinar. Quando acabou, fiquei derrubado. Sabe aquela sensação de "se pudesse ficar deitado na cama agora, eu ficaria"? Assim que cheguei em casa, a febre me atacou. No outro dia, fiz mais um PCR. Adivinha? Negativo. Quatro resultados negativos em menos de uma semana. "Deve ser alguma virose", pensei. A febre de 38°C, 39°C não baixava, mesmo tomando antitérmico. Ficamos preocupados.

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Na UTI

Na segunda-feira, minha esposa praticamente me arrastou para o hospital. Fiz exame de sangue, tudo normal. E eu ainda com febre. Fiz uma tomografia de tórax, mas, como estava muito cansado, fui para casa enquanto não saía o resultado. Pensava que o médico ia me receitar algum remédio e pronto. A Lais ficou aguardando no hospital. O clínico geral, então, avisou: "abri internação para seu marido". Isso porque eu já estava com 25% de comprometimento pulmonar.

Ela chegou em casa, onde também estavam meus pais, e me deu a notícia. Eu queria saber se estava liberado para treinar ou não, e aí descobri que seria internado. Todo mundo se assustou. Naquele momento, pensamos que eu estava com pneumonia. Achei que seria internado em um quarto normal, mas, pelos protocolos do hospital, me colocaram em uma ala exclusiva para covid. Tive de ficar sozinho. Foi um momento muito difícil.

Eu também fiquei apreensivo por estar com a imunidade baixa, debilitado com "pneumonia" e entrar em uma ala Covid. Não foi agradável. Quando a febre baixou, foi preciso trocar quatro vezes de roupa de cama. Eu nunca transpirei tanto, um negócio assustador. Dois dias depois, eu já apresentava melhoras. Como meus exames PCR deram negativos e eu vinha me recuperando rápido, o médico descartou a hipótese de covid. Assim, fui transferido para uma ala normal.

No terceiro dia de internação, eu já me sentia muito bem. Estava até brincando com a minha esposa sobre quando eu ia sair do hospital. O assunto era: "quando vou receber alta?" Queria saber se seria em um ou dois dias, se poderia fazer o resto do trabalho em casa. Foi só eu falar isso que piorei muito e fui parar na UTI. Era o quarto dia de internação. Além disso, não havia mais dúvida de que era covid-19.

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"Deu merda"

Foi o momento mais difícil para mim. Você está bem e, do nada, a doença começa a agravar, você só pensa merda. Morri de medo nessa hora. Foi o maior susto. Não à toa, comentei no dia seguinte: "Doutor, estou quase tendo um piripaque aqui. Eu gostaria que você flexibilizasse a vinda da minha esposa, ela já pegou covid". Eles acabaram entendendo a minha situação e liberaram. O tempo de visita foi aumentando com o passar dos dias.

Foi uma situação que mexeu com a família toda. Minha mãe não aguentou, bateu o pé no hospital e acompanhou de perto minha internação. Meu pai também apareceu, mas conversava comigo pelo vidro da UTI, às vezes escrevia alguma coisa. Ele queria mais falar com o médico sobre meu quadro clínico.

Da mesma maneira que eu fui para o buraco, também subi rápido. Foi quase um "V". Conto isso com muito orgulho. O que me motivava? Ter uma vida ainda pela frente, realizar as minhas vontades e da minha esposa. A gente quer ter filho, sabe? Eu acreditava que não era a minha hora. Não é soberba, mas fui gerando autoconfiança no decorrer da internação. "Esse vírus não é mais forte do que eu. Na hora em que os remédios começarem a agir, vou acabar com esse vírus". Bateu um pouco da mentalidade de atleta de querer vencer.

Deixei a UTI depois de cinco dias. Fui desmamando do cateter de oxigênio, colocava um pouquinho no nariz, depois tirava e logo não precisei mais. Já o suporte de ventilação não-invasiva ficou comigo até o último dia de internação. Foram tantos exames, até hoje tenho pesadelos com o de gasometria, que serve para medir a oxigenação pelo sangue arterial. Dá para ter ideia de como é dolorido, né? Nunca imaginei que fosse ficar nessa situação tão novo. Eu tenho 34 anos.

