Jogo de poder

Bolsonaro veste a camisa na 'autopromoção' com o futebol; presidente já usou mais de 80 uniformes de clubes

Sergio Pantolfi Colaboração para o UOL, em São Paulo Arte UOL

O uso do futebol como instrumento de populismo político não é novo no Brasil, mas o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) o levou a outra roupagem. Literalmente. Desde a campanha à Presidência da República, Bolsonaro fez aparições públicas com camisas de 81 clubes diferentes.

O levantamento de uniformes de times usados por Bolsonaro foi feito por Victor de Leonardo Figols, doutorando em História na Universidade Federal do Paraná e editor do Ludopédio, site de produção científica sobre futebol. O caso mais emblemático foi quando presidente, que afirma ser torcedor do Palmeiras —ele até levantou a taça no Allianz Parque quando o clube ganhou o Brasileirão de 2018— , vestiu camisa do arquirrival Corinthians presenteada por Marcelinho Carioca.

O motivo para essa "infidelidade clubística", segundo especialistas ouvidos pelo UOL Esporte, é se promover politicamente.

REUTERS/Paulo Whitaker
Divulgação

Da seleção a time amador

Em sua coleção não estão apenas times grandes ou a seleção brasileira e até de outros países —como China, EUA, Japão e Qatar. Dos 81 uniformes que ele usou publicamente, 22 são de times que não estão nas Séries A, B, C ou D do Campeonato Brasileiro de futebol.

Ao começar a catalogar o uso de camisas de clube pelo presidente, o historiador Figols percebeu alguns padrões. O mais visível deles é o de que Bolsonaro usa o futebol para amenizar algumas das polêmicas em se envolve.

"Depois de fazer uma declaração homofóbica sobre os maranhenses, por exemplo, ele aparece em uma live com a camisa do Sampaio Corrêa e em algum momento dessa mesma live ele pergunta 'de quem é a camisa desse time?'. Ou seja, ele não tem noção das camisas que ele está vestindo, ele veste mais por convenção do que qualquer outra coisa'' afirma o historiador.

Outro ponto levantado por Figols é que o uso de uniformes de times menores, fora das principais divisões do futebol brasileiro, aproxima o presidente de grupos nichados que se expandem de maneira nacional. Ao aparecer em uma live com a camisa do Sport Lagoa Seca (um time amador da Paraíba), por exemplo, o presidente passa uma imagem mais ''popular''.

O troca-troca de camisas e as regiões do Brasil

Bolsonaro começou a usar camisas de clubes de estados onde teve o seu melhor desempenho na eleição de 2018, como Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. A partir de 2020, pouco a pouco, ele foi aparecendo com uniformes de clubes nordestinos.

De acordo com o historiador Victor de Leonardo Figols, a inclusão de camisas de times do Nordeste nas aparições do presidente foi algo bem pensado, sobretudo para buscar aproximação com um eleitorado onde Bolsonaro teve menos votos nas eleições de 2018. Na ocasião, o então candidato do PT, Fernando Haddad, foi a escolha de quase 70% dos eleitores nordestinos.

Conquistar o Nordeste é uma estratégia política de aproximar possíveis eleitores ou cativar ainda mais eleitores que votaram nele, já que foi a região onde Bolsonaro teve menos votos nas eleições de 2018".

O antropólogo João Paulo Florenzano, da PUC-SP, explica que o mapeamento do uso das camisas pode indicar a existência de uma estratégia ao mesmo tempo nacional e local. "Vestir esta ou aquela camisa envolve um cálculo político em termos dos dividendos que podem ser extraídos da associação do presidente com determinado clube, seja em termos da busca de popularidade, seja no que diz respeito ao jogo político local, como ajudar o dirigente esportivo, e aliado político, em uma campanha eleitoral, por exemplo".

Foto Reproducao

Sem tempo para rivalidades

Para Figols, a filiação clubística é inalienável para os torcedores. E, ao aparecer vestindo a camisa de vários times, até mesmo rivais estaduais, como Botafogo, Flamengo, Vasco e Fluminense, no Rio de Janeiro, e Palmeiras, Corinthians e Santos, em São Paulo, Bolsonaro pulveriza essa identificação com as instituições e com os aficionados.

A imagem de Bolsonaro com a camisa do Corinthians, por exemplo, ganhou as redes sociais e dividiu a opinião de torcedores. Em nota oficial, o clube informou que não teve qualquer relação com o ocorrido. Outro ex-ídolo da Fiel, o comentarista Casagrande, um dos líderes da Democracia Corintiana nos anos 80, criticou a atitude de Marcelinho em um vídeo nas suas redes sociais.

"Em 1979, a torcida do Corinthians abriu uma faixa no Pacaembu dizendo 'anistia para os presos políticos e exilados políticos'. Em 1982, 1983, até 1985, essa camisa aqui era da democracia corintiana. Essa camisa representa liberdade, representa democracia, e nenhum jogador tem o direito de representar o clube politicamente. Eu também não tenho. Isso aqui é democracia. Isso aqui sempre foi democracia'' disse o ex-jogador.

