O primeiro Mister

No centenário da Portuguesa, as histórias de Otto Glória, que colocou a Lusa e a seleção de Portugal no foco

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Domicio Pinheiro/Estadão Conteúdo/AE

Muito, mas muito tempo atrás, o futebol brasileiro teve um outro mister vindo de Portugal. Era um brasileiro da gema que veio endeusado e reconhecido pelo trabalho realizado nos campos europeus. Trazia na bagagem uma disputa irretocável da Copa do Mundo de 1966, métodos modernos, terminologia avançada para a época e era chamado de senhor Otto pela maioria de seus jogadores. Mister, só pelos seus craques mais próximos.

Não ganhou tantos títulos em seu retorno ao Brasil quanto Jorge Jesus ganhou no Flamengo, mas em Lisboa, vá perguntar aos velhos torcedores quem é Otto e quem é Jesus... Essa ligação com Portugal o fez o personagem perfeito para assumir o comando da Portuguesa duas vezes, nos anos 60 e em 1973, quando foi campeão paulista. Afinal, qual clube brasileiro tem mais a ver com o país europeu?

Hoje, no dia do centenário da Lusa, o UOL Esporte conta a história desse brasileiro herói na Portuguesa e muito lusitano, multicampeão em Portugal, que levou a seleção lusitana ao terceiro lugar na Copa do Mundo de 66, eliminando o Brasil, e se transformou em Mister bem antes daquele que os flamenguistas sentem saudades.

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O primeiro Mister

No Canindé, Otto Glória é um super-herói. Ele estabeleceu um marco em sua passagem de quase quatro anos pela Portuguesa de Desportos, com direito ao título de 1973 e ao vice-campeonato paulista de 1975.

Até quem não torce pela Lusa guarda na memória o maior time que o clube já montou, com um meio de campo com Badeco e Basílio ou Dicá, e um ataque com Xaxá, Enéas, Cabinho e Wilsinho. Uma formação que hoje, no centenário do clube, deve ser comparada a Julinho, Renato, Nininho, Pinga e Simão, que formavam o grande ataque da década de 50.

Em um paralelo com Jorge Jesus, sucesso no Brasil em 2019 e 2020, o Mister dos tempos modernos tinha acabado de nascer quando Otto Glória desembarcou em Lisboa, onde reinventaria o futebol português: 24 de julho de 1954.

Levava na mala a experiência de um jovem treinador de 38 anos, que havia sido auxiliar técnico de Flávio Costa e Zezé Moreira. Estava cheio de planos para reerguer o Benfica, criando o Lar do Jogador e estabelecendo concentração. Não sabia, mas se transformaria também em sucesso na Europa como o único técnico a dirigir Benfica, Sporting, Porto e Belenenses — naquela época, o único clube do país a conquistar o título fora do trio de grandes. Mister Otto ainda dirigiu, também com sucesso, o Olympique de Marselha e o Atlético de Madri.

Olhando o que o Jorge Jesus fez no Flamengo, eu volto imediatamente no passado. E vejo semelhanças com o velho Otto

Wilsinho, ex-jogador da Portuguesa, sobre a comparação de Otto com Jorge Jesus

Otto gostava de se vestir bem, era vaidoso, inteligente, falava espanhol e francês, gostava dos restaurantes da moda

José Roberto Portella, preparador físico de Otto Glória

PA Images via Getty Images PA Images via Getty Images

O brasileiro que eliminou o Brasil na Copa de 66

"Era adorado pelos portugueses do quiosque que passavam a tarde jogando sueca no Canindé. Ele dava treino de terno, era conhecido de todo mundo na Europa e nos deixava admirados com o conhecimento que tinha", comenta Xaxá, o ponta ofensivo que ele transformou em "auxiliar de lateral" ao melhor estilo Romero, ex-Corinthans, e puxador de contra-ataques velozes.

A admiração da colônia lusitana não era à toa. O futebol português nunca tinha chegado tão longe em uma Copa do Mundo como naquela campanha de 66. A equipe venceu o Brasil por 3 a 1 na fase de grupos, selando a eliminação dos bicampeões ainda na primeira etapa,

O time montado por Otto Glória era bestial, como ele mesmo dizia. E só não foi à decisão porque cruzou com os ingleses, os donos da casa, nas semifinais. Portugal saiu derrotada por 2 a 1, mas disputou o terceiro lugar contra os soviéticos e venceram. Euzébio foi o artilheiro da competição com nove gols.

"Às vezes ele nos contava sobre os jogos da Copa do Mundo e falava como Portugal conseguiu vencer o Brasil por 3 a 1 na primeira fase", revela o capitão do time de 1973, o volante Badeco. "Ele dizia que só com muita velocidade e marcando Pelé o time português poderia vencer e venceu".

