Máquina de moer técnicos

Elite do futebol brasileiro troca de técnico a cada seis meses. Para estrangeiros, instabilidade é ainda maior

Julio Gomes* Colunista do UOL Pedro H. Tesch/AGIF

O futebol brasileiro perdeu nesta segunda-feira (9) dois dos seis técnicos estrangeiros que trabalhavam na série A do Brasileiro. O espanhol Domenéc Torrent foi demitido do Flamengo após goleadas para o São Paulo (4 a 1), na semana passada, e para o Atlético-MG (4 a 0), neste fim de semana. Eduardo Coudet foi outro a dar adeus ao Brasil. O argentino deixa o Internacional, equipe líder do Brasileirão, para o assumir o Celta, 17º colocado no Campeonato Espanhol —e para ganhar menos do que no clube gaúcho.

Dos estrangeiros, sobraram Jorge Sampaoli, treinador do Atlético-MG, os portugueses Ricardo Sá Pinto, do Vasco, e Abel Ferreira, que acabou de assumir o Palmeiras, e Ramon Diaz, que ainda nem mesmo estreou pelo Botafogo. Até quando o grupo continuará com quatro membros é uma pergunta sem resposta. Mas, se depender do histórico, esse quarteto não vai durar muito.

Na máquina de moer treinadores do futebol brasileiro, os profissionais empregados atualmente na função em clubes da Série A estão, em média, há 5,2 meses no cargo, como mostra levantamento do colunista do UOL Esporte Rafael Reis. É menos do que a média histórica do futebol brasileiro na era dos pontos corridos: desde 2003, os técnicos nacionais têm vida útil de 6,1 meses para trabalhar. E, entre os estrangeiros, a média de permanência nos clubes é ainda menor: 4,9 meses.

Nem mesmo entre os times brasileiros de melhor rendimento a história muda. Entre os clubes que disputam (ou disputaram) a Libertadores de 2020 —e, portanto, vêm de temporadas em alta—, a permanência média é de 8,65 meses. Só que esse número é inflado por Renato Gaúcho, há 4 anos, um mês e 23 dias no comando do Grêmio. Sem ele, a média dos atuais técnicos de Athletico, Flamengo, Internacional, Palmeiras e Santos, incluindo os já eliminados São Paulo e Corinthians, é de apenas 2,68 meses.

Números como esses indicam que o trabalho dos treinadores, no Brasil, é efêmero. E explicam por que Coudet e Dome, duas semanas depois de protagonizarem o "melhor jogo do Brasileirão" (Inter 2 x 2 Flamengo), os dois já não trabalham no futebol brasileiro.

Pedro H. Tesch/AGIF

Projeto de três meses

O projeto Domenéc Torrent durou três meses. Isso aí! Três meses. Não chegou nem a 100 míseros dias. O técnico catalão foi demitido na segunda-feira (9). É possível desenvolver um projeto em três meses? É claro que não. É possível pegar um projeto em andamento e dar continuidade? É claro que sim. Alguém dirá que Dome deveria ter ido pelo segundo caminho. Mas ele caiu como um patinho no fácil e sonoro discurso do "projeto".

Dome não era o plano A do Flamengo. Auxiliar de Pep Guardiola durante anos, o catalão tinha a seu favor o prestígio de ter trabalhado com o técnico do Manchester City, mas não tinha muita experiência como treinador principal. Depois de errar feio com Abel Braga e acertar em cheio com Jorge Jesus, talvez a diretoria do clube tenha achado que o sucesso de 2019 tinha mais a ver com ela do que com os verdadeiros protagonistas e foi em busca de um treinador fazendo entrevistas e tudo mais, em plena pandemia.

Vejam, não estou criticando. Acho que a escolha de um treinador teria mesmo que ser feita a dedo — isso se os projetos fossem sólidos e, os tempos, respeitados. Como não há nada disso no Brasil ou no Flamengo, o que foi feito em julho parece um tanto quanto patético. Apenas visitaram a Europa em plena pandemia e gastaram bons euros do clube.

O Flamengo queria Carlos Carvalhal, que preferiu fechar com o Braga (aliás, no domingo o Braga ganhou do Benfica, de Jorge Jesus). Recebeu um "não". Foi falado no nome de Marco Silva, mas também não deu certo. Tudo isso, claro, depois de Jorge Jesus preferir voltar a Portugal, mesmo que para um mercado secundário da elite.

Marcello Zambrana/AGIF

Os 'nãos' do Palmeiras

O Palmeiras também levou "nãos" recentemente. Do espanhol Miguel Ángel Ramírez, que faz sucesso no pequenino equatoriano Independiente del Valle. Ramírez chegou a acertar detalhes burocráticos com o Verdão, mas não queria deixar a equipe antes do fim da Libertadores. A diretoria do Palmeiras não quis esperar e encerrou as negociações.

