Arepas

Como vender sanduíche típico ao redor do estádio do Palmeiras está mudando a história de imigrante venezuelana

Juliana Vaz Colaboração para o UOL, em São Paulo Avener Prado/UOL

Sábado, oito da manhã. A venezuelana Adriana Camargo já está de pé, com a lista de compras em mãos e a caminho do supermercado. Ela precisa abastecer o estoque do café e restaurante que inaugurou há menos de um ano em frente ao Allianz Parque. Quando o jogos acontecem durante a semana, a a carga horária de Adriana é dobrada, pois de segunda à sexta ela trabalha em uma empresa de recursos humanos e tecnologia. A imigrante, ex-atleta regional de escalada esportiva da Venezuela, cozinheira e empreendedora soma adjetivos e horas de trabalho para construir e manter a vida em outro país.

Em vez da escalada, um outro esporte pauta a vida de Adriana atualmente: o futebol. Quando o Palmeiras joga em casa, na zona oeste de São Paulo, ela garante as vendas da semana instalando uma churrasqueira na calçada e servindo um prato típico do seu país aos torcedores: arepas recheadas com linguiça.

"As pessoas passam por aqui e não prestam atenção, essa foi uma boa maneira de vender mais e também apresentar algo da minha cultura aos brasileiros e criar uma conexão", conta. "A maioria não conhece, fica curiosa, e acaba repetindo".

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O Brasil não era uma opção quando ela e a família sentiram os efeitos da derrocada da economia venezuelana. Quando o governo cortou a verba para os atletas e suspendeu as competições de escalada do país, ela se mudou para a Colômbia, por ter cidadania deste país também. Trabalhou em empresas de call center, garçonete em cafés e foi lá que começou a vontade de ter seu próprio negócio.

"A cultura do café é muito forte lá, principalmente em Bogotá. A ideia de empreender surgiu, mas naquele momento não tinha nenhuma possibilidade financeira", diz.

Em 2016, seu marido conseguiu uma vaga de mestrado na Universidade de Brasília (UNB) e ela encarou o desafio de acompanhá-lo. Deixou a família para trás.

Na época, chegou de avião a Brasília. Lá, pediu a permissão de residência para estrangeiros e tirou a carteira de trabalho sem dificuldades. A crise de imigração na Venezuela atingiria o Brasil alguns anos depois. Instalou-se com o marido em uma casa modesta, de um quarto, e partiu à procura de emprego.

Como a comunicação ainda se dava em "portunhol", conseguir emprego em sua área de formação seria difícil. Encontrou trabalho como babá. "Eram quatro crianças. Dois pequenos e dois de seis e oito anos. Além de uma tarefa de cuidados com a casa. Sabia que estavam me contratando para ocupar o lugar de babá e empregada doméstica, mas aceitei por que seria registrada, com direitos trabalhistas".

Ficou lá quase um ano, trabalhando quase dez horas por dia e com hora certa para chegar, mas não para sair. "Quando me recusei a trabalhar em um sábado, me demitiram. O registro era de segunda à sexta. Sou imigrante, mas não ignorante. Procurei um advogado e não tive o menor receio de mover um processo. E a decisão judicial foi favorável a mim".

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Com as economias desse primeiro ano no Brasil e parte da rescisão, ela comprou uma passagem para que a irmã também se mudasse para o país. Depois, veio o irmão do marido. "Ficamos os quatro morando em uma casa de um quarto só por meses".

Com a personalidade de quem não fica esperando as coisas acontecerem sozinhas, ela levou ambos para fazer a carteira de trabalho e os ajudou a se inscreverem nos sites de busca de empregos. Também procurou uma nova oportunidade de trabalho para si mesma. Na semana seguinte após a demissão como babá, visitou o centro local da prefeitura que encaminha pessoas para vagas na cidade. Lá, soube da seleção que aconteceria para vaga na cozinha para uma grande rede de restaurante norte-americana.

Chegou no endereço e levou um susto. "Tinha três mil pessoas ali. Fiquei nove horas na fila. Além das entrevistas pessoalmente, precisei fazer duas provas de conhecimentos gerais e redação. Aí tive medo, porque falava português, mas escrever em outro idioma ainda era difícil para mim". Deu tudo certo e ela foi aprovada.

"Trabalhei por um ano e meio lá. Eu e mais 11 homens. Fiz bons amigos, mas também tive que gritar muito para me impor como mulher e profissional em meio aquela correria frenética de fast-food. Também ouvi que estava ocupando o lugar de um brasileiro, mas bati de frente com a xenofobia. Se de três mil candidatos eu passei, é por que estava qualificada para isso". Ela indicou a irmã e o cunhado para o local. Até hoje eles trabalham lá.

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Novos rumos

Quando o marido de Adriana foi aprovado no mestrado, começou a busca por trabalho na área. Uma empresa de São Paulo o convidou para uma entrevista. "Ele foi até lá, sem nenhuma garantia". Dias depois de voltar, a resposta foi positiva. "É uma grande empresa, não podíamos jogar a chance no lixo. Era mais uma despedida, mas encaramos juntos mais uma mudança". Deixou os amigos que fez em Brasília nesses mais de dois anos e de uma parte de sua família.

