Parado no tempo

O que explica o pior resultado da história do vôlei de praia do Brasil em Olimpíadas

Demétrio Vecchioli Do UOL, em Tóquio Elsa/Getty Images

Não existe mais bobo no vôlei de praia. E, além disso, não existe mais no Brasil a capacidade de atrair jovens talentos para a modalidade. A soma desses dois fatores é não apenas o pior resultado da história do vôlei de praia brasileiro, que não conquistou nenhuma medalha nos Jogos Olímpicos de Tóquio, mas também o indicativo de que, nos próximos anos, as coisas vão piorar ainda mais.

O futuro do vôlei de praia brasileiro foi colocado em xeque por Alison Mamute em entrevista depois da derrota da dupla com Álvaro Filho para Plavins e Tocs, da Letônia, nesta quarta-feira (4), nas quartas de final em Tóquio. "O Brasil ganhou a medalha de ouro em 2016 e não mudou nada, sem nenhum investimento. O circuito continuou o mesmo, tudo paralisado, com menos etapas", reclamou.

A fala foi a faísca que faltava para colocar a comunidade do vôlei de praia brasileiro em ebulição. Pela primeira vez, os problemas da modalidade foram expostos em rede nacional, para além da bolha formada por jogadores e comissões técnicas.

Falta um calendário de eventos que permita aos atletas jovens se manterem no esporte. Falta prospecção de talentos. Falta um plano nacional para sair desse buraco. Enquanto isso, os rivais estão investindo milhões em uma modalidade que lota arquibancadas, está nas TVs do mundo todo e que, por isso, já não é mais exclusiva de brasileiros e americanos.

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Estrutura do vôlei de quadra atrai mais promessas

"Não existe um pensamento na Confederação, nada. Só mesmo a exploração das medalhas de ouro que o Brasil tem. A CBV deveria desistir do vôlei de praia. Também acho que os atletas não falam. A Confederação vai lá, patrocina meia dúzia deles, sempre os melhores, que são os que têm visibilidade. Eles se calam, porque são patrocinados pela CBV e pelo Banco do Brasil, e continua sempre a mesma coisa", desabafa Jackie Silva, campeã olímpica em Atlanta-1996 —ironicamente, a CEO da CBV é Adriana Behar, dona de duas medalhas de prata na praia.

Um dos pontos levantados por Alison, 35 anos, o tamanho do circuito nacional, é o centro do problema. Jackie explica: "O pessoal da base, que não tem dinheiro, tem que pagar para jogar: viagem, alimentação, hospedagem. Aí tem que participar do qualifying. Mas é eliminação simples. Perdeu, volta para casa. Esse torneio é o que faz com que o atleta se interesse, com que ele cresça, e não é possível que o atleta faça tudo isso que faz para chegar no torneio e ir embora", diz.

O modelo torna o vôlei de praia pouco atrativo para quem está começando. Todos os jogadores do masculino que foram a Toquio-2020, por exemplo, tinham 30 anos ou mais — Alison tem 35, Álvaro, 30, Bruno, 34, e Evandro, 31. Rico Freitas, filho do lendário Bebeto de Freitas e técnico medalhista de prata na Rio-2016, dá um exemplo:

"Imagina que você é uma menina de 18 anos e 1,90m, mas nem tão boa para a quadra. Mas você pode jogar vôlei de quadra em um clube de Santa Catarina ou de São Paulo, ganhar R$ 2,5 mil, receber alojamento, alimentação... Se precisar, manda R$ 1,5 mil para a família e ainda sobra R$ 1 mil para comprar as coisas dela. Por que essa menina vai escolher o vôlei de praia?", questiona. No feminino, Agatha tem 38 anos, Rebecca, 28, e Ana Patrícia e Duda, 23.

Ainda que debaixo do mesmo guarda-chuva, que é a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), as duas modalidades são concorrentes na atração de talentos. E o vôlei de quadra acaba tendo prioridade, pois oferece não só mais dinheiro, mas também mais segurança para quem está começando. Não é à toa que o Brasil tem apenas uma jogadora de vôlei de praia com mais de 1,90m de altura (Ana Patrícia), enquanto a dupla suíça que eliminou ela e Rebeca tem duas.

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Vôlei "de praia" só no nome

Das oito duplas que ainda tentam medalha em Tóquio, entre masculino e feminino, cinco são da Europa, de países acostumados a invernos bem mais longos do que os verões, como Rússia e Letônia. Nações que não têm a cultura da praia, o que na prática não faz mais diferença: até a areia dos Jogos de Tóquio, por exemplo, veio de Taiwan. Nem praia é mais necessária no esporte.

