Depois do eclipse

Primeira edição dos Jogos Olímpicos depois de Usain Bolt tem disputa aberta nos 100m rasos masculino

Demétrio Vecchioli Do UOL, em Tóquio Christian Petersen/Getty Images

O atletismo viveu os últimos três ciclos olímpicos sob um eclipse solar. Um fenômeno que deveria ser raro, mas que, para a sorte do esporte mais aguardado dos Jogos Olímpicos, durou 12 longos anos. Um incomum alinhamento entre o sol e a lua, que tira a luz dos mortais.

Não há historicamente, no atletismo, nenhuma prova tão importante quanto os 100 metros rasos masculinos. Por mais de uma década, coincidiu que o maior atleta do mundo fosse um especialista exatamente nesta distância. Por mais que se procure um novo Usain Bolt, ele não vai aparecer tão cedo. Ao menos não em Tóquio-2020, que terá a final dos 100m às 9h50 (de Brasília) deste domingo (1º).

Não que faltem estrelas para brilhar no centro do novíssimo Estádio Olímpico de Tóquio. É só que desta vez eles e elas estão espalhados pela galáxia de 46 provas do esporte que mais distribui medalhas nos Jogos Olímpicos. É também o que tem representantes de mais países e o que compõe a maior equipe da grande parte das delegações.

Em Tóquio, vale a pena ligar a televisão para assistir nomes como Armand Duplantis, Elaine Thompson, Karsten Warholm e Letesenbet Gidey. Nos 100m masculino, no entanto, não há ninguém que mereça atenção da mídia a cada passo, como foi em Pequim, em Londres e no Rio com Usain Bolt.

Nas bolsas de apostas, o mais cotado para ser campeão dos 100m é Trayvon Bromell, seguido de Ronnie Baker, ambos norte-americanos. Mas é improvável que haja um novo eclipse por agora. O raio não cai duas vezes no mesmo lugar.

Christian Petersen/Getty Images
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A prova mais nobre da Olimpíada

De todas as provas praticadas nos Jogos Olímpicos, nenhuma é tão fácil de praticar quanto os 100m rasos. Basta partir de um lugar e correr 100 metros em linha reta o mais rápido possível. É também a prova olímpica com a menor distância entre o melhor e o pior atleta. Em Tóquio, até aqui, menos de dois segundos separaram Andre de Grasse (CAN), o mais rápido da fase de classificação com 9s91, e Karalo Maibuca (TUV), o pior das preliminares com 11s42.

Isso torna os 100m rasos a prova mais universal dos Jogos. Ao todo, 65 nações participaram da competição, muitas delas com um convite especial, para países com nenhum ou pouquíssimos atletas classificados para vir ao Japão.

Tudo isso já justificaria toda a atenção dedicada pela mídia, ao longo dos anos, aos vencedores dessa prova, que passam a ostentar um rótulo específico. Força, velocidade, resistência, agilidade, raciocínio rápido, são características cobradas, em níveis diferentes, em diversas modalidades. Mas só os 100m rasos definem o "homem mais rápido do mundo".

Mais do que uma medalha, é um cinturão, e a lista de quem já o ostentou dá peso ainda maior a ele. A relação tem nomes como Jesse Owens, o norte-americano que em vida era tido como o esportista mais conhecido no mundo, que ganhou quatro ouros em Berlim-1936 (também nos 200m, 4x100m e salto em distância) e assim se tornou, sendo um homem negro, o grande nome das Olimpíadas justamente na terra da supremacia branca de Hitler.

O "atleta do século" passado também foi campeão olímpico dos 100m: o norte-americano Carl Lewis, ouro em 1984 e 1988 e dono de mais sete títulos olímpicos. Na lista de gigantes também entra Justin Gatlin, o último campeão antes de Bolt e, como o jamaicano, um dos dois únicos com três medalhas na distância. Concorrente de Bolt, porém, ele amargou uma prata e um bronze.

Quinn Rooney/Getty Images

Da cadeira de rodas ao favoritismo em Tóquio

Trayvon Bromell (EUA) saiu de cadeira de rodas do Estádio Olímpico do Rio (que depois voltou a ser chamado Nilton Santos) após romper o tendão de Aquiles na final do revezamento 4x100m. Por algum tempo, ele achou que aquela havia sido não apenas sua primeira e única Olimpíada, em que ficou em oitavo nos 100m, mas também a última prova de sua vida.

"Em 2018, eu não sentia nenhuma razão para continuar vivo. Entrei em um esporte que sentia que salvou minha vida e perdi tudo. Eu me senti como se estivesse na escuridão, como uma sombra para o mundo", disse ao site da World Athletics.

Entre a Rio-2016 e meados de 2019, Bromell disputou apenas uma prova, em 2017. Sua carreira parecia acabada, mas ele foi levantado por amigos e treinadores. Depois da parada por causa da pandemia, desde que as competições voltaram ele só perdeu uma vez. São 15 vitórias em 16 provas, em dez delas com tempos abaixo dos 10s.

Caso vença em Tóquio, ele já sabe o que fazer: quer espalhar uma mensagem de esperança e resiliência. "Estou motivado para algo maior do que apenas uma medalha. Há um propósito maior por trás de tudo isso. A mensagem vai sacudir o mundo. Meu maior diferencial é poder ser uma voz. Obviamente, se eu ganhar a medalha de ouro, isso vai me dar essa oportunidade."