Já em São Paulo, em 2018, recomeçou a busca por trabalho. Ela aprendeu a fazer bolos caseiros. Fez parte da equipe de cozinha de um café na zona leste e de uma doceria. Apesar de o marido ter uma posição fixa como engenheiro em uma empresa de inteligência, nunca passou pela cabeça de Adriana ser mantida por ele. Nem era uma opção, já que além de economizar para um dia ter o próprio negócio, ajudava a mãe e os avós, que ainda viviam na Venezuela.

A escalada entrou na vida dela de novo, mas de uma forma diferente. "Quem é escalador não fica parado. Meu marido começou a treinar em um ginásio de escalada indoor e já entreguei lá meu curriculo. Escalo há 11 anos, fui atleta profissional e tenho a experiência do outdoor. Era perfeito!" Trabalhou por meses como "freelancer" no ginásio e em festivais de escalada no litoral paulista.

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Venezuela em derrocada

No início de 2019, Adriana conseguiu uma vaga fixa no ginásio de Perdizes. A vida parecia ter entrado em um compasso alinhado, mas o costume de não ter muita estabilidade financeira alimentava o do sonho de ter o próprio negócio. "Sempre que sobrava um dinheiro, comprava algo para esse projeto. Nem que fosse uma xícara. Quando fui transferida da unidade de Moema para Perdizes, mais próximo da zona norte, onde moro, e comecei a pesquisar o preço dos aluguéis, ver qual seria a melhor localização versus o que eu tinha economizado até ali".

Adriana sentia sua vida cada vez estável, mas cada vez pior para a mãe Marysabel Medina, de 52 anos, professora pública há 30 anos, e seu marido, que trabalhava em uma empresa de petróleo. Somando o salário dos dois mal dava para pagar o aluguel e comprar comida. "Não recebemos nem um centavo quando nos demitimos. 'Se não concorda com o governo e quer ir, vai. Mas não ter dinheiro nenhum'", relembra Marysbel, sobre o que ouviu da administração da escola.

A crise na Venezuela se agravava. Até junho de 2019 estima-se que 4 milhões de venezuelanos tenham deixado o país, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil é a quinta nação que mais recebeu refugiados: 168 mil.

Com o dinheiro economizado até ali, a mãe de Adriana e o marido partiram de Caracas para a fronteira com o Brasil em Roraima. Os venezuelanos que chegam ao Brasil atravessam por rotas clandestinas no entorno da rodovia BR-174, onde há um bloqueio de militares venezuelanos. Em maio de 2019, o Exército fechou a principal rota clandestina de fuga entre os dois países.

"Pagamos cem dólares para que os guardas nos deixassem passar pela fronteira. Havia uma fila de carros, mas só nós dois e outros dois carros com famílias conseguiram atravessar o bloqueio naquele dia", conta emocionada Marysabel. Andaram horas até o posto de triagem na cidade fronteiriça de Pacaraima. "Quando encontramos finalmente o Exército de vocês, fomos acolhidos. Dias depois, chegamos a São Paulo".

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Recomeços

A chegada à São Paulo foi o pontapé para Adriana apostar em empreender. Ela escolheu o estádio do Palmeiras como âncora para criar o próprio restaurante, um café montado em uma loja abaixo do nível do solo em uma rua próxima da arena. O ambiente majoritariamente masculino não intimidou Adriana: nos empregos em que passou, a equipe sempre teve muito mais homens que mulheres. E, como escaladora, desafios não são impedimento.

Com 1,47m de altura, ela está acostumada a se impor o tempo todo. "No ginásio em que eu treinava na Venezuela, uma vez por mês fazia todos os caras ajudarem na limpeza. Na cozinha, em meio a 11 caras, discutia de igual pra igual, xingava no mesmo tom. E no fim do expediente, a gente se abraçava e ia tomar cerveja ou jogar futebol juntos".

Ela confiou que iria driblar o assédio assim, se acontecesse. Mas eram dias longos esperando os clientes entrarem. "No fim, ter um monte de caras como vizinhos dava um pouco mais de segurança".

De cara, os o pessoal dos outros bares foi acolhedor, ela diz. O único alerta que fizeram foi "para a gente prestar atenção nas cores que vestimos nos dias de jogo. Usar a cor do time adversário pode gerar briga e confusão por uma bobagem".

Percebendo que o movimento acontecia na rua principalmente nos dias em que o time jogava em casa, entendeu que dificilmente os torcedores iam notar seu restaurante, que fica um pouco abaixo do nível da rua. Adriana teve a ideia de instalar uma mesa e uma churrasqueira em frente à entrada. Tem dado certo. Em dias de shows, também faz isso, mas nos dias de jogos as pessoas param e conversam mais, provam outro sabor das típicas arepas venezuelanas.

