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OPINIÃO

Biles e a geração mimimi: talvez eles tenham razão e nós, millennials, não

Simone Biles na ginal por equipes feminina da ginástica em Tóquio-2020 - Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images
Simone Biles na ginal por equipes feminina da ginástica em Tóquio-2020
Imagem: Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images

Felipe Pereira

Do UOL, em Tóquio (Japão)

29/07/2021 04h00

O esporte é maquiavélico. Vale a lógica de que os fins justificam os meios. E por meios entende-se submeter os atletas a toda e qualquer forma de sacrifício que renda milésimos de segundo a menos ou centímetros a mais. Na forja de um campeão olímpico, impera a lógica militar de hierarquia e disciplina. Atleta não tem vontade, baixa a cabeça e obedece.

Nesta semana, Simone Biles chutou para longe esta escrita. Maior ginasta da história e, sozinha, o maior nome dessa edição do Jogos Olímpicos, ela fez isso ao desistir de duas finais olímpicas da ginástica.

Naomi Osaka fez o mesmo nos meses que antecederam Tóquio-2020. Antes de acender a tocha na cerimônia de abertura, a tenista desistiu do glamouroso Roland Garros, em Paris, e do sacralizado Wimbledon, em Londres. Ela, é bom lembrar, era o maior nome do país anfitrião das Olimpíadas.

O motivo para as duas abrirem mão de eventos para os quais treinaram a carreira inteira foi a saúde mental. Ou a falta dela.

27.jul.2021 - Simone Biles se desequilibra em final olímpica por equipes - Jamie Squire/Getty Images - Jamie Squire/Getty Images
Simone Biles se desequilibra em final olímpica por equipes: foi o momento em que ela decidiu parar
Imagem: Jamie Squire/Getty Images
Naomi Osaka durante as Olimpíadas de Tóquio - David Ramos / Equipa - David Ramos / Equipa
Naomi Osaka durante as Olimpíadas de Tóquio: derrota para Marketa Vondrousova
Imagem: David Ramos / Equipa

Foram decisões pessoais e ninguém tem o direito de dizer o que ambas devem fazer da vida. Mas a atitude abre uma série de discussões e um rótulo chama atenção: elas são da geração Nutella e mimimi. Mas antes que você vá me cancelar só por causa dessas duas palavras, leia esse texto até o final.

De fato, as duas atletas são jovens. Biles tem 24 anos e Osaka, 23. Este texto é um convite a uma discussão importante: será que chamar de mimimi não é um choque entre o modo que a minha geração, a Millennial, vê o esporte com o jeito com que a geração Z encara o mundo?

Dificuldade de leitura

Quem nasceu da década de 1980 para trás embasa as críticas no fato de os jovens de hoje só terem a obrigação de estudar, não precisam trabalhar na adolescência ou cuidar da casa e de irmãos mais novos. Ainda que o número de trabalho ilegal antes da maioridade não seja desprezível, o IBGE apontou que 1,8 milhão de crianças ou adolescentes trabalharam em 2019, há menos jovens trabalhando atualmente.

Mas isto não significa que os nascidos de 1990 em diante não tenham problemas. Talvez, as dificuldades não sejam reconhecidas pelos mais velhos porque diferem das de seu tempo. A geração atual é a que mais teve acesso à sala de aula, ainda que a educação não seja ideal ou homogênea no Brasil. E esses jovens carregam muita expectativa alheia.

Ao dizer que a geração mais nova só precisa estudar, os mais velhos lançam pressão. Além disso, adultos projetam seus sonhos nos filhos. Os pais que enchem as crianças de presentes que não tiveram na infância estão saciando vontades suas. Afinal, todo excesso revela uma carência no sentido oposto.

O princípio se aplica à carreira dos filhos. Todo bebê que nasceu nos últimos 20 anos é visto por seus pais como futuros presidentes de empresas, cirurgiões cardíacos ou banqueiros. O adolescente que disser no almoço que se contentar em ser funcionário mediano estraga a refeição. É uma relação diferente daquela que nós, Millenials, vivíamos com nossos pais, Baby Boomers: para eles, o importante era encontrar uma carreira sólida, não necessariamente uma posição de liderança, que garantissem uma vida confortável, não necessariamente de luxo extremo.

