Início, fim e recomeço

Leonardo viveu o sonho de ser jogador de futebol, decepcionou-se, entrou no mundo do crime, mas virou o jogo

Diego Salgado Do UOL, em São Paulo Acervo pessoal

Quando tinha sete anos, Léo já sonhava com futebol. O sentimento de amor, misturado ao de esperança, acompanhava o garoto nas andanças pela cidade de São Paulo, atrás de treinos e jogos. Ele queria ser ídolo de alguém.

Léo cresceu num campo de futebol, e o sonho, de repente, ganhou forma: Corinthians, Palmeiras, Juventus, São Caetano. Aos 18 anos, já como lateral-direito e volante, ele treinava com aquele time do São Caetano vice-campeão brasileiro.

Mas a vida, muitas vezes, não caminha por linhas retas. Quando tudo parecia encaminhado para que ele vivesse do futebol e tirasse sua família da realidade em que ela vivia na zona leste de São Paulo, os problemas começaram. Endividado após rodar por clubes do interior e buscar sustento na várzea, Léo entrou para o mundo do crime.

Léo, que sempre quis ser ídolo de alguém, sequestrou uma pessoa, foi preso e virou membro de uma facção criminosa durante os oito anos em que ficou detido. Agora, você vai saber como tudo isso aconteceu. E como ele conseguiu sair desse universo para, décadas depois do primeiro sonho com a bola, enfim, virar um ídolo de verdade.

Acervo pessoal

Um sonho vivo e alimentado

A família simples de Carapicuíba, cidade da região metropolitana de São Paulo, tinha um pai motorista, uma mãe funcionária pública e um filho talentoso. Todos passaram a respirar futebol quando Leonardo, filho mais velho, completou sete anos. Em 1989, o menino se destacou em um campeonato da região. Por sorte, um um treinador do time de basquete do Corinthians estava lá.

Indicado ao clube, Léo passou a treinar futsal no Parque São Jorge. Logo passou para o campo. A rotina era difícil, com até quatro treinos por semana na zona leste. Dois anos depois de tantas idas e vindas pela cidade, a família decidiu ir para o Itaim Paulista, para economizar tempo no deslocamento.

"Meu pai vendeu o apartamento diante das expectativas que foram geradas. Ele acreditou que eu poderia reverter a situação da família. O futebol era a salvação, toda expectativa era depositada nele. Sempre existiu essa expectativa de ser a mudança da família. Um sonho foi depositado no futebol", contou Léo ao UOL Esporte.

Tanta esperança numa carreira profissional fez a família correr atrás do sonho ao lado do filho. A irmã mais nova dele, por exemplo, dormiu muitas vezes nas arquibancadas de estádios onde Léo jogava. A caminhada ficou cada vez mais sólida. Do Corinthians, depois de uma rápida passagem por times de empresas, Léo defendeu o Palmeiras. Depois, o Juventus, da Moóca, de onde saiu rumo ao São Caetano, em franca ascensão no fim da década de 1990.

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Futebol dá dinheiro?

Léo chegou ao São Caetano no fim de 1998, aos 16 anos. No ano seguinte, seu último como juvenil, boas atuações no campeonato paulista da categoria renderam uma promoção ao time de juniores. O ano era 2000 e o time do ABC conseguiu chegar à final da competição.

A equipe juvenil do São Caetano contava com alguns nomes que depois atingiriam a elite do futebol, como o lateral-esquerdo Roger Guerreiro, que chegou a defender a seleção da Polônia, e o volante Fabinho, campeão da Copa do Brasil de 2002 pelo Corinthians. Dali a três anos, por exemplo, Roger já estaria no Corinthians e, depois, no Flamengo. Fabinho foi ainda mais rápido. Já estaria no clube alvinegro na temporada seguinte.

Com as promessas do sub-20 à disposição, Jair Picerni, treinador do time principal, passou a dar chance a alguns atletas da base em alguns treinos. Léo, então, esteve lado a lado com as principais estrelas da equipe vice-campeão do Brasileirão.

Em janeiro de 2001, a disputa da Copa São Paulo de Juniores trouxe empolgação e mostrou que o caminho parecia o correto. Uma derrota para Grêmio, porém, mudou a direção da carreira de Léo; "Parte do elenco foi dispensado do clube. Foi quando eu comecei a rodar", contou.

Léo passou a fazer contratos curtos e pular de time em time, de 2001 a 2004. O primeiro como profissional foi o Osasco. Depois, o lateral passou por Guaratinguetá (SP), Internacional de Bebedouro (SP), Campo Mourão (PR), Radium (SP) e XV de Jaú (SP), até chegar ao futebol catarinense, depois da promessa de receber R$ 4 mil por mês.

