O império contra-ataca

Primeira edição dos Jogos Olímpicos em Tóquio, em 1964, marcou o renascimento do Japão após inferno nuclear

Beatriz Cesarini Do UOL, em Tóquio Keystone/Hulton Archive/Getty Images

Se o mundo vê as Olimpíadas de Tóquio como um símbolo de esperança em meio à tragédia da pandemia do novo coronavírus, os japoneses tiveram um sentimento parecido há 57 anos. Só que bem mais intenso. A primeira vez que a capital do Japão recebeu as Olimpíadas marcou o renascimento de um país castigado por guerras, terremotos e pela explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.

Tóquio-1964, 19 anos depois do inferno nuclear que matou cerca de 200 mil pessoas e deixou sequeladas outras 2 milhões, foi o início de uma nova era no Japão, marcada por novidades tecnológicas. O Japão, o único país que tem um imperador como chefe de estado, se mostrou ao mundo como uma fênix renascendo das cinzas após os bombardeios da Segunda Guerra Mundial entre 1944 e 1945.

Yoshinori Sakai, conhecido como "bebê de Hiroshima", foi um dos maiores símbolos dessa retomada. Nascido em 6 de agosto de 1945, o dia em que a bomba atômica atingiu sua cidade, se tornou atleta na universidade e foi escolhido, aos 19 anos, para acender a pira olímpica dos Jogos. Tornou-se uma metáfora humana do "novo Japão".

Agora, na Tóquio-2020, adiada em um ano por causa da pandemia, os japoneses querem mais uma vez acender a pira da esperança. Apesar de o evento não ser unanimidade no país, governo e organizadores esperam que o esporte traga à tona, mais uma vez, sentimentos de superação, paz e união entre os povos, no momento em que o mundo enfrenta um dos maiores problemas sanitários da história.

Keystone/Hulton Archive/Getty Images
Bettmann/Bettmann Archive

19 anos depois, bebê de Hiroshima acende pira olímpica

Diante do Estádio Olímpico lotado na abertura dos Jogos, o velocista Yoshinori Sakai caminhou até a pira olímpica para oficializar o início do evento. O atleta que sobreviveu à tragédia nuclear mostrava ao mundo o novo momento do país.

Dezenove anos depois das bombas, Sakai surgiu forte e saudável —fato muito significativo para o Japão, que queria mostrar para o mundo um país recuperado e restaurado. O atleta, especialista no revezamento 4x100m, não competiu nas Olimpíadas daquele ano, mas seu papel histórico foi como uma medalha de ouro.

Quando se aposentou do atletismo, Sakai se tornou jornalista e produtor esportivo da emissora Fuji Television Network. Ele morreu em 11 de setembro de 2014, vítima de uma hemorragia cerebral, aos 69 anos. No próximo do dia 23, o mesmo Estádio Olímpico receberá a chama dos Jogos outra vez.

Sobrevivente da bomba atômica deu início às Olimpíadas de 1964

Shigeo Hayashi / Hiroshima Peace Memorial Museum/Reuters
Casas e edifícios destruídos após o bombardeio atômico de Hiroshima, no Japão, em 6 de agosto de 1945

EUA investem para ter Japão como aliado na Guerra Fria

Após se recuperar de um terremoto forte em 1923, o Japão sofreu os intensos bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial em 1944, que resultou na derrota do Eixo (Alemanha, Japão e Itália) para os Aliados (EUA, França, Inglaterra e União Soviética). Os lançamentos de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, representaram o fim do conflito.

Estima-se que tenham morrido 3 milhões de japoneses durante toda a guerra.

Em 1950, quando estourou a Guerra da Coreia, um conflito armado entre o norte do país, socialista, e o sul, capitalista, os Estados Unidos se instalaram na região para dar apoio aos sul-coreanos. Para ajudar nos esforços de guerra, os americanos investiram na reconstrução da indústria japonesa, que geraria insumos para os confrontos. De quebra, ganharam um aliado capitalista na disputa pela hegemonia mundial na Guerra Fria.

Gerson de Moraes, filósofo e historiador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que derrota na Segunda Guerra foi muito sentida pelos japoneses. "Os americanos começaram a olhar para o Japão com mais cuidado quando estourou a Guerra da Coreia. Os EUA se aliaram ao sul e houve investimento pesado no Japão para que a indústria conseguisse se reorganizar e se reaparelhar", explica.