Rayssa Leal comemora após manobra nas eliminatórias do skate nas Olimpíadas de Tóquio - TOBY MELVILLE/REUTERS - TOBY MELVILLE/REUTERS
Rayssa Leal comemora após manobra nas eliminatórias do skate nas Olimpíadas de Tóquio
Imagem: TOBY MELVILLE/REUTERS

Outro ponto. Os jovens têm uma enxurrada de informação disponível no momento em que moldam suas personalidades. É mais difícil montar um quebra-cabeças quando existem mais peças para encaixar. Para finalizar, reforço: fica mais difícil se sentir satisfeito quando as metas estipuladas por terceiros são muito altas. Ou, para ser mais preciso, quando o padrão é ser medalhista olímpico aos 13 anos, como Rayssa Leal, uma brasileira do interior do Maranhão, fez. A consequência é ansiedade e frustração.

O meme expectativa x realidade serve para vida, mas ninguém se dá conta que a expectativa é alheia.

Onde os fracos não têm vez

Falemos de esporte. Simone Biles e Naomi Osaka já decidiam seu futuro com 14 anos. Se uma tenista júnior sofre derrotas seguidas, fica fora do programa de treinamento de um clube ou da federação. Ela perde acesso a treinadores e viagens para competir. A seleção natural é precoce.

Trazendo a discussão para um terreno mais conhecido, o futebol. Hernanes deixou o São Paulo cheio de glórias. Mas quando ele era júnior do time, via um garoto que jogava no meio de campo chegar ao centro de treinamento do clube a cada semana. Ou seja, toda segunda-feira aparecia um moleque querendo o lugar dele. Hernanes só chegou ao profissional por derrubar todos eles, semana a semana. É mais ou menos como o BBB, um paredão por semana que define se a carreira que você sonhou vai se concretizar.

Eventos como as Olimpíadas mostram o lado bonito do esporte, mas há sujeira embaixo do tapete. Maior nome da ginástica rítmica do Brasil, Angélica Kvieczynski era pesada antes e depois de cada refeição. Era chamada de gorda e obesa se o peso aumentasse mais que 100 gramas. Água pesa bastante, e ela vivia desidratada. Bulimia e pensamentos suicidas logo apareceram.

Estas coisas acontecem porque na lógica do esporte de alto rendimento o atleta deixa de ser uma pessoa e se torna uma carcaça humana pertencente a uma comissão técnica. Estes profissionais vão moldar esta matéria-prima para uma atividade específica, seja saltar, correr ou nadar. Isto acontece numa fase em que a pessoa não tem idade para dirigir.

Na fase adulta, as expectativas são de milhares ou milhões de compatriotas. Gente que nas derrotas se sente no direito de entrar no Instagram, Twitter ou Facebook para atirar desaforos. Nada disso é falado.

Evolução humana estacionada

Apesar de tudo isto dito, a busca pelo impossível, a valorização da resiliência e o gosto pela competição não são negativos na essência. Não haveria aviões ligando o Brasil ao Japão sem ousadia. Mas os jovens querem a dobradinha ousadia e alegria.

O problema é que os atletas não fazem esta escolha por abnegação de forma consciente. Eles são validados por terceiros, mesmo que isto sufoque uma parte deles. Esta geração não vai aceitar esta lógica do esporte de alto rendimento.

É por isso que quando Simone Biles abandona uma disputa de medalha causa surpresa em nós, que vivemos um mundo que recompensa aqueles que engolem o choro e vão para o pódio chorando de dor por terem competido machucados. Mas quando Biles abandona uma disputa de medalhas porque não está conseguindo lidar com a pressão de todo o mundo sobre ela, cria uma conexão com eles, a geração que já começa a dominar o mundo, que entende que ser campeão sem ser feliz não é exatamente uma coisa legal.

Talvez uma porta de saída foi apresentada. Ainda na zona mista, um lugar que em atletas da Geração Z são obrigados a dar entrevista para jornalistas Millennials, Rayssa Leal contava que faz dancinhas na pista de skate porque quanto mais se diverte, mais seu skate flui. A lógica é contrária ao esporte tradicional. O engajamento dos jovens é muito maior. O skate é rebeldia, o skate é pelo rolê. Num mundo com acesso a tantos excessos, parece louco, mas se divertir virou contra a ordem.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL