Treinador de campeões

Oleg Ostapenko transformou pouco expressiva ginástica brasileira em referência internacional

Amanda Romanelli e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Flávio Florido/Folhapress

O ex-técnico da seleção brasileira de ginástica Oleg Ostapenko morreu neste sábado (3), por complicações pulmonares e renais. Ele estava internado desde maio, em Kiev, na Ucrânia, onde nasceu, cresceu e se formou ginasta. Apesar da distância física e cultural entre o país e o Brasil, Oleg tinha coração brasileirinho, fruto de um vínculo que começou em 2001.

Por meio de uma exigência gentil, criou uma relação paternal com as ginastas da seleção brasileira permanente entre 2001 a 2008. Foi ele, ainda, o responsável pela ascensão histórica de Daiane dos Santos, primeira brasileira campeã mundial de ginástica e quem transformou um movimento de nome estranho e pouco natural como o duplo twist carpado em um bem nacional "Dos Santos".

Mas como um ucraniano chegou para revolucionar a ginástica brasileira? A vinda do famoso técnico ucraniano para o Brasil não foi facilmente negociada. Foi por meio de sua mulher, a coreógrafa Nádia Ostapenko, que a coordenadora de ginástica da seleção conseguiu convencê-lo a treinar a equipe brasileira —Eliane Martins relembra a história nesta reportagem, que homenageia quem tanto fez pelo esporte por aqui.

O treinador era discreto, "gentleman como poucos" e apaixonado por ginástica. Respirava o esporte 24 horas por dia, sete dias por semana. Entre as principais pupilas, Daiane dos Santos e Laís Souza, promovia uma competição saudável, que levou o Brasil à quinta posição no ranking mundial de ginástica.

Oleg deixa, ao Brasil, um legado de mestre.

Flávio Florido/Folhapress

Chegada ao Brasil

Oleg Ostapenko chegou ao Brasil em 2001. Na época, o país não tinha ginásios nem aparelhos comparáveis ao restante do mundo. A Confederação Brasileira de Ginástica sobrevivia do dinheiro arrecadado com as taxas de inscrição nos campeonatos nacionais. Ainda assim, o país entrou no radar da ginástica artística quando Daniele Hypólito conquistou a medalha de prata no solo no Mundial de Ghent. Era a primeira vez que o Brasil ia tão longe.

Coordenadora técnica da seleção brasileira à época, Eliane Martins relembra a estratégia para trazer o renomado técnico ucraniano. "Ele não queria sair da Ucrânia de jeito nenhum".

A técnica Iryna Ilyashenko, que já trabalhava com ela no Brasil, pensou em uma solução: trazer, primeiro, Nádia Ostapenko, mulher de Oleg, para cuidar das coreografias da equipe. "Ela me disse: 'Se ela vier, quem sabe não convence o Oleg a vir também?'. Topei. A Nadia veio em 1999, ficou seis meses e convenceu o marido a vir. Em 2001, ele chegou e começamos com a seleção permanente", conta.

Sem recursos próprios, os salários de Oleg e Nádia foram pagos pelo Comitê Olímpico Internacional, em um programa chamado Solidariedade Olímpica, destinado ao desenvolvimento da estrutura esportiva dos países. Foi com o dinheiro do COI e com uma "conspiração" feminina que o Brasil venceu uma briga com Estados Unidos, Austrália e Grécia, e garantiu Oleg até o fim dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008.

Eduardo Knapp/Folhapress/Eduardo Knapp/Folhapress
Técnico Oleg Ostapenko consola Jade Barbosa, que chora após ficar em quarto lugar no Pan do Rio em 2007

Um grande mestre

Em entrevista ao UOL Esporte, Iryna Ilyashenko se emociona ao falar da partida do amigo de longa data. "A gente perdeu um grande mestre", diz.

"Foram momentos históricos ao lado de Oleg. Ele se tornou um mestre para a ginástica brasileira. Trabalhar com ele não era fácil: ele não suportava perder, e exigia da gente, equipe técnica, o mesmo comprometimento e dedicação que ele tinha. Era muito, muito exigente", conta.

