O soco eterno

Anselmo se sacrificou pelo Fla com agressão planejada na Libertadores-1981 e carregou para sempre fama de mau

Leo Burlá Do UOL, no Rio de Janeiro Marcos de Lima/UOL

Não foi um gol de título, mas foi comemorado desta forma pela torcida do Flamengo. No dia 23 de novembro de 1981, o então atacante Anselmo saiu do banco de reservas do Estádio Centenário, em Montevidéu, para entrar para a história rubro-negra ao protagonizar um episódio tão marcante quanto os gols do Zico diante do Cobreloa, do Chile.

Com a vitória por 2 a 0 já encaminhada, e a taça da Libertadores de 1981 quase na mão, o técnico Paulo César Carpegiani não teve dúvidas: era hora de dar o troco depois de tanta porrada recebida ao longo de três confrontos.

E foi essa a única instrução do técnico ao jogador. Anselmo entrou aos 43 minutos do segundo tempo, deu um soco na cara do chileno Mario Soto, foi expulso em seguida e desencadeou uma pancadaria generalizada — que terminou com esconderijo na banheira, apreensão e até explosão.

No final das contas, não é exemplo para ninguém. Mas foi ótimo para a torcida. Ficou como um episódio que marcou minha vida com a torcida do Flamengo. Se foi bom para eles, foi bom para muita gente. O que eles fazem na arquibancada não existe."

Anselmo em entrevista ao UOL Esporte.

Em conversa por telefone, o "ídolo às avessas" do primeiro título continental do Mengão recordou os minutos que mudaram para sempre a sua vida. O resto é história.

Marcos de Lima/UOL

Herói por acaso

Quis o destino que justamente a violência dos chilenos no jogo em Santiago fizesse com que Anselmo fosse convocado às pressas para o jogo de desempate no Uruguai. Ele não deveria estar nem no banco de reservas...

O Flamengo tinha vencido o jogo de ida por 2 a 1 no Rio de Janeiro, com dois gols de Zico. No Chile, o Flamengo perdeu por 1 a 0 na bola e no braço —o zagueiro Mozer, por exemplo, contou ao UOL que o rival, Mario Soto, jogou com uma pedra na mão, para agredir os adversários. Com o placar agregado empatado, a decisão foi para um jogo de desempate, no Uruguai, três dias depois.

O problema é que, com as porradas dos chilenos, o Fla ficou com poucas opções para o ataque. A solução foi chamar Anselmo, um jovem, para a viagem. E ele trocou uma folga em sua cidade natal pelo papel de reserva na terceira partida.

"Fui só para o último jogo. Estava em Nova Friburgo (região serrana do Rio), e meu pai me disse que o Flamengo tinha ligado mandando eu ir para o Uruguai, pois o Adílio e o Lico estavam machucados."

"Vai e faz"

Do banco de reservas do Centenário, Anselmo viu os rivais apelarem para a violência diante de um time num "outro patamar", como se diz nos tempos atuais.

"O Flamengo era infinitamente superior mesmo com os pontapés. Jogou limpo. A única agressão foi a minha. Flamengo jogou tranquilo, a equipe era muito melhor", relembrou o suplente, que entrou na vaga do artilheiro Nunes faltando 4 minutos para o fim.

Chamado por Carpegiani, Anselmo diz que não pensou muito na orientação recebida e tampouco divergiu do treinador. O soco já parecia programado, e era uma questão de honra para os rubro-negros.

"Não senti nada na hora. O ambiente era tão nervoso com os caras dando pisão e pontapé, que era um clima de revolta total. O Paulo me disse: 'vai e faz'. Só pensei em fazer. Se tivesse pensado em tudo, nem levantava do banco de reservas. Meu comportamento foi o de cumprir. O que aconteceu em Santiago foi anormal, mas eles estavam fazendo tudo de novo em Montevidéu. Não sou a favor do que foi feito. Se você faz isso hoje é eliminado do futebol. Não foi sentimento de vingança, foi revide", argumentou.

Esconderijo na banheira

Se tivesse realmente pensado nas consequências, Anselmo talvez não executaria sua missão. Ao agredir Soto, o ex-jogador desencadeou uma confusão que resultou em mais pancadas e confusão. Expulso pela arbitragem, o atleta foi escoltado pela polícia uruguaia e trancado no vestiário.