"Mandaram um dinheiro, passagem. Cheguei na cidade e fomos para o pau. Recebi o mês seguinte e depois fiquei o restante dos meses sem receber. Isso que prejudicou. Acabei não recebendo o tempo que eu fiquei lá. Atrasou auxílio-moradia, foi quando eu me decepcionei", disse.

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Bem-vindo à várzea

Com a promessa de receber R$ 4.000 por mês em Santa Catarina (o valor corrigido pela inflação equivale hoje a R$ 9,5 mil), Léo gastou demais no cartão de crédito. E, sem expectativa alguma, voltou ao Itaim Paulista. Em mãos, notas promissórias que nunca foram pagas.

Léo ainda queria viver do futebol, mas de um jeito diferente. O lateral-direito começou a ganhar dinheiro nos jogos de várzea, nos campos tão conhecidos na infância e na juventude. Além de receber na hora, os times ajudavam a pagar as contas de casa, como água, luz e gás.

"Pelo menos na várzea iam me pagar, ajudar. Eu jogava em dois, três times, aos sábados, domingos, durante a semana, à noite. Eles começaram a me ajudar porque sabiam pelo que eu tinha passado, que já tinha uma trajetória no futebol", frisou.

Léo ainda estava mais perto da família, apesar de distante do futebol profissional. Tinha um lado bom. Por anos, desde muito novo, o jogador havia tido uma vida nômade. "Eu não morava em casa, minha família morava, mas eu morava em hotel, em casa de atleta, em casa alugada. Eu tinha essa vida há tempos, vivendo dessa forma."

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Amigos na ilegalidade

A família estava perto, é verdade, mas os "amigos" também. E esses se arrumavam de outra forma, mais perigosa, mas rentável. O mundo do crime, por meio de alguns dos conhecidos de infância, atraiu Léo. Parte daqueles que estavam vivendo da prática de ilícitos se dedicava à receptação de produtos roubados. A maior parte, porém, era do tráfico. Era lá, segundo Léo, estava o "potencial". O agora ex-jogador de futebol já tinha esquecido da várzea.

Léo conta que se apegou ao lema "instinto de sobrevivência", como ele mesmo diz. "Eu não tinha escolaridade, a minha família estava passando por uma situação difícil. Me envolvi com tráfico de drogas muito rápido", ressaltou. Ele ganhou dinheiro, ajudou os pais, comprou um apartamento na "quebrada", um carro. Léo teve coisas que nunca havia conseguido como um jogador. E curtiu como nunca.

Em 2008, depois de três anos no tráfico, decidiu alçar voos mais altos que poderiam dar dinheiro mais rápido. Havia também um risco dobrado, triplicado. E isso foi determinante para o fim. Léo participou de um sequestro que acabou com prisão em flagrante. "O sequestro estava em andamento, foi através de um rastreamento de uma investigação que conseguiram chegar até a mim", afirmou.

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O inferno na cadeia

Léo teve advogado até sair a sentença. Depois, passou a depender da Defensoria Pública. Em sete anos e 13 dias preso, o ex-lateral passou a pular de cadeia em cadeia: Deic, Belém, Belém 2, Pinheiros 4, Penitenciária Adriano Marrey, Parelheiros, Junqueirópolis, Irapuru e, enfim, Valparaíso.

Quando chegou ao sistema carcerário, Léo já era conhecido por sua atividade como jogador de futebol, sobretudo na várzea. "Foi muito difícil porque aquele não era meu mundo, mas muitas pessoas me conheciam. Aí tive um envolvimento com organização criminosa", contou.

Léo também tentou fugir da prisão. Nos primeiros seis meses de detenção, foram "duas ou três" tentativas frustradas. Foi preciso, então, encarar as condições precárias do sistema carcerário brasileiro. "Eu acreditava que não seria possível nem entrar naquele lugar, mas o ser humano ativa algo dentro no subconsciente que é preciso sobreviver. Você ativa esse lado de sobrevivência, vai ter que sobreviver àquilo ali, vai ter que ser resistente, resiliente, vai ter que morar numa cela com 60 pessoas em que só cabiam 12, higiene precária, cara com tuberculose, cara com uma série de situações".

Mais duas situações trouxeram dificuldades. Ao peregrinar pelo interior do Brasil, Léo ficou ainda mais longe da família. Foram dois anos sem visita. Naquela época, ele já tinha uma filha, que foi gerada dentro da cadeia, em 2011. Léo só a conheceu quando ela tinha três anos e quatro meses.