Japão sai de derrotado à potência

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1945: destruição e humilhação

Junto com Alemanha e Itália, o Japão é derrotado na 2ª Guerra, após ser bombardeado com a principal arma de guerra da época: a bomba atômica. 200 mil pessoas morrem, a infraestrutura é destruída, e Tóquio é ocupada por tropas americanas.

Three Lions/Getty Images

1950: Guerra e oportunidade

Estoura a guerra entre Coreia do Sul e Coreia do Norte. O EUA lutam a favor dos sul-coreanos e investem na infraestrutura do Japão, que colabora com os esforços de guerra. Japão e EUA, antes inimigos, agora são aliados na Guerra Fria.

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1964: Olimpíadas e renascimento

Com apoio do Ocidente capitalista e esforço estatal, a economia japonesa renasce. O império estimula valores como esforço, disciplina, trabalho árduo e estudo intenso. Com 3 bilhões de dólares de investimento, as Olimpíadas mostram ao mundo um novo país.

Keystone/Hulton Archive/Getty Images Keystone/Hulton Archive/Getty Images

É uma nação que estava em desespero. Era um país empobrecido, com uma economia devastada. Dezenove anos depois, os japoneses conseguiram realizar um dos eventos globais mais logisticamente desafiadores que você pode fazer.

Roy Tomizawa, historiador e autor do livro "1964: The Greatest Year in the History of Japan", ao Japan Times

Novo Japão: alta tecnologia e trem bala

O Japão não só renasceu, como se tornou a nação que virou sinônimo de inovação tecnológica. O país asiático teve um crescimento econômico estrondoso entre 1950 e 1960 e construiu linhas de trem, rodovias e o famoso trem bala, além de um monotrilho no centro de Tóquio.

"Nunca a nação esteve mais alinhada, nunca esteve mais orgulhosa do que em 1964, erguendo-se dos escombros para embarcar no maior milagre econômico asiático do século 20. O único pensamento que a maioria dos japoneses teve foi de convencer o mundo de que o Japão era pacífico, amigável, produtivo, inovador e moderno —que pertencia à comunidade global tanto quanto qualquer outra nação", afirma o historiador Roy Tomizawa.

As Olimpíadas de 1964 também foi a primeira a ser transmitida ao vivo, via satélite, para Europa, América do Norte e, claro, Ásia.

Keystone/Hulton Archive/Getty Images
Brasileiro Wlamir Marques chuta durante partida contra a Finlândia nas Olimpíadas de 1964

Tóquio-1964: estreia de vôlei e judô

Esportivamente, as Olimpíadas de 1964 também foram marcantes. Foi em Tóquio-64 que o judô e o vôlei passaram a integrar o programa olímpico. Para os Estados Unidos, a edição representou uma virada no quadro de medalhas: depois de duas derrotas para a União Soviética nos Jogos anteriores, os norte-americanos voltaram à liderança da tabela com 36 ouros.

O Brasil enviou uma delegação de 68 atletas (67 homens e 1 mulher) de 11 modalidades: atletismo, basquete, boxe, futebol, hipismo saltos, judô, natação, pentatlo moderno, polo aquático, vela e vôlei. A única medalha conquistada foi um bronze da seleção masculina de basquete, composta por nomes como Amaury Passos, Wlamir Marques, Ubiratan, Rosa Branca, Edson Bispo e Edvar Simões.

No vôlei, a seleção tinha, entre os convocados, Carlos Arthur Nuzman, que depois se tornaria presidente do Comitê Olímpico Brasileiro. O time chegou em sétimo lugar.

Don Uhrbrock/Getty Images Don Uhrbrock/Getty Images

Esperança de dias melhores

Em 2021, pode-se dizer que o mundo está novamente em guerra, mas desta vez contra um inimigo comum: o coronavírus. As Olimpíadas foram adiadas na esperança de que, em 2021, a situação da pandemia estivesse mais controlada. Foi um longo período de incertezas. Parte da população japonesa ainda se mostra contrária à realização dos Jogos e segue pedindo o cancelamento do evento.

Depois de um aumento no número de casos do covid-19 em Tóquio, o governo decidiu proibir a entrada de público nos locais de competição. Será uma edição diferente de todas as outras. Mesmo assim, para muitos, será sinônimo de esperança por dias melhores.

Assim como em 1964, as Olimpíadas querem fazer aflorar o sentimento de união e força contra a pandemia. Os Jogos de Tóquio começam no dia 23 de julho.

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