"Os europeus sempre tiveram grandes atletas, enquanto brasileiros e americanos sempre foram incríveis jogadores", compara Rico, usando "atletas" para descrever o potencial físico e "jogadores" para tratar do potencial técnico. "Os que eram apenas excelentes atletas são agora excelentes jogadores também. Isso se deve a maior investimento, mais estruturas de treinamento", continua.

O vôlei de praia deixou de ser algo cultural, fomentado por redes montadas em praias do Brasil, da Flórida e da Califórnia, para ser um esporte global. Tanto que as demais duplas nas semifinais são do Qatar, dos Estados Unidos e da Austrália.

"Os outros países evoluíram muito. Estão contratando técnicos de vários países, não treinam mais só em um lugar. Antes, eles treinavam em seus países e, quando chegava o inverno, iam jogar indoor. Agora, todo país tem seu centro de treinamento fechado, com aquecimento. Muito estudo, muita informação, muito investimento, muito dinheiro", analisa Márcio Araújo, prata em Pequim-2008.

Ele conta que boa parte dos times europeus passa o inverno em Tenerife, na Espanha, onde treinam na época mais fria do ano e fazem intercâmbio. A localização geográfica, aliás, já não favorece mais o Brasil, porque os principais eventos do circuito mundial são na Europa, o que torna mais fácil e barata a participação de uma dupla europeia do que a de uma brasileira.

Wander Roberto/COB

Brasil é dependente dos talentos excepcionais

Internacionalmente, também atrapalha a existência do chamado country cota, que é um limite de quatro duplas por país em uma mesma etapa do Circuito Mundial. As três melhores duplas do Brasil, que têm apoio da CBV, costumam entrar direto na chave principal. Outros times do país que quiserem tentar jogar precisam disputar a quarta vaga entre si, já no local da competição, correndo risco de voltar para casa no prejuízo, com um único jogo e derrota na bagagem.

Sem dinheiro e sem rodagem no Brasil porque o circuito nacional tem apenas oito etapas (e não mais 24, como já foi), as duplas mais jovens não se arriscam a ir à Europa. Não fazem intercâmbio, não ganham rodagem contra os melhores do mundo. Rico dá como exemplo a alemã Laura Ludwing, que venceu a final olímpica de 2016 contra Ágatha e Bárbara, treinadas por ele, e que eliminou Ágatha e Duda em Tóquio.

"A Laura jogou vários mundiais de categoria contra a Bárbara, e a Bárbara ganhou todos da Laura. Mas a Alemanha já investia para ela ir jogar os torneios menores da Europa; como a Bárbara investiria para jogar internacionalmente? No Rio, a Laura já estava na terceira Olimpíada, enquanto a Bárbara jogava a primeira. O Brasil foi entrando nessa roda. Ninguém quer investir, aí não surgem novos atletas para jogar campeonatos adultos. O resultado é que a gente não vai ter mais atletas, vai ficar dependendo de nascer uma nova Duda, uma nova Ana Patrícia", diz Rico.

Duda (foto) é tida como a melhor jogadora do mundo hoje e como potencial melhor brasileira da história. Ao menos nunca houve alguém do nível dela com a idade que ela tem hoje: 23 anos. Jogando ao lado de Ágatha, Duda era favorita ao ouro em Tóquio, mas caiu diante da dupla da Alemanha.

Sean M. Haffey/Getty Images

Estrangeiros aprenderam com o Brasil e agora passaram à frente

Rico está em Tóquio como técnico de uma dupla do Canadá que caiu nas quartas de final. Não só ele. A Letônia também tem um técnico brasileiro, que trabalha com Tina Graudina na Universidade do Sul da Califórnia —a jogadora é um dos destaques da NCAA, liga universitária dos Estados Unidos que tem mais de mil atletas.

Dois brasileiros também foram importantes para a chegada do Qatar ao alto rendimento: Jefferson Pereira e Julio Nascimento foram inicialmente contratados para jogar pelo país e formarem duplas com atletas mais novos, que aprenderam com eles. Agora, esses dois jogadores, Cherif Younousse (nascido no Senegal) e Ahmed Tijan (nascido na Gâmbia), são semifinalistas da Tóquio-2020 (ambos na foto).

Franco Neto, um dos primeiros ídolos do vôlei de praia do Brasil e hoje presidente da federação estadual do Rio, pede uma discussão ampla sobre o futuro. "A gente precisa traçar um plano de gestão para rever o vôlei de praia. É preciso sentar, as entidades, a nacional com as estaduais, técnicos, atletas, e fazer alguma coisa diferente. Loucura é querer um resultado diferente se fazemos sempre igual", alerta.

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