Quando Oleg chegou, conta Iryna, a ginástica brasileira não tinha tradição. Sem potencial olímpico, a seleção precisava encarar adversárias que nasceram no berço da ginástica, como as atletas russas. "A gente se dedicou tanto, mas tanto, que se classificou para o mundial e para as Olimpíadas de Atenas. Quando a gente conseguiu essa classificação, ele me disse que nunca havia trabalhado com uma equipe técnica tão dedicada como a nossa", relembra.

Logo, o time passou a contar com Daiane dos Santos e Laís Souza, destaques supremos da ginástica brasileira que se tornaram pupilas de Oleg. Entre elas, o treinador estimulava uma competição saudável, como lembra a então coordenadora técnica da equipe, Eliane Martins. Ela conta:

Um dia, ele chamou a Daiane e disse: 'Dos Santos, venha aqui. Vamos fazer um duplo twist estendido'. Ela respondeu: 'Tá louco? Nunca vou conseguir'. Então, ele disse: 'Oleg, muito burro, muito burro. Como foi capaz de pensar que Dos Santos seria capaz de fazer isso. Quem consegue fazer é Souza, vou ensinar para ela'. Então, a Daiane ficou instigada: 'Não, Oleg, eu posso tentar'. E ele insistiu que ensinaria apenas para a Laís. Era uma disputa saudável, e sempre muito educada."

Iryna afirma que a seleção permanente brasileira foi a primeira equipe que aceitou a forma rígida de trabalho do treinador. "Era o jeito dele. Não demonstrava amor abraçando e beijando, mas era nítido o amor que ele tinha pelas meninas. Era uma relação de pai, mesmo, de cobrança e amor.

Segundo a treinadora, as técnicas que utiliza com a equipe, hoje, têm muito dos ensinamentos de Oleg: "Sigo o caminho que ele deu, cada dica que ouvi está na minha memória. Ele não suportava que as ginastas andassem, dizia que elas precisavam ser enérgicas. Uma palavra que a gente ouvia sempre da boca dele era 'rápido, rápido'. Inclusive, é algo que eu absorvi e reproduzo. Para mim, não tem melhor que ele: em didática, estratégia e em tudo. Oleg preparava ginastas excepcionais com elementos novos".

REUTERS/Sergio Moraes
Daiane dos Santos era a queridinha de Oleg Ostapenko

Com Daia, aprendeu a abraçar

Daiane dos Santos começou na ginástica com 11 anos, idade avançada para a modalidade. Menos de uma década depois, com 20 anos, tornou-se a primeira campeã mundial do Brasil, ao conquistar o ouro em Anaheim. Era 2003, e Oleg Ostapenko estava à frente da seleção permanente da ginástica artística feminina.

Daiane deixou Porto Alegre rumo a Curitiba no fim de 2001. Foi morar em uma cidade diferente, com várias outras ginastas de todos os lugares do Brasil. Um modelo liderado por Oleg que, para ela, rende frutos até hoje. "Foi um trabalho muito bem executado. Ali, a gente viu nascer uma ginástica híbrida, uma mistura da ginástica ucraniana, da escola soviética, com a brasileira." Além de Daiane, passaram por lá Daniele Hypolito, Laís Souza e Jade Barbosa, entre outras.

Inicialmente contratado para o ciclo de Atenas-2004, Oleg permaneceu outros quatro anos no Brasil graças a um histórico resultado. Pela primeira vez, o Brasil levou uma equipe completa aos Jogos e Daiane foi 5ª no solo —apesar de ter chegado como favorita ao ouro, ainda assim era a melhor colocação da história até aquele momento. Em Atenas, Daiane consagrou o "Brasileirinho" e executou, de forma inédita, o duplo twist carpado, uma criação de Oleg.

E, se as brasileiras foram a outros patamares na ginástica, o ucraniano também foi além. Daiane brincava que, aqui, o treinador aprendeu a abraçar. "O Oleg sempre foi uma personalidade no mundo da ginástica, mas foi aqui que ele se sentiu tão amado, tão querido. Ele e a Nádia aprenderam a ser mais leves, foi uma troca muito rica", conta Daiane, chamada de "Daia" pelo ex-treinador.