Já o argentino Ariel Holan, hoje da Universidad Católica chilena, decidiu ficar onde está para tentar o título da Sul-Americana. O Palmeiras ainda tentou tirar o também argentino Sebastian Beccacece do Racing. Mas o clube não aceitou liberá-lo.

O Palmeiras não conseguiu escolher um técnico estrangeiro. Ele foi, na verdade, escolhido pelo português Abel Ferreira, que ganhou o emprego graças a um bom trabalho de empresários. O português estreou no Brasileiro no último domingo (8) com uma vitória de 1 a 0 sobre o Vasco, dirigido pelo compatriota Ricardo Sá Pinto. Na quinta-feira (5), já havia liderado o time na vitória também pelo placar mínimo contra o Red Bull Bragantino e garantido a vaga nas quartas de final da Copa do Brasil.

Bruno Ulivieri/AGIF

Moedor de carne brasileiro

Um dia, os clubes brasileiros seriam penalizados pela maneira amadora, desrespeitosa e chucra como trataram treinadores ao longo das décadas. Agora que os mais poderosos querem buscar o bom futebol, que eles mesmos desprezaram nos últimos 30 anos, estão pagando o preço.

Treinadores empregados em outros clubes, mesmo que menos poderosos e competitivos, mesmo ganhando menos, preferem ficar onde estão do que serem queimados no mercado de moer carne brasileiro. Para torcedores e dirigentes, ganhar é o único que importa. Mas, para muitos profissionais, o que importa é poder trabalhar. Todos querem ganhar, mas este não pode ser o único combustível para a sobrevivência.

Porque todos eles sabem, e todos nós deveríamos ter aprendido, que ganhar é um troço difícil para caramba. Na maior parte das vezes, campeonatos são perdidos. Às vezes, bem às vezes, ganhos.

Thiago Ribeiro/AGIF

Estrangeiro fica em média 4,9 meses no Brasil

Neste ano, o Campeonato Brasileiro teve recorde de treinadores estrangeiros: eram seis antes das saídas de Coudet e Domènec Torrent. Desde 2003, quando o campeonato passou a ser disputado por pontos corridos, tivemos ao todo 29 treinadores estrangeiros dirigindo times das Série A. A média de permanência deles no cargo é de apenas 4,9 meses. Número inferior ao dos técnicos brasileiros, que ficam 6,1 meses em média no cargo.

Em 2020, além de Dome e Coudet, outro gringo que teve uma breve passagem por aqui foi o português Jesualdo Ferreira, no Santos.

Nos últimos 17 anos, o técnico estrangeiro que ficou mais tempo no Brasil foi Jorge Jesus. O português ficou 13 meses à frente do Flamengo antes de rescindir o seu contrato e voltar para o Benfica-POR. Em pouco mais de um ano, Jesus ganhou o Brasileirão e a Libertadores em 2019, e a Supercopa do Brasil, a Recopa Sul-Americana e o Carioca de 2020, sendo o estrangeiro com mais títulos nesse período no país.

O uruguaio Diego Aguirre, que treinou Internacional, Atlético-MG e São Paulo, foi o técnico gringo que dirigiu os times daqui por mais jogos (120), seguido agora por Jorge Sampaoli (88), Jorge Jesus (58), Roberto Rojas (50), Eduardo Bauza (48) e Eduardo Coudet (46). Campeão gaúcho em 2015, ele foi um dos poucos a ganhar também título por aqui — Sampaoli foi o outro ao vencer o Mineiro de 2020.

Thiago Ribeiro/AGIF

Por que Coudet deixou o líder do Brasileiro por uma equipe menor?

E aí chegamos a Eduardo Coudet, que abandona o Internacional para treinar o Celta de Vigo. Muitos estão espantados. Como assim?! Trocar um gigante na liderança do Brasileiro para assumir o 17o colocado da Espanha!? Talvez Coudet tenha notado que, aqui, promessas não são cumpridas. Que a consistência não resiste a algumas derrotas. Que ganhar ou perder um clássico regional tem muito mais peso do que trabalhar direito 24 horas por dia, 7 dias por semana. Que a bagunça, no fim, manda.

Coudet deixa a casa arrumadinha para o próximo treinador do Inter, Abel Braga. A equipe é líder do Brasileiro, com 36 pontos, está nas quartas-de-final da Copa do Brasil e nas oitavas da Libertadores.

O colombiano Juan Carlos Osorio e argentino Edgardo Bauza já tinham pulado fora do São Paulo sem duvidar. Contratado em maio de 2015, Osório ficou no Tricolor por apenas cinco meses e pediu demissão para assumir a seleção mexicana. Já Bauza comandou o time do Morumbi por sete meses e saiu em agosto de 2016 após receber um convite para treinar a seleção argentina. O fato de o São Paulo em curto espaço de tempo ter ido de Osório a Bauza, treinadores de estilos completamente opostos, já foi um dos tantos sinais do óbvio: dirigentes entendem bem pouco de futebol. Agora o Inter repete o feito ao partir de Coudet a Abelão.

