A solidão de quem precisa acertar um CD no alto de um prédio de 23 andares
Quando o arqueiro Marcus D'Almeida sentiu a corda pressionando a ponta do seu nariz, uma brisa leve de 4 metros por segundo soprava sobre o parque Yumenoshima, a atmosfera ideal para atirar com o arco. Seus dedos da mão direita puxavam a corda, que nesse momento exercia contra eles uma força equivalente a 27 quilos. A mão esquerda afastava o arco no sentido contrário, sem empunhá-lo, porque todo arqueiro sabe que empunhar o arco diminui a precisão do tiro.
Marcus manteve os dois olhos abertos, tentando fixá-los no círculo de 12,2 cm que estava no centro do alvo, a 70 metros de distância. O que ele se propunha era uma tarefa um tanto surreal. Se ele estivesse no térreo de um edifício, estaria tentando acertar uma flecha em um CD pendurado na sacada do 23º andar.
Em vez disso, ele estava em Tóquio, aos 23 anos, disputando as oitavas de final das Olimpíadas. Para ele tinha sido uma longa jornada desde Maricá, no Rio de Janeiro, onde mora e onde foi apresentado ao tiro com arco. Ele ainda era adolescente quando funcionários de um projeto social bateram na escola pública onde ele estudava e colocaram o primeiro arco e as primeiras flechas em suas mãos.
Agora aquelas mesmas mãos retesavam um arco bem diferente, todo de alumínio e carbono, antes do tiro mais importante da sua vida. Ele puxou mais um pouco a corda até ouvir um clique vindo da ponta da flecha.
E então abriu os dedos da mão direita.
Nesse momento, seu coração fazia 125 batimentos por minuto.
A flecha voou a 208 km/h, e o arco pendeu para frente como se fizesse uma reverência. O tiro com arco é um esporte solitário em que o atleta está o tempo todo lutando contra a natureza caótica do corpo humano. Tudo precisa encaixar no momento exato em que a flecha é liberada e corta o ar girando. Mas o ser humano não é exato. Uma respiração na hora errada, um micromovimento muscular involuntário ou um dedo mal posicionado podem causar resultados desastrosos.
A flecha de Marcus voou e parou fora do centro do alvo, garantindo ao arqueiro 9 pontos entre os 10 possíveis. Seu adversário do dia, o italiano Mauro Nespoli, também tinha conseguido 9 pontos em seu primeiro tiro. A disputa seria apertada. O brasileiro puxou mais uma flecha da bolsa que trazia pendurada na cintura. Durante os treinos em Maricá, ele chegava a atirar até 300 flechas por dia. Agora teria só mais oito para tentar chegar aonde nunca um brasileiro havia chegado antes.
O arco retesou mais uma vez, e a corda pressionou a ponta do seu nariz. Marcus ouviu o clique e soltou. A flecha saiu a 209 km/h.
Seu coração agora estava em 132 batimentos por minuto.
Em 1940, arqueólogos encontraram na Dinamarca fragmentos que indicam que o ser humano atira flechas com arcos há pelo menos 8 mil anos. A invenção da pólvora tornou obsoleto o uso do arco como arma de guerra, e a habilidade de manejá-lo virou primeiro uma atividade de lazer e depois um esporte.
Quando Ane Marcelle ficou sabendo que existia esse esporte, também através de um projeto social que foi à sua escola, ela achou que sairia por aí atirando como Katniss Everdeen, a protagonista da série de livros e filmes "Jogos Vorazes". Em vez disso, depois de anos de treinos solitários e repetitivos, nos quais é precisa ficar até seis horas de pé, parado, atirando em silêncio, ela descobriu que a flecha é disparada primeiro pela mente.
Companheira de Marcus D'Almeida na seleção, Ane foi eliminada do torneio olímpico pela coreana An San, que em Tóquio ganhou três medalhas de ouro. A Coreia do Sul é a pátria do tiro com arco, onde os arqueiros são patrocinados por multinacionais como a Hyundai e embolsam prêmios de até 200 mil dólares. E onde as crianças que começam no esporte costumam ficar até seis meses treinando apenas a postura corporal antes mesmo de disparar a primeira flecha.
O Brasil não tinha nenhuma relevância no cenário internacional até o surgimento de Marcus, que em 2014 começou a enfileirar medalhas e troféus em campeonatos de base até chegar nas Olimpíadas do Rio. Houve quem comentasse que ele poderia até surpreender e quem sabe chegar perto de uma medalha, mesmo tendo apenas 18 anos -em um esporte cujos campeões costumam ser mais velhos.
Em Tóquio, depois de vencer seus primeiros duelos contra europeus por 7 a 1, chegava às oitavas com grandes expectativas de se aproximar ainda mais dos primeiros lugares. Quem sabe o que poderia acontecer se ele atirasse as flechas da sua vida e os coreanos estivessem em um dia ruim?
Mas antes da final, ele precisava passar por um italiano. Mauro Nespoli, dez anos mais velho, tinha sido campeão olímpico em 2012 e chegava ao duelo como favorito. Ele cravou seu segundo tiro no centro do alvo, ganhou 10 pontos e fez pressão psicológica sobre o brasileiro. Marcus respondeu, também acertando no centro e empatando o combate, agora com sete flechas para o fim.
Quem vê de longe uma competição de tiro com arco, debaixo do sol forte e da brisa leve sobre o parque Yumenoshima, e ouve o locutor anunciando os pontos do duelo, pode achar que o esporte é definido pela posição em que flecha atinge o alvo. Qual a cor do círculo que ela acertou? Quantos pontos? Quantas flechas faltam?
Mas os arqueiros não atiram por isso. Marcus seguiu atirando mesmo quando começou a acertar no círculo dos 8 pontos e viu seu adversário acertando todas no 10. Seguiu atirando após perder o primeiro set, o segundo e ficar muito perto de perder o terceiro. Ele seguiu atirando, mesmo quando percebeu que não havia mais nada a ser feito e viu o sonho de chegar numa final olímpica se distanciando dele com a velocidade das flechas que ele disparava.
Marcus seguiu atirando e seguirá atirando, ele me disse depois da derrota, com os olhos vermelhos e o choro entalado, porque naqueles poucos segundos solitários antes da flecha voar é quando ele luta silenciosamente contra seus demônios interiores, contra os pensamentos que tentam atrapalhar o tiro, contra a parte da mente dele que tenta afastá-lo da perfeição.
O tiro com arco, todo arqueiro sabe, é um exercício de confiança extrema: apenas a execução metódica de cada passo leva ao resultado pretendido. Os arqueiros adoram sentir a expansão invisível do espaço antes do tiro e calcular o equilíbrio entre as forças opostas aplicadas no arco e na corda. Se pudessem, eles ficariam o dia inteiro atirando sem parar, repetindo os mesmos gestos em busca do tiro perfeito que a maioria deles nunca vai conseguir alcançar.
Marcus ainda não conseguiu, mas ele não vai parar de tentar.
E nessa busca ele está sozinho, tudo depende dele e de mais ninguém.
"Tá tudo aqui dentro", disse Marcus D'Almeida após ser eliminado das oitavas de final por 6 a 0, apontado para o próprio corpo, o arco e as flechas apoiados contra as pernas. "A flecha não sabe onde ela vai parar."
Só o arqueiro sabe.
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