Eu estava em Guarulhos quando ela foi gerada. Estava passando o maior veneno nessas unidades do interior. Só conheci a minha filha no Dia das Mães de 2014. Quando eu fui para o interior, a dificuldade aumentou muito, eu fiquei sem visita de ninguém por dois anos, devido às condições financeiras da minha família

Léo Precioso

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Léo agarrou a chance

A saída de Léo do mundo do crime começou numa troca de cartas com Eduardo Lyra, fundador do Gerando Falcões, uma organização social que atua em periferias e favelas da Grande São Paulo. Edu e Léo se conheciam desde a juventude.

Numa das saídas temporárias, já na reta final da pena, em 2014, Léo decidiu "dar uma oportunidade para ele mesmo". Encontrou-se com Edu e começou a virar o jogo. De volta à prisão para cumprir os últimos meses de sua pena, mudou a postura. E começou, desde então, a conversar com os companheiros.

Léo ganhou a liberdade em 2015 e logo foi atrás de Edu, que ofereceu um trabalho: monitor de oficinas de esporte, como futsal, tênis e boxe. Empolgado, o ex-jogador decidiu estudar educação física. "Colocamos o poliesportivo dentro da comunidade, justamente onde eu tive um ponto de droga. Eu parei de traficar drogas e fui traficar informação, esperança, mostrar que é possível, mostrar para o jovem, para não acontecer a mesma coisa que aconteceu na minha vida. Fui ser espelho de vida, de sobrevivência", contou.

A experiência longe do mundo do crime fez Léo ter uma ideia: dar oportunidades a ex-detentos, como Edu fizera. "Falei para ele negociar uma vaga de emprego para um amigo que estava saindo do sistema carcerário e que só queria uma oportunidade para recomeçar a vida dele. Começamos a fazer os primeiros encaminhamentos de egressos para o mercado de trabalho", explicou.

De acordo com Léo, alguns empresários começaram a acreditar naquele processo de recuperação. Um projeto foi criado, então, dentro do Gerando Falcões.

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Projeto vivo: vida nova

O trabalho de Léo e Edu começou a crescer de tal forma que não eram apenas os amigos que passaram a ser ajudados. O projeto já conseguia ser mais abrangente, com ex-detentos que Léo nunca tinha visto.

"Começamos a encaminhar outros egressos no sistema. Já eram outras pessoas, que entendiam que a gente tinha um programa de apoio. A gente dialogava, mediava, é uma luta que não tem na sociedade. Inserir pessoas no mercado de trabalho. Os caras começaram a entender", disse.

Em 2018, Léo formalizou um projeto próprio, o Recomeçar, que contou com o incentivo do Instituto Ação pela Paz e também de uma empresa privada. Dois anos depois, o grupo já conseguiu cadastrar 1.000 egressos. Desse montante, 15% conseguiu entrar no mercado de trabalho. Cerca de vinte empresas têm parceria com o grupo. "Diante da realidade, do tamanho do buraco que é, isso é um ato heroico".

Até mesmo o projeto acolhe ex-detentos. Das 11 pessoas que trabalham diretamente com Léo, quatro são egressos do sistema carcerário, inclusive alguns que dividiram cela com Léo.

"Um monte de ex-membro de organização criminosa que decidiu colocar sua arma no chão e pedir uma oportunidade para a sociedade civil. Oportunidade não se compra, se conquista. A gente faz o cara conquistar uma oportunidade, prestar o seu serviço, levar o seu dinheiro digno para casa, criar uma visão de mundo melhor, se preparar e recomeçar sua vida dignamente", ressaltou.

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Espelho dos ex-companheiros

O trabalho de Léo à frente dos dois projetos o levou de volta ao chão batido do pátio de uma penitenciária. Agora, como palestrante. Na Adriano Marrey, por exemplo, foram cinco visitas. Nela, Léo ficou preso por dois anos e, segundo ele, nesse tempo, foi líder do crime organizado.

"É sempre difícil voltar para uma situação que você sabe que vivenciou muita coisa. O sistema carcerário é o mundo oculto, ninguém vê e fica dentro daqueles quatro paredões, fica ali. É sempre difícil voltar, mas eu tinha de voltar, eu tinha que voltar e mostrar para os caras", afirmou.

"O cárcere é um amontoado de gente esquecida e excluída da sociedade. Ali a sobrevivência é diária. Minha ideia é mostrar que, depois disso, tem como viver em sociedade, sim. Por meio do trabalho, do seu comportamento, de suas atitudes. É isso que eu carrego hoje", frisou Léo, que voltou a morar com os pais no Itaim Paulista, como se fosse um dia normal dos anos 1990.

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