Foi naquele jogo, aliás, que Pelé saiu carregado de campo e em que o ponta Paraná, ex-jogador do São Paulo, foi escalado com 12 pontos que não estavam cicatrizados na perna para uma verdadeira guerra contra os portugueses.

Empics

O joelho machucado e a mágoa de Pelé

Diz a lenda que Pelé não gostava de Otto Glória. Teria ficado com o técnico atravessado na garganta depois do jogo em que foi caçado em campo contra Portugal, pela Copa do Mundo de 1966. Foram somente três faltas. Mas cirúrgicas, que deixaram Pelé mancando até o final dos 90 minutos. Teria sido do treinador a ordem para baterem no joelho machucado do Rei.

Otto teria informações sigilosas de dentro da própria seleção brasileira. Verdade ou não, Pelé criou uma mágoa de Otto. E estava com tudo na final do campeonato paulista de 1973, no Morumbi, diante de 116 mil pagantes. Santos x Portuguesa.

Em pouco tempo, o Mister que andava torto e às vezes adormecia diante de seus jogadores na concentração, que tinha um bigodinho de desenho, estava prestes a entrar para a história do clube do Canindé.

Oswaldo Luiz Palermo/Estadão Conteúdo/AE Oswaldo Luiz Palermo/Estadão Conteúdo/AE

A chegada ao Canindé

Mister Otto Glória tinha acabado de voltar para a Portuguesa. Primeiro, virou piada. "Pintava o bigodinho e o cabelo em um cabeleireiro na avenida Angélica", lembra o preparador físico José Roberto Portella, seu fiel escudeiro e afilhado de casamento. "Andava sempre de blazer, bem vestido e fazia as unhas toda a semana".

"Alguns chegaram a compará-lo ao Cyborg ou era o Falcon", lembra o preparador físico, falando da dificuldade que o técnico tinha ao andar, com seus joelhos doloridos. "O apelido não vingou. E logo ele ganhou toda a turma, com seus conhecimentos", acrescenta Wilsinho.

Otto fez história criou jogadas e usou a terminologia que só chegou aos campos brasileiros com Cláudio Coutinho cinco anos depois — com termos em inglês. "Ele usava tudo em português mesmo: triângulos móveis, linha mista, passagens em xis, passagem pela lateral e muita coisa que trouxe do basquete, do início de sua carreira na década de 40, no Rio de Janeiro. Da virada de jogo, da movimentação e da criação de espaços", acrescenta Portella, que foi jogador de basquete e nos momentos de folga ia com seu Otto bater uma bolinha.

Arquivo/Estadão Conteúdo Arquivo/Estadão Conteúdo

A final que a Lusa perdeu, mas ganhou

A final do Paulistão de 1973, contra o Santos, teve jogo duro. No intervalo, o visionário Otto Glória fez uma alteração inesperada, trocando o craque do time Enéas por Tatá. "Enéas não tinha treinado normalmente durante a semana porque estava servindo ao Exército e o comandante não deu liberação para que ele pudesse treinar em período integral. Eu acho até que o comandante era santista", brincou o capitão Badeco.

O jogo acabou empatado no tempo normal. Novo empate na prorrogação. E então vieram os pênaltis. O árbitro Armando Marques errou ao achar que, com 3 a 1, o time santista já poderia ser proclamado campeão. "Quando o Armando Marques sinalizou o final, eu comecei a chorar no meio do campo, mas aí ouvi a voz do seu Otto: 'vambora, vambora' Ele sabia que o juiz tinha errado. Subimos no ônibus e fomos", lembra Xaxá.

O rádio foi ligado dentro do ônibus que já partira. Aos poucos, as coisas foram sendo esclarecidas. Armando errara e estava pedindo para o time da Lusa voltar a campo e participar da disputa que não tinha sido completada. "No ônibus, um diretor ainda dizia ao motorista voltar para o estádio, mas seu Otto interferiu e não deixou. Ele sabia que o título seria dividido ou haveria uma nova partida", conta Wilsinho.

Como não havia mais datas disponíveis, o título foi dividido. O ônibus chegou com os campeões ao Canindé. A Portuguesa finalmente se tornava campeã paulista. "Então, o Mister chorando foi abraçando um a um os jogadores, dizendo que era um título histórico, que jamais seria esquecido. Dizia que o Pelé não tinha conseguido ser campeão sozinho", se emociona Xaxá.

Arte/UOL

As brigas com Enéas

Enéas era tratado como uma jóia pelos dirigentes da Portuguesa. Era prata da casa, jogava muita bola e era forte. Cotado para a seleção, cabeceava como ninguém. Na Lusa, fazia mais que jogar futebol. Treinava basquete e saltos ornamentais. Era educado, craque de bola, mas fazia o que queria em campo.