Ali, sozinho, Anselmo diz ter ficado entre a euforia causada pela adrenalina da briga e o pânico pelo que ainda poderia acontecer. "A minha situação foi de alegria e medo. Não era para acontecer, foi repentino. No calor do momento a gente faz as coisas, mas depois pensa um pouco", contou o campeão de 1981, que precisou se esconder para administrar a tensão.

"A polícia me trancou dentro do vestiário e fiquei sozinho imaginando o que ia acontecer. O medo era bastante, me escondi numa banheira e coloquei umas bolas por cima. Eu estava muito feliz, mas com muito medo. Quando a porta abriu e a galera entrou festejando, aí foi uma alegria só."

Eu nem participei da cerimônia de entrega do troféu, estava trancado. Eu tenho a medalha, mas nem me lembro de como ela chegou até mim. A camisa eu não faço ideia de onde foi parar.

Anselmo, sobre perder a celebração da volta olímpica com seus companheiros

Reprodução

Mais sobre a final

Se quiser saber mais sobre a final de 1981, o UOL contou, em 2018, a história oral daquela decisão entre Flamengo e Cobreloa.

O Mario Soto realmente tinha uma pedra na mão. Só que, quando falávamos com o árbitro, ele deixava a pedra cair em alguma parte do campo. E ele sempre pegava a pedra de novo e fazia as mesmas coisas."

Mozer, zagueiro daquele Flamengo.

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Fama de mau

O soco no histórico jogo da Libertadores de 1981 rendeu a Anselmo uma fama de indisciplinado, e o atacante teve de arcar com as consequências no restante de sua carreira.

Diante da chance de ir para o rival Fluminense, o atleta diz ter aceito o convite na hora, mas viu as portas das Laranjeiras se fecharem na hora do negócio ser concretizado.

"Na época, o José Roberto Francalacci (ex-preparador físico do Flamengo) foi para o Fluminense e me perguntou se eu tinha interesse em ir. Disse que tinha, mas tempos depois ele me ligou e disse que era difícil, que a diretoria estava achando complicado. Durante um tempo aquilo foi a alegria de muita gente, mas o tempo passa e você passa a ser 'bandido'. Isso ficou marcado e me prejudicou algumas vezes. Eu deixei de sair do clube por ser considerado um jogador indisciplinado, escutei muita coisa", recordou.

A foto do soco

Almir Veiga Almir Veiga

Exílio na Bolívia e vida em Portugal

Depois do Flamengo, os caminhos de carreira levaram Anselmo ao Botafogo de Ribeirão Preto. Em seguida, o jogador teve uma parada forçada na Bolívia, país no qual defendeu o Guabirá. O atacante não fala com saudosismo sobre esse período. "Fui para lá, e ninguém mais sabe onde você está", afirmou.

O ressurgimento, no entanto, veio com passagens bem-sucedidas por Ceará e Coritiba. Depois do período de ostracismo no exterior, gols e títulos devolveram a autoestima ao campeão sul-americano de 1981. "Depois de passar pela Bolívia, recuperei aquele status."

Mais adiante, depois de uma passagem pelo Louletano, Anselmo decidiu que Portugal seria seu destino após pendurar as chuteiras. Estabelecido há 30 anos em Quarteira, na região do Faro, o ex-jogador trabalha em um agrupamento de seis escolas e cuida da distribuição de alimentação e material escolar para as crianças.

"Joguei no Louletano, depois fui para o Sport e decidi voltar para morar. Tinha criança pequena, aqui é mais seguro."

Diogo Reis/AGIF

Saudades do Flamengo de 2019

Devido ao fuso horário em Portugal, Anselmo diz não conseguir ver todos os jogos do clube do coração, mas o campeão de 1981 diz que estará ligado na decisão diante do Palmeiras neste sábado — mais uma vez no gramado Centenário em Montevidéu.

A confiança, contudo, costumava ser maior na época do timaço dirigido pelo português Jorge Jesus. Hoje, com Renato Gaúcho no comando, o torcedor Anselmo carrega certa desconfiança.

"Esse ano está diferente de 2019. Não sei se é a condição física. O ritmo e as movimentações eram sempre as mesmas, mas não tenho visto isso agora. Vamos torcer para que o Flamengo ganhe de novo", afirmou um dos heróis da primeira Libertadores rubro-negra, com esperança sobre o sonhado tri.

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