Lívia Magalhães, professora de história do Brasil da Universidade Federal Fluminense, ressalta que a estratégia do presidente de atrair a atenção dos torcedores ao usar camisas de times de futebol pode surtir um efeito contrário ao esperado. ''O que o presidente atual faz é diferente por ele utilizar um número de uniformes que chama a atenção, inclusive de rivais, e pode levar ao efeito oposto do desejado: ser desacreditado.''

Os dirigentes e a torcida

A maior parte das camisas exibidas por Bolsonaro foi entregue por dirigentes de clubes, não por torcedores. Segundo Victor de Leonardo Figols, a história da cartolagem no Brasil pode ser considerada um paralelo da política nacional, uma vez que os grandes monopólios controlam as diretorias dos clubes e o governo.

''Então do mesmo jeito que não se pode esperar nada de novo de um parlamentar que está há 30 anos no poder, é muito difícil que uma estrutura oligárquica consolidada a mais de um século mude completamente'', diz o historiador.

Existem também casos de camisas presenteadas por políticos locais. Em uma viagem a Salvador em 2019, recebeu uma camisa do Bahia das mãos do vereador soteropolitano Alexandre Aleluia (DEM). O político compartilhou a imagem em que ele aparece ao lado do presidente vestido com a camisa tricolor.

Em maio de 2020, Bolsonaro voltou a usar a camisa do Bahia ao pilotar uma moto aquática Jet-Ski, no lago Paranoá, em Brasília, quando o Brasil batia o número de 10 mil mortos por covid-19. Na ocasião, o presidente do clube, Guilherme Bellintani, criticou o chefe do Executivo.

"Naturalmente, foi ruim ver a camisa do Bahia relacionada ao momento dos 10 mil mortos, mas cada um usa a camisa do Bahia. Não posso condenar o presidente da República de jeito nenhum. Dentro da torcida do Bahia tem pessoas que votam em A, B e C. Não posso ficar aqui condenando pessoas especificamente. Tenho que lutar por causas. E é isso que o Bahia tem feito ", afirmou Bellintani em entrevista a uma rádio local.

Marcos Corrêa/PR

MP 984 e o toma lá, dá cá

Jair Bolsonaro também já vestiu por várias vezes a camisa do Flamengo. A ocasião mais marcante foi a passagem do presidente, ao lado do então ministro da Justiça Sergio Moro, no estádio Mané Garrincha, para assistir à partida entre o rubro-negro e o CSA, em junho de 2019.

De acordo com o antropólogo Florenzano, ''no contexto mais recente, a relação do atual presidente com os dirigentes do Flamengo tem por objetivo atingir a Rede Globo, considerada adversária política.''

Após articulação direta do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, Bolsonaro editou, em 18 de julho deste ano, a Medida Provisória 984/2020, que alterou regras dos direitos de transmissão das partidas de futebol no Brasil. A MP foi um golpe para a Globo, já que concedia apenas ao clube mandante o direito de transmissão sobre um evento esportivo. Entretanto, essa MP perdeu a validade em 16 de outubro, e sua relevância foi contestada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Segundo a professora Lívia Magalhães, o presidente está interessado em se envolver política e economicamente no espaço esportivo. Ou seja, usar o poder do Estado para que campeonatos e jogos sejam elementos de negociação e pressão e isso recai sobre a concessão das transmissões e nas leis que prejudicam canais de televisão tradicionalmente associados ao espetáculo esportivo, como no caso da Globo e da MP 984.

O futebol, para Bolsonaro, tem sido pensado para duas situações: como forma de identidade com o povo, mas também como negociação com grandes empresas e clubes a seu favor??.

Lívia Magalhães, professora de história do Brasil da UFF

Reprodução/redes sociais Reprodução/redes sociais

Visita a estádios e uso da Copa de 70 como propaganda política

Além das camisas, Bolsonaro também visitou seis estádios brasileiros e um estrangeiro, como forma de se aproximar do futebol e, consequentemente, do torcedor. Segundo o antropólogo José Florenzano, da PUC-SP, essa estratégia é muito parecida com a usada pelo ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, general que governou o Brasil entre 1969 e 1974.

Florenzano explica que, nos anos de chumbo, o governo militar usou a conquista da Copa do Mundo de 1970 pela seleção brasileira como propaganda de um Brasil cada vez mais forte, e que Médici comparecia regularmente aos jogos no Maracanã, Beira-Rio, Fonte Nova ou Morumbi. Dizia-se torcedor do Grêmio, como Bolsonaro fala do amor pelo Palmeiras, mas prestigiava vários clubes, de preferência os assim chamados "times do povo".

