'Eu sou uma mulher da porra'

Adriana Araújo perdeu a chance de ser campeã mundial porque não perdeu 11kg em um mês. "O sonho não acabou"

Roberto Salim Em colaboração para o UOL Esporte Instagram/@adriana_araujoboxe

Faltavam apenas quatro dias para o maior desafio da vida de Adriana Araújo e a situação ficou desesperadora. A baiana de 39 anos estava prestes a enfrentar a britânica Chantelle Cameron, dez anos mais nova, pelo título mundial de boxe na categoria até 63,5kg do Conselho Mundial de Boxe. Mas não conseguia vencer a primeira adversária: a balança. "A luta foi no domingo [4 de outubro de 2020], mas já na quarta-feira dava para perceber que não conseguiria chegar ao peso. Não tomava mais água, não comia. Vomitava. Treinava muito, tentava perder o peso", lembra Adriana.

O desafio era hercúleo. O convite para a luta pelo título chegou com apenas 23 dias de antecedência, tempo que Adriana teria para perder 11 quilos. Se você acha que é um desafio possível, os relatos da seção "Como emagreci", de Viva Bem, aqui no UOL, mostram que perder peso nunca é algo imediato. O último relato, por exemplo, fala de 12 kg perdidos em seis meses. Adriana teria de perder quase o mesmo, sete vezes mais rápido. Mesmo sendo uma atleta profissional, acostumada com a perda grande de peso antes das lutas e contar com uma rotina de treinos duríssima, não deu.

"Tentamos. Tentamos, intensificamos os treinamentos e fizemos uma dieta bem leve, mas nem isso foi suficiente. Só eu e [Luiz] Dórea [treinador] sabemos o que nós passamos. Mas eu faria tudo de novo". A dieta regrada incluía pequenas porções de salada de agrião, pepino e peito de frango grelhado. Um sacrifício sem tamanho para quem está acostumada a bater um prato com direito a todos os temperos da culinária baiana.

Instagram/@adriana_araujoboxe
Arquivo pessoal/Instagram @adriana_araujoboxe

Batalha perdida: 'Faria tudo de novo'

A primeira batalha, Adriana não venceu. O técnico Luiz Dórea, que acompanha a lutadora há mais de 20 anos, resolveu desistir. E olha que o treinador baiano não é lá de jogar a toalha. "Era impossível. Se ela insistisse em perder mais peso, com certeza nem teria forças para subir ao ringue", relembra Dórea, já de volta a Salvador. "A Adriana foi uma guerreira, meu amigo. Só eu sei o que ela sofreu tentando chegar aos 63,5 quilos".

No íntimo, Adriana sabia que a luta mais difícil seria para entrar no peso. Os treinos nos últimos meses em Salvador não estavam seguindo um ritmo ideal, em virtude da pandemia, e a alimentação tinha saído de controle. A idade era outro fator que pesava. Mas se foi uma insanidade aceitar o desafio, por que a dupla resolveu concordar com a disputa?

"Porque aos 39 anos dificilmente ela teria outra chance como essa. Mas o convite chegou muito em cima da hora", reponde Dórea.

"Eu sou uma mulher da porra! E faria tudo de novo, mas foi uma loucura", brada com orgulho a lutadora, que está curtindo um merecido descanso de dez dias em sua terra.

Jamais fui anti-profissional. Foi a primeira vez que isso aconteceu em minha vida. Tenho 20 anos de boxe e 16 anos representando a seleção do Brasil. Nunca tinha passado por isso. É uma situação desesperadora e repugnante

Adriana Araújo, sobre não bater o peso

Scott Heavey/Getty Images

Londres: terra de angústias e boas lembranças

No dia da pesagem, Adriana bateu 65,7 kg, mais de dois quilos acima do limite da categoria. A baiana teve que abrir mão de parte de sua bolsa pela disputa, e a luta, para ela, deixou de valer o título das meio-médios-ligeiros do Conselho Mundial de Boxe.

No ringue, Adriana perdeu a segunda batalha. Fez dez assaltos contra britânica Chantelle Cameron e foi derrotada por pontos. "Eu sou uma lutadora mais experiente que ela. E ela demonstrou que me respeitou o tempo todo. Não me desdenhou. Manteve-se à distância, sabendo que eu poderia mandá-la para o chão. Mas acontece que meu corpo estava sacrificado, eu estava sem energia e não pude manter a agressividade do meu boxe durante toda a luta. Ainda assim marquei ponto lá em Londres e sei que meu futuro está no boxe europeu".