Foi muito doloroso quando ele foi embora, porque eu não podia mais sair de São Paulo e ir até Curitiba para vê-lo. Porque ele já tinha problemas de coração, e sempre que acontecia alguma coisa, a gente corria lá. O medo também era disso, sabe? O quanto essa distância iria nos separar. Mas sabe o que eu vejo? Que não vai separar nunca, porque a gente está ligado pelo coração".

Daiane dos Santos

André Sarmento/Folhapress
Oleg Ostapenko promovia competição saudável entre Daiane e Laís Souza

Revolução na ginástica

A coordenadora técnica da seleção brasileira Eliane Martins descreve o amigo como uma pessoa "muito especial, que conhecia a psicologia feminina como ninguém". Oleg, ela conta, tirava das meninas o máximo que elas podiam dar. "Antes dele, nossos resultados eram ridículos. No ranking mundial, a gente procurava o Brasil de trás para frente", diz. O país deixou a 20ª posição e chegou ao quinto lugar no ranking em 2007.

"Tudo que a gente faz hoje na ginástica artística brasileira é legado dele. Foi o cara que botou a ginástica feminina na boca do povo. Todo mundo conhecia e falava do duplo twist carpado Daiane dos Santos".

Oleg implantou um sistema de competição modelo, que simulava competições oficiais. Eliane relembra que ele fazia tudo igualzinho acontecia em eventos de verdade —até o tempo de espera que fazia o corpo das atletas esfriarem ele imitava.

"Eu estava apressada na primeira competição modelo que ele fez, querendo que começasse logo, porque as ginastas já haviam aquecido. E ele me dizia: 'Eliane, calma, Eliane. Não pode sair correndo porque, na competição, não é assim'. São coisas óbvias que só se tornam óbvias quando ele fala, sabe?".

Um gentleman

De acordo com a coordenadora, a gentileza de Oleg se misturava com a rigidez. Rígido, sim. Mas nunca grosseiro. Com as mulheres, especialmente, havia educação e cuidado ímpares, segundo ela.

Daiane dos Santos era atleta do Grêmio Náutico União, treinada por Adriana Alves. Na seleção olímpica, a treinadora dividia a tutela da atleta com Oleg, que sempre respeitou o espaço da colega. Eliane relembra que, no mundial de 2003, quando Daiane foi subir para o ginásio para competir, Oleg disse: "Adri, vai você". E, em vez dele, quem acompanhou a atleta na prova foi Adriana.

"Ele ficou assistindo no andar de baixo, pela televisão. Ele sabia que tudo o que tinha que fazer para preparar a Daiane, já tinha feito. Ela não precisava mais dele, e ele não fazia questão de aparecer. Quem aparece pulando e comemorando é a Adriana, porque ele sabia que era importante para ela estar ali. Ele não ligava, não queria ser reconhecido. Sabia o que tinha feito e era suficiente. Quando a prova acabou e a Daiane saiu do pódio, a primeira coisa que ela fez foi correr para abraçá-lo."

Eliane conta que a gentileza de Oleg se dava até na hora de escolher as atletas para a seleção permanente. "Ele era 'o cara', e vinha até mim para perguntar se eu concordava com a escolha das meninas. Era muita gentileza. Eu sempre concordava, é claro, mas achava muito legal que ele fazia questão de me incluir nessa decisão".

Theo Marques/Folhapress
Oleg Ostapenko comanda treino da seleção brasileira no Cegin

O retorno

Ao fim dos Jogos de Pequim, em 2008, Oleg e Nádia Ostapenko deixaram o país. Assim como havia acontecido em Atenas, a seleção feminina conquistou a classificação por equipes. Mas, daquela vez, foi à final e alcançou a 8ª posição. Um ano antes, Jade Barbosa havia ganhado o bronze no individual geral do Mundial de Stuttgart.

