A construção de Abel

Um técnico novato que nunca levantou uma taça chegou ao Palmeiras em 2020. O que o fez, de fato, campeão?

Diego Iwata e Eder Traskini Do UOL, em São Paulo e Santos Eric Fiori/UOL

Eu quero que os jogadores que já ganharam muitos títulos digam a mim, que não tenho título nenhum, e aos jovens jogadores que estão aqui, como é disputar finais de competições desta grandeza"

Da sala de preleção do estádio Nilton Santos, dois jogadores do Palmeiras atenderam ao chamado do técnico Abel Ferreira. O primeiro foi Felipe Melo, campeão da Copa das Confederações com a seleção. O volante falou sobre suas conquistas, na época, cerca de 14 troféus, sobre a vontade que tinha de vencer novamente e a importância de deixar tudo em campo na final da Copa Libertadores, dali a três dias, no Maracanã, contra o Santos.

O segundo jogador a se levantar foi Weverton, goleiro do inédito ouro olímpico da seleção brasileira na Rio-2016. Em suas palavras, Weverton propôs um desafio ao elenco do Verdão: sempre que sentissem fraqueza ou dificuldade deveriam olhar para a arquibancada, em direção a suas famílias, e lembrar que tudo é por elas.

As palavras dos dois foram vistas por Abel Ferreira como fundamentais para a conquista do troféu continental, o primeiro da curta carreira do português que completa 44 anos em dezembro. Mas, desde então, muita coisa mudou e o Abel nunca mais vai precisar pedir discurso de jogadores com títulos importantes. Agora, ele mesmo pode falar sobre o tema.

Ainda em campo e com a medalha de campeão da Libertadores no peito, Weverton abraçou o comandante português e profetizou: "É só o começo".

Eric Fiori/UOL

"Os jogadores são os grandes protagonistas e o mérito é deles. Obviamente, bons jogadores tornam um treinador melhor, e bons treinadores tornam os jogadores melhores também. O treinador depende mais dos jogadores do que os jogadores do treinador. Não há treinador que ganhe sem jogadores, mas há jogadores que ganham sem treinador"

Abel Ferreira, no livro "Cabeça fria, coração quente"

Cesar Greco/Palmeiras

Abel Fernando

Abel trouxe da Europa o hábito de ter capitães no grupo para além de meramente portar a braçadeira e participar da escolha de campo ou bola no início dos jogos. Existe uma hierarquia no grupo, e Abel consulta seus capitães, homens de confiança, antes de tomar algumas atitudes.

Atualmente, Marcos Rocha, Gustavo Gómez e Weverton são os capitães. No passado, Jailson, Luiz Adriano e Felipe Melo já tiveram esse papel. E mesmo antes de chegar ao Palmeiras, Abel já havia começado a estabelecer contatos com estes jogadores.

Foi ligando para os capitães, quando ainda nem havia viajado para o Brasil, que Abel ficou sabendo que o gramado sintético do Allianz Parque não favorecia que a bola rolasse com velocidade, algo que incomodava o time. E que Abel resolveu aumentando os pontos de irrigação assim que chegou por aqui.

Jogadores como Dudu, por exemplo, já relataram que o técnico é muito cordial no trato, mas não tem o hábito de ficar "na resenha" com os jogadores, algo que treinadores brasileiros gostam de fazer. As conversas com Abel são de e para o trabalho. Essa é mais uma herança da Europa.

Abel acredita também que os jogadores acabam ficando saturados de sua presença se ele ficar sempre dando as instruções durante o treino. Assim, deixa que os auxiliares comandem o dia a dia, e entra pontualmente em alguns momentos.

Fabio Menotti/Palmeiras

Lousa em campo e grupos no whats

Quando chegou ao Palmeiras, Abel tinha o hábito de fazer explicações táticas nos treinos citando as movimentações táticas pretendidas apenas com palavras. Mas percebeu que alguns jogadores nem sempre realizavam o que era proposto.

Um dia, após assistir a uma preleção, a psicóloga do clube, Gisele Silva, que está sempre à beira do gramado observando os comportamento dos jogadores, se aproximou de Abel e sugeriu: "Professor, desenhe o que o senhor está falando. Os jogadores vão captar melhor".

A partir daí, a lousa passou a ser companheira inseparável do técnico no campo, porque Abel notou a diferença. Quem viu as imagens dos treinamentos do time em Abu Dhabi, para o Mundial, percebeu o trambolho montado à beira do gramado, que deve ter ocupado um enorme espaço na bagagem da delegação.

Imagens, contudo, sempre fizeram parte do arsenal de Abel, que gosta de trabalhar com vídeos de análises, tanto do Palmeiras como dos adversários.

