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Alpinista brasileira esbanja coragem, e drama do Nepal vira encantamento

Luiza Oliveira

Do UOL, em São Paulo

19/05/2015 06h01

Karina Oliani fez o que poucos fariam. Deixou a cama quentinha de sua casa para se arriscar na terra arrasada, ou o que sobrou dela, do Nepal. A mais jovem brasileira a chegar ao topo do Everest aceitou um desafio muito mais difícil e ao mesmo tempo recompensador: socorrer vítimas do terremoto no país asiático.

O terremoto do dia 25 de abril atingiu 7.8 na famosa escala Richter, mas superou qualquer medição de dor e sofrimento do povo nepalês. No total, mais de 8500 vidas se foram. Casas e sonhos foram destruídos na tragédia que teve ainda outro forte abalo no dia 12 de maio.

Karina chegou ao país no início do mês. Ajudou a curar as feridas e reconstruir um pouco desses sonhos. Além de atleta, ela é médica especializada em emergência de áreas remotas. Sua formação e seu preparo físico lhe reservam a satisfação e a responsabilidade de chegar aonde poucos chegam.

Na companhia de poucos colegas, ela teve a missão de escalar as montanhas do país para chegar às áreas atingidas mais longínquas. Em um único dia, subiu mais de 1500 m de altitude e caminhou por 9 h. Viu vilas de até 20 casas virarem um amontoado de entulho. Viu pessoas que perderam o lar e ganharam fraturas e ferimentos expostos e profundos.

“Em Katmandu (capital do país) eu vi muita destruição, casas rachadas, sinais claro de que havia passado um terremoto ali, mas era mais ou menos o que mostravam na TV. Mas quando cheguei às vilas nas montanhas é que eu vi o estrago, não tinha uma casinha em pé. Em Katmandu, eles constroem com cimento, um material mais adequado. Nas montanhas é com pedra, madeira, no terremoto foi tudo embora”, conta, sobre as cenas de destruição.

Nas costas, Karina precisava levar o máximo de instrumentos do kit médico que seu corpo aguentasse. O mochilão, com pouco espaço para objetos pessoais, era tomado por seringas, bisturis, talas imobilizadoras, fios de sutura, tesoura, seringas e muitos remédios como anestésicos, antibióticos orais e venosos, analgésicos, antitérmicos e anti-inflamatórios. Mesmo sem condições ideais, ela chegou a fazer pequenas cirurgias.

“As pessoas não tinham nenhum atendimento, fui vendo todo tipo de dificuldade, pessoa com fratura, perna quebrada, infectadas, pessoas doentes. O pouco que elas tinham estava soterrado embaixo dos escombros e eu as via tentado pegar uma comida ou uma blusa embaixo dos escombros, mesmo com tudo caindo aos pedaços. Em alguns momentos cheguei a ter que abrir campo, suturei, curei lesão infectada”.

Com tanto trabalho a fazer, Karina pouco se importou com a sua própria condição. Dormiu acampada em barracas, se contentou com pouca água para beber e sentiu centenas de tremores mesmo dias após o principal abalo.

“Quando eu estava lá, houve uns 600 tremores menores porque as placas tectônicas ainda estavam se ajeitando. Eu estava na barraca deitada no chão, e o chão inteiro tremeu, chacoalhou tudo. Eu mexia igual àquele brinquedo ‘samba’ do Parque de Diversões. Eu peguei terremoto de quase 6 na escala Richter. Mas eu senti medo mesmo quando estava no hotel, vi o concreto em cima de mim balançar, prestes a rachar. Deve ser terrível uma morte assim”, conta.

Mas nem isso assusta uma atleta que, além de ter chegado ao topo do Everest em 2013, tem currículo de fazer inveja a muito super-atleta. Ela já fez escalada em rocha, motocross, canoagem, rapel, surf, corridas de orientação, kitesurf, esqui aquático, esqui alpino, snowboard, montanhismo, asa-delta, paraquedismo e bungee jump e ainda é piloto de helicóptero. Karina gosta dessa vida com emoção e sabe o quanto o esporte a ajuda a exercer sua profissão de médica.

“Eu sempre fui movida a desafios e eu tiro muitas coisas do esporte. A questão da superação, determinação, trabalho em equipe, espírito de equipe, de não reclamar. Não gosto de reclamação, não resolve, não melhora, reclamar para que? Na montanha o desafio é viver com o mínimo, com o mínimo que você precisa em relação à comida, a tudo. Se você quer beber 5 L de água, mas não pode carregar, você vai beber três. (...) O medo todos nós temos, é natural saudável até. Eu sinto medo, mas todo mundo vai morrer um dia. Eu tenho muito mais medo de deixar de fazer o que acho certo”.

O esporte praticado ao longo dos 33 anos de idade recém-completados e dos 80 países que ela visitou virou ensinamento. A vida é difícil para todo mundo, mas tudo é uma questão de ponto de vista. Você pode ver o copo meio cheio ou meio vazio. E foi com esse pensamento que a tragédia no Nepal acabou se transformando em encantamento.

“Eu vi um lado muito feio da destruição e da perda. Por outro lado, no meio de tanta catástrofe, eu via as pessoas com um sorriso. A pessoa tinha um saco de arroz para dividir com a família inteira e me dava um prato cheio. Até na situação mais catastrófica, você vê força, resiliência, não se deixar abater. O mundo caiu na cabeça e eles tentam ter uma visão positiva, te tratam bem, não estão reclamando. Querem crescer com aquilo. Eu vi gente dizendo: ‘eu perdi minha casa, agora eu vou construir outra com dois cômodos para as minhas filhas’”.

“É por isso que eu amo o povo do Nepal. É uma troca sensacional, eu sinto muita alegria. Eu estou dando atendimento e alívio, mas eles estão me dado muito mais, estão me ensinando, me dando a alegria de poder exercer a medicina. Recebi mais do que do que fiz para eles, alegria muito absurda”.

A experiência após o terremoto se transformou em mais um indício da forte ligação que Karina sempre teve com o Nepal. Foi lá que ela escalou algumas das maiores montanhas de suas vidas e fez amigos para a vida em suas expedições.

Foi por isso que assim que soube do terremoto começou a correr atrás de colegas médicos no país asiático que precisavam de ajuda. Mobilizou os amigos, conseguiu as passagens por meio de uma permuta com a companhia aérea Swiss Airlines e dois dias depois já estava embarcando.

O resgate de pessoas acabou, mas a sua missão no Nepal ainda não. Karina está intensificando os treinos de altas montanhas para fazer uma expedição em uma montanha do Himalaia.

E ela quer voltar ao país para colocar em prática seu segundo projeto social. Depois de conseguir levar água encanada para duas vilas do Nepal, agora quer construir uma escola para oito crianças que ficaram órfãs no terremoto. Para isso, está fazendo campanha e dando palestras para arrecadar fundos que viabilizem a ação.

Não é à toa que seu lema de vida é um dos principais ensinamentos de Buda, que curiosamente nasceu naquele país. “Lei da ação e reação”, “Faça com os outros o que você quer que façam com você”, “faça o bem sem olhar a quem”, “ame o próximo como a ti mesmo” são algumas das expressões sinônimas que ela cita com frequência.

“Quanto mais me doo, mais eu recebo, mais coisas boas vêm para mim. Tudo o que você faz, volta, de bom ou de ruim.  A energia que a gente emana é a que volta para a gente. Acredito nisso totalmente”.