Era o fim de um trabalho revolucionário. O comando da Confederação Brasileira de Ginástica mudara, a seleção permanente foi desfeita. O centro de treinamento montado em Curitiba virou sede de um clube, o Cegin, que manteve a técnica Iryna Ilyashenko. A ginástica feminina passou por uma entressafra no ciclo para Londres-2012, quando viu o time masculino alcançar o pódio olímpico, com o ouro de Arthur Zanetti.

Oleg saiu do Brasil rumo à Rússia, para comandar a seleção juvenil. Mas a distância de Curitiba durou apenas três anos. Com o suporte de um grupo de empresas via Lei de Incentivo ao Esporte, o Cegin repatriou a dupla ucraniana. Em 2011, Oleg voltou ao Brasil para ajudar na detecção e desenvolvimento de talentos em Curitiba. Desse trabalho, foi revelada Lorrane Oliveira, que disputou a Olimpíada do Rio. Ela também é dona do Oliveira, elemento que, curiosamente, é uma evolução do duplo twist carpado de Daiane.

A segunda passagem de Oleg pelo Brasil foi encerrada em 2015, meses antes da Olimpíada, de forma melancólica. O Cegin não conseguiu captar recursos suficientes para manter o treinador. Oleg e Nádia voltaram para a Ucrânia.

"Ele me disse: 'Daia, eu amo o Brasil, mas não consigo ficar", conta Daiane dos Santos, sobre a saída do treinador. "E eu entendi, porque também sou uma profissional. Só acho que a gente aproveitou muito pouco dele aqui. Da sabedoria que ele adquiriu durante tantos anos, pelo mundo. Quando ele foi embora, era isso que a gente estava perdendo", diz Daiane.

Vignola, Ayrton/TBA/FOLHA DE S.PAULO
Oleg e Nádia em treino com Laís Souza

Legião de títulos

Ao deixar o Brasil pela segunda vez, Oleg voltou a trabalhar com a ginástica de seu país. Foi o chefe da comissão técnica da Ucrânia que disputou o Mundial de Stuttgart, em 2019. Uma de suas comandadas, Diana Varinska, de 20 anos, estará nas Olimpíadas de Tóquio.

A exigência no treinamento se converteu em respeito e carinho das ex-comandadas. Foram muitas, e muito vitoriosas. Na Olimpíada de Barcelona-1992, duas atletas ucranianas, formadas por Oleg, ajudaram a Equipe Unificada (formada pela ex-repúblicas soviéticas) a garantir o ouro por equipes. Tatyana Lysenko e Tatyana Gutsu também conquistaram medalhas em todos os outros aparelhos da disputa feminina.

Nos Jogos de Atlanta, em 1996, outra ex-pupila de Oleg brilhou. Defendendo a Ucrânia já como nação independente, Lilia Podkopayeva conquistou o ouro no individual geral e no solo, além da prata na trave. Antes, em 1994 e 1995, havia conquistado cinco medalhas em Mundiais.

A ex-ginasta Iryna Bulakhova, que foi companheira de Podkopayeva no Mundial de 1994, foi a responsável por criar a vaquinha virtual para ajudar no tratamento médico de Oleg. Seu objetivo era arrecadar US$ 20 mil —conseguiu chegar a pouco mais de US$ 14 mil. Em entrevista ao UOL Esporte, disse que mantinha contato direto com Yuniana, uma das filhas do ex-treinador, e informou, três dias antes da morte de Oleg, que ele estava em estado crítico: em coma, respirava com ajuda de aparelhos.

Oleg é um talento de Deus. É impossível acreditar no que ele fez com a ginástica brasileira. É um treinador de campeões".

Iryna Ilyashenko, técnica da seleção brasileira de ginástica artística

Eu não teria ido tão longe se não fosse por ele, que me ensinou a ser destemida, dentro e fora do ginásio. Oleg foi uma pessoa incrível."

Iryna Bulakhova, ex-ginasta e criadora da vaquinha para arrecadar fundos para o tratamento de Oleg

Ele não foi apenas o treinador que me levou ao pódio em Atlanta, mas também um segundo pai. Oleg, serei eternamente grata por tudo o que fez por mim."

Lilia Podkopayeva, ex-ginasta bicampeã olímpica e bicampeã mundial pela Ucrânia

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