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Ana Marcela Cunha nadava com adultos e desviava do funil para não ser pega

 Ana Marcela Cunha (última à direita) e Edvaldo Valério (com a bandeira) após participarem da Travessia da Lagoa do Abaeté, em 2002 - Jair Rosário
Ana Marcela Cunha (última à direita) e Edvaldo Valério (com a bandeira) após participarem da Travessia da Lagoa do Abaeté, em 2002 Imagem: Jair Rosário

Roberto Salim

Colaboração para o UOL, em São Paulo

04/08/2021 13h54

Uma foto de 2002 desencadeou uma série de momentos emocionantes e correu pelas redes sociais nas últimas horas, principalmente no meio da natação brasileira: a menina Ana Marcela Cunha, com seus 9 anos, ao lado do irmão, e do grande Ed Bala, na Travessia da Lagoa do Abaeté - uma prova promovida na época por ambientalistas baianos.

"Foto histórica, porque nela estão dois nadadores do Nordeste, dois medalhistas, que nadavam pelo Clube Olímpico, que funcionava na Fonte Nova", orgulha-se o técnico Sérgio Silva, que já treinou a equipe nacional e há dois anos é um verdadeiro caçador de talentos, ocupando o cargo de diretor de maratonas aquáticas da Confederação Brasileira.

"Há 15 anos eu já previa que Ana Marcela seria a melhor nadadora de provas de fundo que este país já teve", conta Serjão, que durante anos teve um projeto na piscina da Fonte Nova.

"Ali nadavam as crianças baianas, que não tinham acesso às piscinas dos clubes ricos, onde não podiam entrar. E foi um crime o que fizeram quando reformaram a Fonte Nova para a Copa do Mundo e destruíram a piscina. Tínhamos cerca de 2.000 crianças no projeto".

Uma delas foi Ed Bala, o Edvaldo Valério. "Ele foi medalhista olímpico de bronze, com o revezamento 4x100m livre, nos Jogos Olímpicos de Sidney. Ali, ele pôs fim aquele tabu de que não havia nadadores negros no alto rendimento do Brasil, por conta da flutuabilidade não ser a ideal e das fibras dos atletas não serem propícias à natação. Na verdade, era questão mesmo do preconceito racial, já que as crianças negras raramente têm acesso às piscinas dos clubes", diz Sérgio Silva.

E quem também começou no Clube Olímpico foi Ana Marcela Cunha, que nesta terça-feira conquistou, em Tóquio, o ouro olímpico na maratona aquática.

"Ela era gordinha e não tinha muita velocidade para a piscina, mas se destacava nas provas de fundo. E, na Bahia, as maratonas aquáticas são tradicionais. Inclusive teve um ano em que foram disputadas 90 provas. E sempre que era possível, a Ana Marcela estava lá."

Acontece que, pela idade, oficialmente, Serjão diz que ela não poderia ser inscrita.

"Começou com sete, quase oito anos. Ela não estava inscrita na prova, mas lá vinha a Ana nadando e quando estava para chegar, ali no funil, ela desviava e completava a prova por fora. O pessoal do interior da Bahia adorava a Ana e a deixava competir sem qualquer problema."

Na Travessia da Lagoa do Abaeté, não houve esse problema.

Era uma prova para chamar a atenção pela preservação da Lagoa. Competição promovida por ambientalistas e então, a menina pode largar normalmente, passar pelo local onde estavam as lavadeiras e pode chegar com o grupo, sem disfarçar nada, passando pelo funil.

"Depois até posou para a foto que o Hildebrando, meu auxiliar na época, me mandou logo depois que a Ana Marcela ganhou a prova em Tóquio. Prova perfeita executada com muita garra. Prova de campeã. Como eu e o Baixinho [Luís Antônio Menezes] já tínhamos previsto lá atrás: a menina ia chegar longe."

Uma história gloriosa que começou em um clube de pobres. "Um clube de carentes", como define Serjão.