Fonte seca

Brasileiros sofrem calote na China, e futebol milionário amarga crise em meio a desaceleração econômica local

Adriano Wilkson e Igor Siqueira Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro VCG via Getty Images

O zagueiro Paulão fechou a cara e balançou a cabeça quando soube que o Grêmio estava interessado em vendê-lo para a China. Era março de 2011, e o time gaúcho se preparava para disputar a Libertadores, depois de uma boa campanha no Brasileiro do ano anterior. Aos 24 anos, o atleta não tinha ideia do que ia encontrar na Ásia, mas suspeitava que a transferência seria um passo atrás na carreira.

Conversou com o técnico Renato Gaúcho, pediu para jogar pelo menos uma partida da Libertadores, mas foi convencido a aceitar a transferência, que renderia mais de R$ 2 milhões aos gaúchos. Ao chegar ao Guangzhou, Paulão encontrou a estrutura simples de um novato na primeira divisão chinesa. Mas, em três meses, tudo mudou. Graças ao dinheiro da Evergrande, a segunda maior empreiteira da China, o time entrou no clube dos novos-ricos.

"Você não tem noção do que era o novo centro de treinamento", lembra Paulão, uma década depois. "Era mármore por todo lado, tudo banhado a ouro, uma loucura. Quatro ou cinco campos, todos com grama bem aparada, jardim bem cuidado. Quatro banheiras de hidro, lustres enormes banhados a ouro."

Mas, após anos de ostentação, a bolha do futebol chinês aparentemente estourou.

Um símbolo disso é o destino do Jiangsu, atual campeão chinês que fechou as portas após a gigante do comércio eletrônico Suning cortar o patrocínio. O zagueiro Miranda e o atacante Eder, que defenderam a equipe e que aparecem na foto de abertura dessa reportagem deixando a China no fim de 2020, dizem não ter recebido um centavo no tempo que passaram lá. Jogadores do São Paulo desde março de 2021, os dois tentam processar o clube asiático na Justiça e na Fifa.

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A opulência dos primeiros anos do boom do futebol chinês contrasta com as vacas magras dos últimos meses, marcados por crises e incertezas. Há duas semanas, as bolsas do mundo todo foram atingidas pelo iminente calote de até R$ 1,6 trilhão que a Evergrande deve dar em seus credores. Nos bastidores do Guangzhou, já se comenta que o clube pode fechar ao final da temporada.

A economia chinesa está em franca desaceleração e, com ela, o investimento no futebol minguou. Clubes e jogadores que antes viam no mercado chinês uma oportunidade de bons negócios, agora vivem dor de cabeça e incerteza.

O UOL Esporte conversou com atletas, economistas, empresários e agentes de mercado para entender como a crise no futebol chinês pode afetar o Brasil.

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Salários altos, prêmios e condomínios de luxo

Paulão, hoje no Cuiabá, integrou uma legião de estrangeiros contratados por times da China por altas cifras, vindos principalmente de América do Sul e África. Em 2011, o Guangzhou ganhou manchetes na imprensa ao contratar Dario Conca e oferecer ao argentino o que se noticiou ser o terceiro maior salário do mundo.

Foi aí que começou uma disputa entre os bilionários chineses pelo topo do ranking de contratação mais vultuosa. No ano seguinte, o Shanghai Shenhua contratou o marfinense Didier Drogba, após 8 anos de Chelsea. O Guangzhou tentou responder, fazendo ofertas pelo brasileiro Kaká, mas o negócio não vingou. Acabou contratando o técnico Marcelo Lippi, campeão mundial com a Itália em 2006, e depois outro vencedor de Copa, Luiz Felipe Scolari. Em seguida, foi buscar para o cargo Fabio Cannavaro, ex-melhor do mundo da Fifa.

Mais recentemente, o Guangzhou decidiu também investir num robusto projeto de categorias de base, chefiado pelo brasileiro Guilherme Dalla Dea, campeão mundial Sub-17 em 2019. O treinador levou para China uma série de funcionários de confiança.

Para convencer os estrangeiros a se aventurarem em um mercado emergente, os chineses abriam a carteira. Além de salários acima do padrão médio europeu e sul-americano, ofereciam bônus, premiações por desempenho e benefícios. No caso do Guangzhou, os jogadores tinham a opção de morar em condomínios de luxo da própria Evergrande.

Eles pagavam tudo que você possa imaginar. Premiações altas, acertos individuais... Valia muito a pena. E, como você tinha até dois jogos por semana, dava pra viver só com a premiação e guardar todo o salário. Algumas vezes eles pagavam em dinheiro vivo.