Cliff Hawkins/Getty Images

EUA herda o favoritismo jamaicano

Conhecida pela capacidade de produzir velocistas, a Jamaica não conseguiu formar nenhum nome que apareça como favorito neste ciclo. Terceiro mais rápido da história, Yohan Blake está em Tóquio, mas desde 2018 não consegue correr abaixo de 9s95. Ele se classificou à semifinal apenas com o 14º melhor tempo (10s06), e não será surpresa se sequer chegar à final. Tyquendo Tracey correu apenas duas vezes na vida abaixo de 10s e já faz três anos, enquanto Seville Oblique parece ser um nome para a próxima Olimpíada.

Depois do predomínio jamaicano, agora são os Estados Unidos o time mais forte, com mais chances de ganhar o ouro. Além de Bromell, Ronnie Baker também é candidato ao ouro: venceu oito provas neste ano, incluindo duas etapas da Diamond League, mas terminou atrás do compatriota na seletiva norte-americana (foto).

Christian Coleman, campeão mundial no primeiro Mundial pós-Bolt, em 2019, estaria nesta lista se não tivesse sido suspenso por doping. Não foi o doping "clássico", com positivo para substância proibida, mas sim a própria ausência de testes. Por três ocasiões, em um ano, ele não foi encontrado no endereço indicado para realizar o exame antidoping.

Correndo por fora, a surpresa pode ser o sul-africano Akani Simbine, que neste ano registrou novo recorde continental (9s84), o segundo melhor tempo do ano na prova. Aos 27 anos, o quinto colocado na Rio-2016 pode ser o primeiro africano campeão em mais de 100 anos —o também sul-africano Reggie Walker venceu em Londres-1908.

Estrelas do atletismo estão em outras provas

Richard Heathcote/Getty Images Richard Heathcote/Getty Images
Michael Kappeler via Getty Images

Armand Duplantis

Nascido nos EUA, Duplantis escolheu disputar a modalidade do pai, o salto com vara, mas defender o país da mãe, a Suécia, que foi atleta do heptatlo. Ele é um talento precoce: estava ainda no ensino médio quando Thiago Braz venceu o ouro na Rio-2016, mas já era o melhor do mundo na sua idade, 16 anos. O fenômeno estourou no ano passado com dois recordes mundiais que eram de Sergey Bubka (indoor, 6,18m; e outdoor, 6,15m).

Entre as décadas de 1980 e 90, Bubka subiu o sarrafo do recorde mundial em quase 30cm para 6,14m, o que mudou o salto com vara para sempre. Desde então ninguém foi melhor que ele, até aparecer Duplantis. "Ele torna o atletismo mais atraente, chama muita atenção para o salto com vara. Realmente gosto e admiro o que ele está fazendo", elogia Bubka. A final do salto com vara é na noite de segunda-feira (2), no horário do Brasil.

Ulrik Pedersen/NurPhoto via Getty Images

Karsten Warholm

Também representando um país nórdico, a Noruega, Karsten Warholm chega à Tóquio-2020 como a estrela de uma prova que normalmente não estaria entre as mais badaladas: os 400m com barreiras, que ganhou visibilidade justamente por causa dele.

O norueguês bateu o recorde mundial há exatamente um mês (46.70s) e, assim como no caso de Duplantis, foi um recorde que simboliza novos tempos na modalidade. A marca anterior durava desde 1992 e era o mais longevo das provas de pista do atletismo masculino (46.78s, de Kevin Young, dos EUA).

Aos 25 anos, o norueguês disputa sua segunda Olimpíada após ter sido semifinalista no Rio. De lá para cá, conquistou dois títulos mundiais. Por tudo isso, é o favorito nos 400m com barreiras, prova em que o brasileiro Alison dos Santos é candidato ao pódio. A final é na madrugada desta terça-feira (3), no horário do Brasil.

Shaun Botterill/Getty Images

Elaine Thompson

Elaine Thompson já está nas manchetes. Aos 29 anos, ela venceu hoje (31) a prova feminina dos 100m e se tornou bicampeã olímpica de forma improvável. Todas as apostas eram na vitória da também jamaicana Shelly-Ann Fraser-Pryce, que vinha de resultados incríveis e poderia ser a primeira mulher tricampeã olímpica do atletismo na mesma prova.

Na pista, porém, quem levou a melhor foi Thompson: novo recorde olímpico (10.61s) e segunda melhor marca da história, deixando para trás justamente Shelly-Ann, que ficou com a prata. Elaine Thompson agora tem três ouros olímpicos (venceu os 100m e os 200m no Rio, onde ainda foi prata no revezamento). Em Tóquio, ela ainda disputa os 200m.

Por falar em Shelly-Ann, este especial originalmente previa ela como uma das estrelas dos Jogos. Por enquanto, não é. Mas fica a lição: as estrelas são definidas na pista, e não há como prever o que vai acontecer lá.

Eric Gaillard/Pool via Getty Images

Letesenbet Gidey

Aos 4 anos, ela foi expulsa da escola em que estudava, em uma área rural da Etiópia, pois não gostava das aulas de educação física em que era estimulada a correr. Só foi aceita de volta quando ela e os pais se comprometeram que não iria mais faltar.

A contragosto, Gidey aprendeu a correr e com o tempo se tornou uma das melhores fundistas de todos os tempos. Exatamente uma especialidade da Etiópia. Foi prata no Mundial de 2019, aos 21 anos, depois de ser bicampeã mundial júnior de cross-country.

Em outubro do ano passado, quebrou seu primeiro recorde mundial, nos 5.000m. Em junho desse ano, registrou a melhor marca da história dos 10.000m, superando um recorde que havia sido quebrado dois dias antes por Sifan Hassan, uma etíope que compete pela Holanda. Por estratégia, Gidey não corre os 5.000m em Tóquio; prefere focar nos 10.000m e tentar medalha às 8h30 do sábado (7).

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