No início, era comum que ele reunisse o elenco para exibir vídeos. O problema é que com um calendário insano como o brasileiro, se ele fizesse isso para todos os jogos, os atletas passariam mais tempo na sala de vídeo do que no gramado.

Assim, Abel criou três grupos de Whatsapp para funcionarem como "treinos complementares": um com todo o elenco, um só para os jogadores de ataque, chamado "Linha atacante de raça"; e um para os defensores: "Defesa que ninguém passa".

Desse modo, Abel conseguia levar as análises aos atletas, segmentando por setor de atuação, sem que isso causasse a saturação de colocar os jogadores em um ambiente fechado sistematicamente. Por meio desses grupos, ele também envia mensagens e vídeos motivacionais.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

O Abel do Palmeiras

  • A camisa preferida

    Abel tem como seu modelo preferido entre as camisas do Palmeiras o modelo 3 de 2021, em tom de bege/dourado, cor cujo nome industrial é tapioca. Sempre que vai presentear alguém com uma camisa autografada, dá uma desse modelo e com seu nome e o número 78 às costas, seu ano de nascimento.

    Imagem: Thiago Calil/AGIF
  • A homenagem à F1

    Mas Abel também gosta muita da camisa 1 que o Palmeiras utilizou no ano de 2021, com uma padronagem quadriculada em tons de verde mais claro mesclados a outros mais escuros. Fã de F1, ele adorou saber que a peça foi inspirada na bandeira quadriculada da linha de chegada.

    Imagem: Marcello Zambrana/Marcello Zambrana/AGIF
  • O passatempo preferido

    Nos raros momentos em que tem alguma folga, Abel gosta de jogar padel, um jogo de raquetes que parece uma mistura de squash com beach tennis, mas que é jogado sobre um piso gramado.

    Imagem: Reprodução / Instagram
  • O Mundial que vale

    Mostrando-se muito alinhado com o sentimento da torcida que o abraçou, Abel é um ferrenho defensor da validade da Copa Rio de 1951 como um Mundial de Clubes. A quem o indaga sobre a questão, ele responde: 'É isso que dizem os livros'.

    Imagem: Acervo/Gazeta Esportiva
  • Os filmes que assiste

    Abel é fã de filmes de animação, até por conta de suas filhas. Da Disney, assistiu ao emocionante "Soul" duas vezes. Outra animação que conquistou Abel Ferreira foi "Din e o Dragão genial", uma produção asiática que tem Jackie Chan entre seus produtores

    Imagem: divulgação/Disney Pixar
Staff Images/Conmebol

A primeira conquista

Abel Ferreira esteve em nove finais e conquistou cinco títulos pelo Palmeiras. Antes um técnico jovem, com ideias e potencial, Abel se tornou unanimidade em menos de dois anos no Brasil.

Para construir esse técnico que é, de fato, campeão, como diz o hino, o português conversou com os capitães do Palmeiras antes mesmo de chegar ao Brasil. A primeira coisa que identificou foi um desconforto com o gramado do Allianz Parque. Resolveu. Quando pisou na Academia de Futebol, solicitou três reuniões mágicas com atletas, diretoria e todos os funcionários do clube.

Durante esses encontros, Abel queria, mais do que entender como funcionava a engrenagem Palmeiras, mostrar que valorizava cada dente que fazia a roda verde girar. Para isso, criou o lema 'Todos somos um'. A abordagem funcionou de tal maneira que, antes da viagem para a final da Libertadores, os funcionários entregaram ao técnico uma camisa assinada por todos eles, pois se sentiam parte daquele trabalho. Na saída do ônibus, todos aplaudiram de pé.

Abel, aliás, é um homem de lemas. Diversos foram apresentados pelo português ao longo de seu trabalho no Palmeiras e o treinador aposta nisso como parte importante da preparação mental para os torneios. Na primeira Libertadores conquistada, trouxe o "vamos proteger o nosso sonho" e "o sonho é agora"; na segunda, alterou para "vamos proteger o que é nosso", se referindo à taça — que esteve presente em alguns momentos da preparação até a final contra o Flamengo.

Staff Images / CONMEBOL

O jogo mental e o rachão

Não é à toa que a foto de Abel Ferreira com os dedos nas têmporas se popularizou como imagem marcante do português. O treinador vê o aspecto mental do jogo como tão importante, ou até mais, do que a tática.

O português e sua comissão trabalham as duas frentes antes de cada partida. Se o jogo é contra um adversário mais fraco, tratam de evitar o relaxamento que poderia resultar no que chamamos no Brasil de 'entrar de salto alto'. Se o rival é de qualidade semelhante, o trabalho motivacional vem para fazer a balança pender para o lado verde.

Em alguns momentos, Abel até identifica que o adversário é superior ao seu time — e vê tal reconhecimento como importante no futebol. Quando isso acontece, a comissão portuguesa tem um trabalho de análise tática maior para descobrir como podem vencer, mas nunca a parte mental é deixada de lado.