De acordo com a professora Lívia Magalhães, é possível fazer uma relação entre o povo e o uso do futebol no jogo político. Isso pode ser exemplificado em alguns períodos das ditaduras brasileira e argentina. No caso hermano, os militares tentaram converter em determinados projetos políticos o bônus de ser o país sede da Copa do Mundo e se tornar campeão em 1978.

A importância do futebol na política da Argentina era clara e, assim que chegou ao poder, a Junta Militar passou a gerenciar as emissoras de televisão que, a partir de então, só exibiam programas estatais. A exceção foram as partidas de futebol, que puderam ser transmitidas livremente.

''Claro que a Copa do mundo de 1978 ajudou na imagem das ditaduras, pois mostrava um povo feliz e encantado pelo futebol. Entretanto, defendo que não podemos entender todas as manifestações de comemoração da população como um apoio direto aos regimes ditatoriais'', afirma a professora Lívia Magalhães.

Ídolo do Palmeiras inspirou o nome do presidente

A ligação do presidente Jair Bolsonaro com o futebol começou no seu nascimento. Isso porque o nome dele foi uma homenagem do pai Percy Geraldo Bolsonaro, palmeirense, e da mãe Olinda Bonturi, ao jogador Jair Rosa Pinto, que foi ídolo da Verdão. Pelo clube paulista, o meia esquerda marcou 71 gols em 241 partidas.

Entre os troféus que levantou pelo Palmeiras estão o Paulista de 1950, a Taça Rio e o Rio-SP, de 1951.

Jair Rosa também jogou por Vasco, no qual conquistou os estaduais de 1945 e 1947, e por Santos, onde foi campeão paulista em 1956, 1958 e 1959.

Pela seleção, o meia atuou na Copa do Mundo de 1950 e estava no Maracanã na derrota para o Uruguai na final aos olhos de 200 mil torcedores.

Sérgio Lima/Folhapress/Sérgio Lima/Folhapress/23/02/2007

Futebol e os presidentes

A relação de presidentes e clubes de futebol não vem de hoje. João Café Filho, por exemplo, que governou o Brasil entre 1954 e 1955, foi um dos fundadores e goleiro do Alecrim Futebol Clube, do Rio Grande do Norte, entre 1918 e 1919. Já João Goulart, presidente entre 1961 e 1964, atuou nas categorias de base do Internacional, mas deixou o futebol aos 16 anos por causa de um problema na perna.

Outro que teve a trajetória ligada ao futebol foi Fernando Collor de Mello, que iniciou sua carreira política como presidente do CSA, em 1973. Dezesseis anos depois, em 1989, ele foi o primeiro presidente eleito pelo voto popular após a redemocratização.

Peladeiro, o ex-presidente Lula gostava de bater uma bolinha com os amigos. O petista nunca escondeu ser torcedor do Corinthians e foi fotografado diversas vezes usando camisas do time de coração, além de ter ajudado na articulação para que o clube finalmente construísse o seu estádio.

A mineira Dilma Rousseff, que comandou o Brasil entre 2011 e 2016, já declarou ser torcedora do Atlético-MG e do Internacional. Além de ter sido fotografada com as camisas dos clubes de coração, ela já posou com uniformes do Cruzeiro, do Athletico-PR, do Fortaleza e do Fluminense. Na abertura da Copa do Mundo, de 2014, com a popularidade em baixa e vestindo a camisa da seleção brasileira, Dilma foi vaiada pela torcida. Ela já havia sido hostilizada ao comparecer no Mané Garrincha, na Copa das Confederações em 2013.

Governo não comenta

O UOL Esporte tentou, em diversas oportunidades, contato com o governo para obter um posicionamento sobre o uso de camisetas de clubes pelo presidente Jair Bolsonaro.

Na primeira tentativa, em 1º de dezembro, a reportagem enviou email para a Assessoria de Comunicação Social, vinculada ao ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira. Foi orientada a procurar a Secretaria de Comunicação. Foram encaminhados e-mails e feitas ligações. Em outro contato telefônico, no mesmo dia, uma funcionária da Secom pediu que os questionamentos fossem enviados por email, que também não foi respondido.

Em 2 de dezembro, foram feitas novas tentativas por email e telefone. No dia seguinte, a assessoria informou que não havia um posicionamento oficial por parte do governo. A reportagem voltou a insistir nos canais oficiais nos dias 4 e 7 de dezembro, sem sucesso.

+ Especiais

Marcio Menezes/América-RJ

Carioca de 60 teve América campeão, balão de oxigênio e morte de torcedor

Ler mais
Daniel Vorley/Daniel Vorley/AGIF

Não é 'saidinha': Diniz conquistou grupo do São Paulo sem falar de futebol

Ler mais
Jorge Araújo/Folha Imagem

De azarão a papa-títulos: Brasileiro de 90 mudou história do Corinthians

Ler mais
Reprodução/Instagram

Lewandowski: de reserva de ex-Palmeiras a favorito ao melhor do mundo

Ler mais
Topo