Otto chamava constantemente a atenção de Enéas, mas nunca com gritos. Como o capitão Badeco era dez anos mais velho que a jóia do time, cabia a ele ou ao preparador físico Portella fazer as ressalvas.

Mas teve uma vez que Otto não se segurou. Era uma manhã de treino no Canindé e a voz de seu Otto saía forte do vestiário, como um pai que orienta seu filho para um futuro não muito brilhante.

— Enéas, tu és bonito, és artista? — perguntou seu Otto, com seu português cheio de "S".

— Não, seu Otto — respondeu Enéas com a voz baixa.

— Tu és loirinho, és filho de diretor?

— Não, seu Otto.

— Então, Enéas, tu tratas de treinar direitinho, porque senão sabe onde você vai parar?

— Não, seu Otto.

— Você conhece as fábricas de biscoito que temos aqui no bairro?

— Sei, seu Otto.

— Se tu não treinares direito, tu vais ser empacotador de biscoito, Enéas. Trates de treinar direito.

Todos os entrevistados garantem que Enéas era muito educado. Não respondia com má-criação, mas era um menino mimado. Tanto que, quando alguém o advertia, ele esperava que o técnico ou o diretor virassem de costas para mostrar a língua ou fazer chifrinho. Deve ter feito careta para seu Otto depois dessa advertência.

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Bacalhau, vinho e Enéas quase foi expulso por Otto

Enéas quase foi mandado embora do clube às vésperas de um jogo decisivo contra o Guarani pela Copa Laudo Natel por causa de um almoço regado a bacalhau e vinho. Quem conta a história é Wilsinho, cúmplice na ocasião.

"Na concentração ele me falou: 'A minha mãe está fazendo bacalhau, vamos almoçar lá em casa'. Eu respondi que ele estava doido, mas me convenceu. Chegamos na casa dele. Almoçamos e já íamos voltar quando ele resolveu que com um bacalhau daqueles era preciso tomar um vinho. Eu e ele tomamos uma garrafa. Quando voltamos às 14h, o porteiro disse para passar direto na sala do presidente. Nem bem entramos e o presidente (Oswaldo Teixeira) falou que não éramos mais atletas do clube. O presidente falava, nervoso, e o seu Otto só olhando".

Otto Glória, que foi técnico de Coluna e Eusébio, a Pantera de Moçambique, não sabia domar um menino do Canindé? Sabia. O treinador procurou os dois atletas logo depois. "Ele disse: 'Conversei com o presidente e o convenci de que vocês têm de jogar hoje. Seria uma traição com seus companheiros não jogar. Vocês erraram, mas não podem prejudicar o clube. E ele deixou vocês jogarem, mas amanhã eu não sei o que vai acontecer. Amanhã é outra coisa. Hoje vale a minha palavra'", conta Wilsinho.

Os fujões comeram a bola contra o Guarani, a Portuguesa ganhou de 4 a 0, conseguindo a classificação para a final do Torneio Laudo Natel. A punição foi esquecida. "Mas que o bacalhau estava gostoso... estava!", brinca Wilsinho.

Divulgação

Xaxá e o guarda-chuva que virou lança

Nem tudo foi alegria na passagem de Otto Glória pelo Canindé. O estádio era novo, o time brigava pelos títulos, as torcidas uniformizadas chegavam ao estádio tocando Jesus Cristo - grande sucesso da época — com sua banda afinada, mas nem sempre os jogadores escutavam aplausos ou palavras de incentivo.

Em um jogo, o ponta Xaxá tentava a jogada pela direita e, quando conseguiu passar pelo marcador, o bandeirinha marcou um impedimento. Um torcedor luso explodiu de raiva. Seu guarda-chuva virou uma lança, o qual foi arremessado para pegar o auxiliar. Mas caprichosamente atingiu a coxa de Xaxá. "O torcedor foi pedir desculpas no vestiário. Ele dizia: 'Ai Jesus, eu te machuquei Xaxazinho, me desculpa'... pedia desculpas e chorava", recorda o jogador.

No dia seguinte, logo na segunda-feira, Otto Glória pediu que seus amigos do Canindé, da turma da sueca (jogo de cartas), chamassem para sua sala o presidente dos "Leões da Fabulosa", a maior torcida lusitana. Vaiar o time vá lá, mas os corneteiros estavam indo longe demais.

"Chamei o presidente da torcida e contei a ele que tinha uma turma que estava prejudicando nosso time quando jogávamos no Canindé. Que jogavam radinho, guarda-chuva, xingavam muito e os jogadores não mereciam isso. Daquele dia em diante, ele postou um grupo de 'leões' em cada canto do campo onde eram cobrados os escanteios e nossos jogadores não foram mais atingidos por objetos, guarda-chuvas ou xingamentos. Eles faziam a segurança!", declarou Otto na época.

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