Londres tem uma importância especial na vida de Adriana Araújo. Foi na capital britânica que a baiana ganhou a primeira medalha de bronze na Olimpíada de 2012. "Creio que só não fui à final na Olimpíada porque os jurados estavam determinados a dar a vitória à russa Sofya Ochigava. Sabe como é: no boxe olímpico o nome do país pesa e muito".

Adriana não foi à final contra a irlandesa Katie Taylor, mas se tornou a primeira brasileira a ganhar uma medalha olímpica de boxe — a de número 100 da história do esporte nacional. "Um bronze que vale ouro", comemora.

FLAVIO FLORIDO/UOL FLAVIO FLORIDO/UOL

Possibilidade de cinturão afasta Adriana da política

Para ter a chance de ser campeã mundial de boxe, Adriana desistiu de outra batalha: a política.

"Eu era candidata [a vereadora em Salvador pelo Democratas], mas abandonei tudo quando aceitei o convite para lutar em Londres".

Mas do sonho de ser campeã mundial, desse, Adriana não desiste tão cedo.

"Vou sim, com certeza e continuo sonhando com o título mundial, só que em uma categoria acima: a de 66,5 kg. Já houve contatos e devo fazer minha carreira de agora em diante fora do país. Marquei meu nome na disputa contra a Chantelle, não só pela atuação em cima do ringue, como pela luta para tentar chegar ao peso".

Daniel Marenco/Folhapress

Sem patrocínio, Adriana virou motorista de Uber

Dificuldades nunca faltaram na vida de Adriana Araújo. Após deixar Londres com a medalha de bronze, caiu nas oitavas de final na Olimpíada do Rio de Janeiro, quatro anos depois, e decidiu se profissionalizar. Duas lutas depois e sem patrocínio, foi obrigada a parar de treinar. A solução para manter as contas em dia: ser motorista de Uber em Salvador.

"Eu dei uma pausa grande no boxe naquela época. Não vou dizer que cheguei a me aposentar, porque na minha mente eu ainda queria lutar. Mas não dava para conciliar o Uber com o boxe. Era cansativo para caramba. Acabava 2h da madrugada. No outro dia, não tinha ânimo nenhum para treinar".

Em 2018, finalmente conseguiu um patrocínio, pode deixar o volante e voltar aos treinos de boxe. Em agosto do ano passado, venceu a argentina Yamila Abellaneda por decisão unânime e conquistou o título latino do Conselho Mundial de Boxe. Foi essa luta que a recolocou na trilha do boxe profissional.

É por isso que digo que sou uma mulher da porra. Treinei em um galpão, pegava o Dórea para me ajudar, sem patrocínio, sem ajuda a não ser dos amigos mais próximos

Adriana Araújo

REUTERS/Murad Sezer

"O sonho não acabou"

Depois das batalhas em Londres, a menina de Brotas (periferia da capital baiana), que queria ser jogadora de futebol e acabou se transformando em craque de boxe, se prepara para retornar aos treinos. E confessa: está descontando a fome passada em Londres.

"Qual foi a primeira coisa que comi quando cheguei de viagem? Pode escrever aí: minhas irmãs prepararam comida baiana. Não sabe o que é? Pois escreva: comi vatapá, caruru, moqueca de peixe, farofa e banana da terra frita".

A fome passada em Londres ficou para trás, mas o sonho de ser campeã continua firme e forte.

"Tenho vários contatos e minhas portas se abriram para o mundo do boxe. Eu sei que 2021 será um ano importante na minha carreira. Estarei preparada como nunca".

Para a lutadora Adriana Araújo, o ano de 2021 não perde por esperar. "Meu sonho não acabou, não", garante ela.

+ especiais

Jon Mark Nolan/Getty Images

Wanderlei Silva perdeu virgindade na academia e tem astrólogo particular

Ler mais
The Ring Magazine via Getty Imag

Maguila x Foreman: "Parece que uma carreta passou por cima de mim"

Ler mais
Simon Plestanjak/UOL

Brasileiro campeão do mundo de boxe treina isolado para luta 'sem coração'

Ler mais
Marcus Steinmeyer/UOL

Aline Silva, vice-campeã mundial: "Sei que sofri abusos sem entender"

Ler mais
Topo