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Quando os jogos acontecem no fim de semana, é comum ver casais e famílias na torcida. "Dessa vez trouxe um amigo e o meu cunhado para conhecer as arepas", diz um torcedor e cliente ao chegar no restaurante. Adriana o abraça e nos diz orgulhosa: "Esse já é meu amigo. Todo jogo ele vem aqui!". Em seguida ela se volta para as três clientes para anotar os pedidos.

"Os colombianos brigam que as arepas são deles, mas nós comemos arepas em quase todas as refeições e preparamos com milho branco de verdade. As nossas é que são as originais", brinca. A receita é o mais artesanal possível, seguindo aquela dos indígenas, cozinhando e moendo o milho branco. "Nós usamos uma farinha, a Aripan, bem mais prático. Mas não vende no Brasil. Tentei substituir com opções nacionais, mas não deu certo, mudou completamente o sabor". O moedor cruzou a fronteira à tira colo pois é herança da avó.

É comum que em grandes eventos como os jogos a polícia repreenda os vendedores ambulantes, principalmente aqueles que vendem bebidas, camisetas, mascotes e acessórios do clube. Por isso, ela prefere manter sua "barraca" de arepas em frente ao restaurante e evitar problemas. "Acho que logo no primeiro mês aqui, eles chegaram, bem educados, é verdade, mas já dizendo que eu não podia vender cerveja ou qualquer bebida alcoólica. Só os estabelecimentos é que podiam. Daí expliquei que a fachada em que montei a mesa era do meu restaurante. Não prolongaram as perguntas e saíram".

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Chefe de si mesma

Mas o negócio é novo e ainda não dá lucro suficiente para mãe e filha. Com o português já fluente, Adriana decidiu voltar à procura de emprego. Há dois meses, encontrou um em sua área, na zona leste. "Fazer o quê? É jornada dupla, mas não posso ficar parada esperando que o primeiro ano de um negócio dê lucro e todas as economias sejam diluídas".

Enquanto isso, Marysabel, fica no café e treina o português. "Estou fazendo um curso há dois meses, mas ainda não tenho muito bom vocabulário. Faço aulas com uma pessoa da Síria, outra do Haiti e outras três de um país da África que não me lembro. As histórias deles de enfrentar a guerra são ainda mais tristes do que vi acontecendo no meu país".

Durante os dias da semana, Adriana leva o que precisa repor de estoque para o restaurante, também por volta das oito. Às 10 horas precisa correr para o metrô Barra Funda para chegar no horário, às 11 horas, no metrô Vila Matilde, cerca de 50 minutos dali. Ela faz isso todos os dias, exceto aos domingos.

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Quando os jogos do Verdão acontecem em dias de semana, a rotina fica mais puxada. Foi assim na quarta-feira em que a acompanhamos. Ela conta que fez a contagem de estoque na noite anterior para, de manhã, ir ao supermercado. Por volta das nove, já deixou o que faltava, gelo, cerveja, refrigerante, carvão a linguiça, carne, feijão e banana da terra, para ter opções veganas das arepas. "Muita gente têm pedido". Depois de descarregar as compras na Rua Caraíbas, vai para a empresa de RH que trabalha.

Durante a tarde, a mãe, Marysabel, adianta a preparação da massa das arepas. Já por volta das 17, 18 horas, molda a massa e as coloca na frigideira. "Elas ficam crocantes por fora e macias por dentro. Quando o cliente chega, aqueço um pouquinho no calor da churrasqueira que montamos lá fora e ficam deliciosas", explicou a ex-professora, enquanto fazia esse passo a passo "Cozinhar quantidades grandes é uma novidade para mim. Foram 30 anos lecionando, estudando na universidade. Isso não é demérito nenhum, tenho gostado e fico feliz de estar aprendendo coisas novas com vocês. Todo dia é uma novidade".

Por volta das 20h45, Adriana chega. "Acabei me atrasando. Normalmente, consigo chegar lá pelas 20h30. Saio às oito da noite e o metrô da linha vermelha já está mais tranquilo, mas hoje atrasou não sei porque". Como a mãe já havia deixado tudo "no esquema", ela assumiu a preparação dos lanches e o atendimento. "É uma correria, mas não tem problema. Eu quis tanto ter um negócio e finalmente consegui. Não vou desistir fácil e sei que demora um tempo até dar lucro".

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Adriana é cheia de energia, movimenta as mãos, o corpo e fala alto - sempre sorrindo. Extrovertida, não é nenhuma surpresa já ter palmeirenses como clientes assíduos. No intervalo e ao fim do jogo, o pessoal vai contando um para o outro sobre "o lanche venezuelano" para comer entre uma rodada e outra de cerveja.

Quando perguntamos se já se adaptou ao Brasil e sente falta de seu país, Adriana dispara: "Eu sinto saudades da vida que vivi lá. De escalar a tarde toda, de chegar na casa dos meus amigos a hora que quisesse e passar horas juntos. Mas nem eles estão mais lá. Quem tinha dupla cidadania (muitos têm da Colômbia e Peru) foi embora. Quem ficou me diz que a Venezuela que conheci já não existe mais, só nas minhas lembranças".

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