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O primeiro campeão olímpico a cair

Quando me deixaram ter acesso ao celular, eu me dei conta do impacto de ser o primeiro campeão olímpico brasileiro a correr risco de morte. "Por que eu, né?" Aquele negócio que a gente pensa. Recebi muitas mensagens de carinho. Sou um cara muito reservado, mas acabei utilizando bastante as redes sociais nesse período.

Passei grande parte do tempo deitado, perdi muita musculatura. Imagine passar quase duas semanas adoentado em cima de uma cama? Você vira uma uva passa. Durante a fisioterapia, eu sempre dizia que aguentava mais. Queria mostrar minha vontade de sair dali o quanto antes. "A gente quer que você não volte mais para cá, então, vamos estender o antibiótico de sete para dez dias." Foi preciso ter paciência.

As imagens dos pulmões foram ficando boas, eu me sentia cada vez melhor. Dois dias antes de ter alta hospitalar, os médicos me disseram que iam antecipar todos os exames e acelerar as medicações para eu almoçar em casa no domingo. Esse era o plano e, de fato, aconteceu.

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Na saída do hospital, dia 28 de fevereiro, minha mãe fez uma festa ainda na rua, com camisa e cartaz: "Eu venci a covid-19". Foi reconfortante saber que todo mundo vibrou junto com essa vitória. Eu não lembro o menu daquele almoço, mas foi o mais gostoso do mundo, comi muito. Almoçar de novo com toda a sua família na mesa, não tem medalha olímpica que supere isso.

Depois de passar 13 dias hospitalizado, meu condicionamento e meu porte de atleta têm feito muita diferença. No segundo dia do programa de reabilitação pulmonar, já achei aquilo muito banal. Quando fui liberado para andar na areia, também achei muito fácil e resolvi alternar trote e caminhada. Fui aumentando a corrida gradativamente.

O que sinto até hoje é a perda muscular. A panturrilha fica dolorida em contato com a areia, ainda sinto dores quando faço academia. Já fiz todos os exames - ecocardiograma, teste de esforço, ressonância - e estou liberado para treinar. Miocardite e cicatrizes no coração estão descartadas. Acabei de retomar meu contato com bola na areia. E o que aconteceu? Quarentena no Espírito Santo.

"Esses Jogos Olímpicos não deviam acontecer"

Um mês depois de sair do hospital, ainda não fiz um treino completo. Sinto que já tenho condições de voltar, mas o momento não é propício. Olha a situação em que vivemos: o país batendo recorde de mortos diariamente, as pessoas perdendo familiares e amigos muito próximos. Uma competição olímpica não está acima disso.

O mundo está caindo, mas a Olimpíada de Tóquio está confirmada. Na hora em que o juiz apitar, vou jogar meu voleibol com o maior empenho possível e quero ganhar. Mas é impossível eu comparar o meu momento atual com o do último ciclo olímpico. Em 2016, eu seguia o calendário de treinos, tive uma preparação contínua até a conquista da medalha de ouro nos Jogos do Rio.

Agora, estou sem treinar direito, perdendo um monte de competições de vôlei. Mas acho que esse é o papel que tenho de cumprir. O que os atletas devem fazer nessa hora? Devemos respeitar a quarentena ou arrumar um jeitinho brasileiro para manter a preparação? É até desrespeitoso. Falo e repito: esses Jogos Olímpicos, para mim, não deviam acontecer.

Os outros atletas podem me achar maluco ou, então, dizer: "Esse cara pirou de vez". Mas não, muito pelo contrário. A Olimpíada é o que me fez querer ser atleta e que me faz querer ser melhor o tempo todo para representar meu país. Eu sou tão apaixonado pelos Jogos Olímpicos que fico triste com tudo isso.

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A primeira edição teve o campeão olímpico do salto com vara de 2016 Thiago Braz, que fez um relato sincero sobre relacionamentos, como o que está reconstruindo com seus pais, e amizades, como as com o saltador Augusto Dutra, o treinador Elson Miranda e o fisioterapeuta Damiano Viscusi, que morreu em 2017.

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