Paulão, zagueiro do Cuiabá, com passagem pelo Guangzhou na China

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Os brasileiros com problemas na China

O El Dorado chinês, que enriqueceu muita gente, entrou em colapso. E não se restringe à perda de poderio econômico de apenas um conglomerado empresarial. Jogadores brasileiros que passaram pelo país nos últimos anos tiveram que recorrer à Justiça, inclusive nas esferas da Fifa, em busca de dinheiro que não receberam.

O fim do Jiangsu Suning, por exemplo, não veio com todas as contas quitadas. O zagueiro Miranda e o atacante Eder, ambos no São Paulo atualmente, ainda não receberam os valores devidos. O defensor é um dos que entraram com processo.

A situação se torna ainda mais complexa porque o Jiangsu encerrou as atividades. Assim, não há como a Fifa aplicar sanções como proibição de registro de jogadores ou perda de pontos. O que dá para fazer, nesse âmbito, é monitorar se há um clube sucessor. Outra via é a Justiça comum. O Suning é um grupo cujo dono também tem a Inter de Milão.

O meia Renato Augusto, do Corinthians, é outro que acionou a Fifa cobrando o Beijing Guoan. O contrato foi rescindido no meio do ano e ele ainda tinha seis meses pela frente para receber. O mesmo clube é alvo da ação do volante Fernando, cujo vínculo também foi interrompido neste ano.

As ações que estão em tramitação na Fifa ainda correm em sigilo, assim como os valores envolvidos.

Reprodução

Há diferentes estágios na busca dos brasileiros pelos seus direitos no âmbito judicial.

O atacante Tiquinho Soares, que tem passagem pelo Porto, foi para o litígio com o Tianjin Teda porque não recebeu salários desde que chegou ao clube, em outubro de 2020. O contrato iria expirar em 2023, mas o atacante conseguiu, em março deste ano, a liberdade para trocar de clube, após aval da Fifa. Hoje, ele defende o Olympiakos, da Grécia.

O Chongqing Dangdai é outro clube que deixou jogador brasileiro na mão. O atacante Marcelo Cirino, hoje no Bahia, conseguiu a rescisão na Fifa de um contrato que iria até dezembro de 2023. Ele chegou ao clube chinês em janeiro de 2020.

Em abril de 2021, só cinco meses de salários tinham sido pagos. Cirino e o clube chegaram a fazer um acordo, no qual ele concordava com um parcelamento dos valores devidos pelo Chongqing Dangdai, o que acabou não sendo cumprido. A sentença prevê que o clube pague os valores inteiros do contrato.

Kevin Frayer/Getty Images Kevin Frayer/Getty Images

Da propaganda chamativa a propostas cada vez menores

REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

O poder da Evergrande

Advogado acostumado a assessorar negociações no mercado internacional, Marcos Motta chegou a Guangzhou para uma reunião com dirigentes para discutir termos da compra do meia Conca, em 2011. Após a assinatura dos contratos que tirou o meia do Fluminense, Motta recebeu do diretor do clube um livro relacionado ao Evergrande. "Fui folhear o presente, imaginando as casas projetadas para a classe mais abastada chinesa, quando na verdade a publicação trazia cidades inteiras construídas pela companhia." Era um exemplo da suntuosidade da empresa que agora é mais uma imersa na crise.

Cesar Greco/Ag Palmeiras/Divulgação

Há 2 anos em regressão

O advogado André Sica auxilia clubes em negociações e contratos. Ele viveu de perto a fase nababesca do mercado chinês, de onde vinham propostas irrecusáveis, e depois disso a época de vacas magras. "Era um mercado muito comprador, que fazia transações vultuosas, mas ele claramente regrediu. A última grande oferta que eu tive de lá foi o Deyverson e o Bruno Henrique, e isso faz dois anos. De lá pra cá, a regressão é muito clara", afirma. A desaceleração da economia chinesa se refletiu na diminuição de apetite dos clubes de lá, que passaram a se mostrar menos agressivos no mercado.

Quando tinha que ir lá para rescindir algum contrato, a reunião nem durava muito. Eles simplesmente pagavam (...) As coisas começaram a mudar. O governo começou a sair do negócio e mudou algumas questões.

Marcos Motta, advogado especialista em negociações internacionais no futebol

As ofertas começaram a vir cada vez menores. Quando você abraçava uma oferta, ela tinha maior dificuldade de ser concluída. E os chineses começaram a perder pra concorrência. Já tive atleta disputado por clube da China que acabou indo pra Tailândia.

André Sica, especialista em direito desportivo do CSMV Advogados

Julien Behal/PA Images via Getty Images

Xi Jinping quis diplomacia do futebol, mas Estado passou a regular clubes

Xi Jinping, que controla o Partido Comunista Chinês e, consequentemente o país, se diz um fã de futebol e já se deixou fotografar batendo bola. No começo da década passada, o líder político elaborou um plano para aumentar a influência chinesa pelo mundo através do esporte. Em reuniões com líderes europeus, o futebol passou a ser um assunto constante.