A análise tática detalhada e o trabalho mental sempre presente ajudam a explicar um pouco da revolta do português com o calendário brasileiro. Se treinar o time já é difícil entre tantos jogos, torna-se quase impossível analisar taticamente, definir estratégias específicas e ainda fazer esse trabalho motivacional.

Curiosamente, Abel Ferreira conta, em seu livro, que antes da disputa da final da Libertadores 2020, ele comandou o que chama de "competitivo lúdico", o popular rachão. Sim, o português que talvez seja um dos maiores estrategistas da área técnica nos últimos anos também comanda rachão. Mas ganha o título no dia seguinte...

Divulgação River Plate

"A leitura do livro (A Lousa de Gallardo: assim montou um River vencedor) nos permitiu conhecer algumas ideias de Gallardo com as quais nos identificamos; uma delas, em particular (a dinâmica dos três médios), 'roubamos'. Nós, como treinadores de futebol, somos criadores e ladrões de ideias. [...] Acreditamos que a melhor forma de continuadamente evoluir é 'criar' o nosso próprio conhecimento e, sempre que possível, 'roubar' ideias de outros treinadores que, em nosso entendimento, beneficiem nossas equipes."

REUTERS/Mariana Greif

As ilusões de Abel

Para Abel, o segredo é a alma do negócio. Não houve, até o momento, um treino dele aberto à imprensa na Academia de Futebol.

No início, era por conta das restrições impostas pela pandemia. Mas, com o tempo, ficou claro que ele gosta de manter as suas ideias secretas. E tem apreço por armar surpresas táticas e de escalação para seus adversários.

No Uruguai, às vésperas da final da Libertadores de 2021, e nos Emirados Árabes, no Mundial, ele optou por não mostrar as práticas à imprensa, por exemplo.

Talvez para que surpresas como a escalação de Gustavo Scarpa como lateral-esquerdo, contra o Flamengo, na final da Libertadores de 2021, numa linha de cinco, não vazassem.

Scarpa revelou que Abel ainda pediu a ele para ocupar uma faixa no ataque, pela ponta esquerda, no início do jogo, como forma de ludibriar o sistema defensivo do Flamengo. E o lateral Piquerez foi escalado como zagueiro pela esquerda naquele jogo.

Em Montevidéu, também, na entrevista coletiva pré-jogo que os técnicos concedem com o capitão do time ao lado, ele levou Felipe Melo. Somado ao fato de Gustavo Gómez ter sido escalado para falar com os jornalistas assim que o time chegou ao hotel, ficou a impressão de que Melo começaria jogando. Mas não. E quem vestiu a braçadeira foi Gómez.

No Mundial, quando liberava para a imprensa apenas os 15 minutos iniciais de aquecimento, mudou drasticamente o time de um jogo para o outro. Do 4-3-3 da vitória por 2 a 0 contra o Al Ahly (EGI), na semifinal, ele foi pra um 6-4-0, na fase defensiva, contra o Chelsea (ENG) na decisão. Nesse formato, não foi apenas Scarpa que surpreendeu como lateral, mas também o atacante Rony, que foi lateral-direito.

Cesar Greco

Sarrafo não para de subir

Foram nove finais em menos de dois anos e cinco títulos conquistados. Tal desempenho faz com que a expectativa sobre o Palmeiras de Abel Ferreira seja sempre muito alta. Como lidar com isso? O português já antecipou essa pressão logo após o título da Copa Libertadores: aumentar o sarrafo.

Na reapresentação do elenco após a disputa do Mundial onde ficou com a quarta colocação, os jogadores encontraram espalhados pela Academia de Futebol totens temáticos personalizados a pedido de Abel com os dizeres:

Aumentamos o nosso sarrafo...
O que significa?
Mais exigência
Mais trabalho
Mais vitórias
Mais conquistas"

Aquela era a forma do português mostrar ao grupo que aquela conquista fantástica viria junto de cobranças para repeti-la. Naquele momento, o Verdão tinha erguido o troféu apenas da Libertadores, ainda viriam pela frente Copa do Brasil, Recopa Sul-Americana, Paulistão e mais uma Libertadores.

Durante o período que precedeu as demais conquistas, Abel utilizou outras estratégias motivacionais tanto para os jogadores quanto para ele própria e sua comissão — como o peixe dourado chamado Libertadores que ficava na sala dos portugueses para lembrá-los da glória e da memória curta do futebol.

De contrato renovado até 2024, Abel — que não gosta de repetir as mesmas ações de motivação — terá bastante trabalho para deixar a parte mental dos atletas a altura de cada vez mais conquistas do Palmeiras. O sarrafo não para de subir...

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