Sim, podemos criticar Osório, Bauza e, agora, Eduardo Coudet. Não é legal. Detonamos os clubes que não respeitam contratos, não dá para elogiar os técnicos que fazem o mesmo. Mas esses caras têm a perfeita noção que, num dia, podem tomar uma decisão em nome da ética e do compromisso assumido com os clubes. No outro dia, serão atirados aos leões e logo descartados no lixo. Eles sabem como a banda toca no Brasil, não dá para confiar em dirigente algum.

Vinnicius Silva/Cruzeiro

A experiência de Ceni no Cruzeiro

Rogério Ceni, com esta mesma lógica, sabedor de como as coisas funcionam, resolveu dar o "salto" do Fortaleza para o Cruzeiro em agosto do ano passado. Só que foi um salto do abismo, ele não sabia o que iria encontrar.

Ficou exatos 46 dias no cargo, comandou a equipe em apenas oito jogos - duas vitórias, dois empates e quatro derrotas. Chegou elogiado pelos jogadores, mas perdeu o grupo e, diante da falta de resultados, a permanência se tornou insustentável.

Não foi uma decisão da qual ele se arrependeu por causa da ética e, sim, por causa do buraco em que se meteu. OK, o Fortaleza abriu as portas novamente, mas este é um caminho de duas mãos. Foi bom para Ceni e foi bom também para o clube, que nunca teve tanta exposição nacional.

Alexandre Vidal / Flamengo

Ceni no Flamengo é uma aposta menos arriscada

E o Flamengo foi rápido e acertou com Rogério Ceni nesta terça-feira (10). Há quem considere a escolha do Flamengo por Rogério Ceni um risco tão grande quanto foi a contratação de Torrent. Um treinador ainda jovem, sem tanta experiência, que nunca passou por um desafio desses. Uma aposta. Eu não estou nesse time.

Primeiro, qualquer contratação de técnico é uma aposta. É confiar em um determinado jeito de jogar ou de trabalhar para alcançar objetivos esportivos. Nunca há garantias. Pode dar certo, pode dar errado. Apostas bem feitas são aquelas em que o risco de dar errado é facilmente compensado pelo risco de dar certo. A aposta em Dome era simplesmente arriscada demais. O Flamengo precisava apenas dar continuidade ao que fazia Jesus, não precisava "viajar na maionese" desse jeito.

E por que Ceni representa menos risco do que Dome? Oras. Rogério conhece, sim, a pressão que clubes grandes vivem no Brasil. O cara passou duas décadas sendo o goleiro de um dos gigantes do futebol brasileiro. Disputou Copa do Mundo. Viveu de perto apuros, alegrias e decisões de diversos treinadores. A carreira dele como técnico, apesar de curta, já tem passagens pelo São Paulo e pelo Cruzeiro. E o Fortaleza, apesar de ter menos representatividade nacional, é, sim, um clube de massa. Rogério já disputou finais, já acertou, já errou, já ganhou, já perdeu. Esses poucos anos de carreira já são muito mais do que Domenec havia feito na carreira.

Dizer que o Flamengo é grande demais para Ceni me parece uma loucura. Se tem um cara preparado no Brasil para um desafio desses, esse cara chama-se Rogério Ceni. O ex-goleiro sabe que, no Brasil, a oportunidade de pegar um elenco como o do Flamengo é praticamente única. Burro, ele nunca foi. Pelo contrário. É um cara que vai saber retomar o trabalho de Jorge Jesus e que terá ascendência sobre os jogadores. Com Dome, Ceni ou com qualquer outro técnico, o Flamengo sempre precisa ser considerado o grande favorito ao título do Brasileiro. Possivelmente, essa caminhada será retomada com força a partir de agora e com mais chances de dar certo. No mata-mata, é outra história.

Alexandre Vidal / Flamengo

O que devia ter feito Domenéc?

O hoje espinafrado Dome foi contratado para fazer um trabalho autoral e de longo prazo. O que ele devia ter feito?

Traído o próprio acordo e dado continuidade ao que fazia Jesus. Esperasse um pouco para fazer aquilo que ele foi contratado para fazer. Porque na verdade ele não havia sido contratado para fazer aquilo que falaram e, sim, para fazer a coisa mais simples de todas: ganhar jogos. Ele não sabia como a banda tocava. E talvez nem fosse mesmo competente para mudar o próprio destino.

Mas, ao ver o que aconteceu com Domenéc, por que outros técnicos profissionais e que se dão o respeito irão tomar um copão de suco de Brasil?

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