Grandes conglomerados chineses descobriram uma forma de estreitar os laços com figurões do partido comunista, o que poderia também abrir oportunidades para seus outros negócios. Empresas chinesas compraram clubes locais e participação de europeus, a exemplo do que fizeram Estados árabes. Mas logo os comunistas dariam uma guinada na estratégia.

"Em 2016, a China sofreu um ataque especulativo contra o yuan e perdeu um trilhão de dólares em reservas", explica Rodrigo Zeidan, professor de finanças e economia da New York University de Shangai. "Até 2016 era um oba-oba, todo mundo podia comprar à vontade [do exterior]. Desde então a política é de apertar o controle de capitais."

Nos anos seguintes, a festa da importação de jogadores começou a dar sinais de que terminaria. Em 2018, o governo passou a cobrar imposto de 100% sobre contratações, e Xi Jinping quis dar um basta em "investimentos irracionais". A principal liga local criou limitações na participação de estrangeiros. Os clubes ficaram proibidos de ter o nome das empresas que os administram - o Guangzhou Evergrande passou a se chamar apenas Guangzhou.

Essas medidas, aliadas à desaceleração da economia, levaram a uma quebradeira nas ligas locais. Nos últimos dois anos, cerca de 20 clubes deixaram de ter times profissionais graças às novas regras. O Jiangsu Suning, atual campeão nacional, fechou as portas. No Guangzhou, jogadores e comissão técnica temem que aconteça o mesmo.

O investimento no futebol é o que chamamos de investimento de vaidade. Quando a economia cresce 6% ao ano, você tem tanto dinheiro que não sabe onde colocar. Aí compra um time de futebol. Se isso ajudar a se aproximar do Xi Jinping, melhor ainda. Mas se sua empresa para de crescer e você tem que cortar gastos pra pagar dívidas, a primeira coisa que faz é parar com o futebol.

Rodrigo Zeidan, professor de finanças e economia da New York University de Shangai

Brasileiros que ainda estão na China

  • Elkeson

    Ex-Botafogo, o atacante de 32 anos se naturalizou chinês, defende a seleção local e mudou até de nome: virou Ai Kesen. É destaque no Guangzhou e lidera a artilharia da Super Liga, com 11 gols. Esta é sua segunda passagem no time, onde chegou pela primeira vez em 2013. Entre 2016 e 2019, jogou pelo Shanghai SIPG (atual Shanghai Port).

    Imagem: Reprodução/Guangzhou
  • Ricardo Goulart

    Bicampeão brasileiro pelo Cruzeiro (2013 e 2014), o atacante chegou ao Guangzhou Evergrande no começo de 2015. Desde então, foi emprestado duas vezes (uma vez ao Palmeiras em 2019 e outra para o Hebei, em 2020). Mais um naturalizado chinês, soma sete gols na Super Liga atual.

    Imagem: GettyImages
  • Alan Kardec

    Atacante revelado pelo Vasco e que passou por Santos, Palmeiras e São Paulo, ele hoje defende o Shenzhen, após jogar entre 2016 e abril de 2021 no Chongqing Lifan. A mudança de clube foi pelos atrasos salariais. Na temporada atual, tem sete gols.

    Imagem: Divulgação
  • Henrique Dourado

    O Ceifador chegou ao Henan no começo de 2019 e fraturou a perna assim que começou a jogar. Foi emprestado ao Palmeiras no segundo semestre daquele ano, mas não rendeu. Na temporada atual, o atacante tem cinco gols na liga chinesa.

    Imagem: Reprodução/Instagram
  • Oscar

    Comprado do Chelsea em janeiro de 2017 por 60 milhões de euros, o meia é até hoje a transferência mais cara do mercado chinês. Aos 30 anos, é o principal jogador e capitão do Shanghai Port. Tem nove assistências na liga e três gols marcados.

    Imagem: AFP PHOTO / Johannes EISELE
  • Alan

    O atacante de 32 anos é mais um que se naturalizou chinês e defende o Guangzhou Evergrande, onde chegou em 2015. Desde então, já foi emprestado ao Tianjin (2019) e Beijing Guoan (2020). Tem três gols na temporada.

    Imagem: Reprodução/Guangzhou
  • Aloisio

    O Boi Bandido está com 33 anos e, com a cidadania chinesa, adotou o nome Luo Guofu. Está no país desde 2014. Não é titular, mas entra sempre durante os jogos do Guangzhou Evergrande. Fez três gols na temporada 2021.

    Imagem: Divulgação Instagram
  • Erik

    Está no seu primeiro ano de China, já que foi vendido pelo Palmeiras ao Changchun Yatai em janeiro passado. O contrato do atacante vai até o fim de 2023. Em 14 jogos por enquanto, soma quatro gols.

    Imagem: Reprodução

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