O homem antes da lenda

O relato de um "dia de fúria" de Anderson Silva ao relembrar perda de filha, racismo e um enquadro da polícia

Eduardo Ohata Colaboração para o UOL, de São Paulo Felipe Dana/AP

Final de tarde, conclusão da mais extenuante —emocionalmente falando— sessão de entrevistas para coleta de informações para a biografia de Anderson Silva. O "Spider", a princípio, havia relutado em falar sobre episódios bastante traumáticos que haviam sido previamente "cantados" por pessoas do seu entorno.

A pauta era pesada e incluiu lembranças dolorosas, como a morte de sua segunda filha, Keiry, ainda recém-nascida, o dia em que foi enquadrado pela polícia e a primeira vez em que foi alvo de racismo, quando trabalhava em uma rede de fast food.

Anderson concordou em contar os episódios. Com calma e serenidade na voz, ele se esforçava para lembrar os detalhes e tudo parecia bem. Foi nesse momento que o homem, e não o lutador que, naquela época, era incontestavelmente o maior do mundo, surgiu. O dia de fúria que você vai ler aqui mostra um lado emocional do campeão - agora aposentado do UFC - que ele sempre tenta esconder.

Felipe Dana/AP

Morte da pequena Keiry

Aquela sessão de entrevistas acontecia na sede da 9ine, a agência do ex-atacante Ronaldo que intermediava os contratos de marketing de Anderson, localizada em São Paulo. Quando tudo terminou, anotações feitas e gravador desligado, Anderson se levantou abruptamente do confortável sofá onde estava sentado.

Em voz alta, fortemente emocionado, olhos marejados e tom exasperado, desabafou: "Eu fiz tudo o que podia, tudo o que estava ao meu alcance, para salvar minha filha, mas não tinha dinheiro para levá-la para um hospital caro. Não sei se teria mudado algo, se ela teria sobrevivido, mas ela morreu... Eu fiz o que podia, mas ela morreu..."

A exemplo do personagem dos quadrinhos que inspirou seu apelido, o Homem-Aranha, que não prendera o bandido que depois provocou a morte do seu tio, Anderson tomou para si o peso da responsabilidade. "Se minha condição financeira fosse um pouco melhor, eu poderia ter feito alguma coisa? Ela poderia ter sobrevivido?"

Essas questões martelaram durante anos na cabeça de Anderson.

Gregg DeGuire/WireImage Gregg DeGuire/WireImage

Enquadro da polícia: amigos brancos poupados

O "Spider" faz uma brevíssima pausa antes de continuar seu discurso. Agora, o tom de indignação substitui o de sofrimento.

"Tô voltando de um passeio com meus amigos em um shopping no centro de Curitiba, chega uma viatura, os policiais descem, liberam meus amigos [brancos], me enquadram, perguntam o que estava fazendo, e questionam, 'desde quando um neguinho que nem você tem dinheiro para ir no shopping?'

Os policiais checaram seus documentos, jogaram tudo no chão, mandaram o próprio Anderson recolher, antes de perguntar o que ele "fazia da vida". A resposta —"Trabalho, estudo, não sou marginal"— não ajudou em nada. Pelo contrário: ouviu uma ordem para "calar a boca" e ainda tomou um peteleco na cabeça.

Aquele episódio fez crescer no interior de Anderson a sensação de impotência. Afinal, era só um garoto, não era ainda o campeão dos cages. Além disso, era só ele contra vários.

Arquivo pessoal/Instagram @spiderandersonsilva Arquivo pessoal/Instagram @spiderandersonsilva

Racismo no trabalho

A essa altura, o tom cada vez mais alto de Anderson já atraía a atenção de funcionários da 9ine, que olhavam em nossa direção para conferir o que estava acontecendo, possivelmente imaginando que se tratava de uma discussão envolvendo a estrela do esporte que estava no local. Logo verificavam não ser o caso. Anderson não mirava ninguém em particular.

Ele, então, emendou o conhecido caso de racismo que sofreu da parte de um cliente de uma rede de fast food onde trabalhava para ajudar no orçamento da casa dos tios com quem morava.

"... Aí eu tô tentando trabalhar para ajudar em casa, ganhar algum dinheiro, tô no caixa, chega um senhor e diz que não quer ser atendido por um negro??!", perguntou, de forma retórica, para na sequência se sentar, como se nada tivesse ocorrido.

Na ocasião do incidente na rede de fast food, Anderson, então com 21 anos, congelou. Não retrucou. Apenas foi procurar o gerente para resolver o problema. O cliente foi orientado a procurar outro lugar para comer se não quisesse ser atendido por Anderson. E saiu insatisfeito, resmungando.

Jed Jacobsohn/Zuffa LLC via Getty Images

Motivações para se tornar campeão

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Em meses de convívio, era a primeira vez que via Anderson elevar o tom de voz para qualquer coisa. Um contraste com o cavalheiro que, para fazer pedido à garçonete, por exemplo, falava, gentil, com um sorriso: "Moça, pode trazer um cafezinho? Obrigadinho..." —comportamento que fazia muitos se perguntarem como alguém com esses modos conseguia conjurar a ferocidade necessária para triunfar nos cages.

Confuso e atônito, me despedi de Anderson. Quando ele se afastou, perguntei ao membro de sua equipe que o acompanhava se o havia irritado. Ele logo tratou de me tranquilizar.

"Não se preocupe, não é nada com você. É que ele reviveu, de uma só vez, lembranças dolorosas que estavam enterradas em seu subconsciente", explicou, sorrindo, o assessor do "Spider".

Em comum, os três episódios tiveram o mérito de servir de motivação para o jovem Anderson se tornar campeão.

AP Photo/Mitsunori Chigita AP Photo/Mitsunori Chigita

O exemplo de Muhammad Ali

Não é à toa que um dos grandes ídolos adotados por Anderson é Muhammad Ali. O ex-campeão olímpico e mundial dos pesos-pesados de boxe foi homenageado pelo brasileiro durante algumas das lutas e comemorações.

Curiosamente, assim como Anderson, Ali passou por um episódio racista traumático, em idade semelhante e, coincidentemente, em uma hamburgueria. Já campeão olímpico, Ali pediu um hamburguer e um milk shake, e o cozinheiro respondeu que não atendia negros, não importava quem fosse.

Ali ficou tão desapontado que foi à Ponte Jefferson County e atirou no rio Ohio a sua valiosa medalha olímpica de Roma-60. Militou pelo movimento negro, foi preso, teve a licença de pugilista cassada, sacrificou, inativo, alguns dos anos mais produtivos como atleta.

Divulgação/Twitter @graacc

"No meu íntimo, sou professor de artes marciais"

Anderson Silva completou sua metamorfose no "Spider", um badalado e famoso campeão do UFC, que era habitué de programas matinais e dominicais de variedades, moldado por vitórias e histórias como essas. Ele permitiu, de tempos em tempos, um vislumbre de um lado seu simples e humano.

No lançamento de sua autobiografia, "Anderson Spider Silva", que ajudei a escrever, em uma livraria no Rio de Janeiro, o então campeão dos médios do UFC parou a sessão de autógrafos que contava com uma fila gigantesca para assegurar que uma garotinha, sua ex-aluna, acompanhada dos pais, aplicasse corretamente as técnicas que havia lhe ensinado. Com atenção e foco, a observava realizar movimentos e, pacientemente, oferecia instruções para que os aprimorasse. Se, de fato, a luta deste sábado for o derradeiro capítulo de sua carreira como competidor de MMA, trata-se de uma pista do que gostaria de fazer.

Em outra oportunidade, em um momento de uma entrevista no Brasil para a revanche com Chris Weidman, para quem havia perdido o cinturão do UFC, Anderson praticamente ignorava as questões dos jornalistas. Estava mais interessado em interagir com uma criança, um garoto de seus seis anos que, vítima de câncer, perdera os cabelos e estava sentado no chão, na sua direção.

Sorriso no rosto, Anderson apontava para a cabeça do garoto, para sua própria careca, e fazia o gesto, imortalizado pelo personagem Didi Mocó, do humorista Renato Aragão, ao passar os dedos nos lábios e os estalar. Se a mensagem que planejava passar era algo como "tudo está bem" ou "somos demais", o largo sorriso do menino mostrou que surtiu seu efeito.

Estou lutador e campeão do UFC. Mas o que sou, meu íntimo, aquilo para que fui formado, o que gosto de fazer, é ser um professor de artes marciais.

Anderson Silva

Quais são os principais momentos de Anderson Silva?

Repórteres especializados em MMA respondem

Divulgação

Biografia

Eduardo Ohata é jornalista, comentarista dos canais ESPN, com passagens por UOL e Folha de S.Paulo. A convite da editora Sextante, foi coautor de "Anderson Spider Silva - O relato de um campeão nos ringues e na vida".

A autobiografia, uma das obras mais vendidas no Brasil à época do lançamento, foi produzida com base em mais de 20 horas de conversas com o biografo, além de entrevistas com parentes, amigos e associados.

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