Olimpíadas da Era Moderna

Depois de 125 anos, jogos idealizados por Pierre de Coubertin finalmente parecem ter se aberto para o futuro

Jamil Chade Colunista do UOL, em Genebra (Suíça) Sam Robles/CBF

Nos arquivos guardados como verdadeiro tesouro na sede do COI, na Suíça, os escritos do Barão Pierre de Coubertin são considerados como documentos que fundam o movimento olímpico. Mas basta percorrer as páginas escritas à mão para descobrir que ele não deixava espaço para dúvidas: não haveria motivo para incluir as mulheres nos Jogos, salvo para aplaudir na entrega dos prêmios aos homens.

Para o pai das Olimpíadas da Era Moderna, o movimento que ele criou deveria focar exclusivamente em promover os Jogos e apostar na "única exaltação do atletismo masculino, baseado no internacionalismo, com base na justiça e no cenário artístico, com os aplausos das mulheres como único prêmio".

Coubertin chegou a refletir sobre a realização de um evento separado para mulheres. Mas deixou claro que seriam "semi-Olimpiadas" e que não teriam nem apelo nem interesse. "Não hesitaria em dizer que não seria apropriado", disse, em 1912. E ele foi além, indicando que eventos femininos "não são cenas que multidões gostariam de ver em Jogos".

Em Atenas, em 1896, o evento era exclusivamente masculino. Em Roma, em 1960, as mulheres representavam 10% dos atletas. Mesmo em Sydney, na virada do século 21, elas eram apenas um terço dos participantes. No Rio, em 2016, elas eram 45% dos Jogos.

Tóquio vem como um ponto de inflexão na história do movimento olímpico. Em 2021, 49% dos atletas são mulheres. Apesar da comemoração da paridade, os alertas de que foram necessários 125 anos para finalmente atingir a marca soam forte.

Sam Robles/CBF

Campanhas e protestos

Após conseguir uma paridade (ou quase) na participação de homens e mulheres, as participantes agora se voltam para outro problema: os comportamentos sexistas por partes dos dirigentes e organizadores.

A equipe alemã de ginástica, por exemplo, se rebelou contra os padrões estéticos dos uniformes e abandonou as roupas curtas que tradicionalmente marcaram a presença de mulheres no evento. "Queríamos mostrar que todas as mulheres devem decidir o que usar", disse a ginasta Elisabeth Seitz. Ela e suas companheiras de equipe disputam as Olimpíadas vestindo um macacão que cobre as pernas.

Lembrando que os Jogos em Tóquio ainda são os primeiros depois da condenação do ex-médico da equipe americana Larry Nassar a 176 anos de prisão por ter abusado sexualmente de centenas de ginastas.

O torneio de vôlei também teve discussão de uniformes. Em 2020, já tinham decidido que as atletas, em Tóquio, poderiam usar calção e camiseta, se assim optassem. Dias antes dos Jogos, foi a equipe da Noruega no handebol de praia (que não é olímpico) que havia iniciado o debate, se recusando a usar biquínis num torneio na Bulgária. Elas acabaram sendo multadas.

Os códigos de uniformes não são as únicas regras que revelam como existe uma longa distância a ser percorrida. Ao estabelecer as normas sobre covid-19, atletas que acabaram de ter crianças foram inicialmente barradas de levar seus filhos ao evento. Provavelmente um efeito de como é composto o comando do COI: as mulheres representam apenas 30% de seus dirigentes.

Gaspar Nóbrega/COB

Reconhecimento da diversidade

Tóquio ainda entrará para a história como o evento com o maior número de atletas abertamente homossexuais. São mais de 160 competindo, três vezes o número de 2016 no Rio. O evento também será o primeiro a registrar o primeiro atleta abertamente transgênero, Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, que compete no levantamento de peso feminino.

O COI ainda autorizou o uso de símbolos do movimento LGBTQIA+, o que permitiu que a capitã da seleção da Alemanha de Hóquei, Nike Lorenz, trocasse sua braçadeira de capitã por uma com as cores do arco-íris. No futebol, o goleiro Manuel Neuer já tinha adotado a bandeira do movimento como sua braçadeira na Euro 2020.

Outra inovação do COI foi a flexibilização da regra 50 da carta olímpica, que impedia qualquer demonstração política por parte dos atletas. Alguns parâmetros, porém, foram colocados: o principal deles é de que o gesto não deve ofender a outros grupos.

Antes dos Jogos, o COI foi duramente criticado por ter tentado censurar atletas a se manifestar em redes sociais com imagens de protestos políticos e sociais. Acabou abandonando a orientação.

Em campo ou em quadra, são, uma vez mais, as mulheres que lideram movimentos para colocar um ponto final no silêncio dos mais marginalizados.

Nos primeiros dias da competição, várias jogadores de futebol se ajoelharam antes das partidas, num gesto de protesto contra o racismo. Americanas, chilenas, britânicas e outras adotaram a postura.

Mas foi a ginasta Luciana Alvarado, de apenas 18 anos e da Costa Rica, quem ditou o tom. Sua apresentação foi concluída com o gesto que marcou o movimento Black Lives Matter e foi a primeira atleta de elite a adotar tal postura em sua modalidade. Segundo ela, sua coreografia foi feita justamente para mostrar a importância dos direitos humanos. "Somos todos iguais", declarou.

Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images

Heróis, mas humanos

Outra constatação é o reconhecimento de que heróis, inclusive do Olimpo, são humanos. Simone Biles surpreendeu o mundo ao desistir das finais da ginástica, por uma questão de saúde mental. Naomi Osaka também chocou o mundo há poucos meses ao constatar a mesma realidade.

"Coloquei meu orgulho de lado. Tenho que fazer o que é o certo para mim e focar em minha saúde mental", disse Biles. Sua coragem foi aplaudida por atletas e usada imediatamente por profissionais de diversos cantos do mundo para alertar sobre a pressão que hoje existe sobre jovens para que apresentem desempenhos sem espaço para falhas.

Especialistas receberam o gesto de Biles como a oportunidade para quebrar tabus e colocar a questão da saúde mental com um tema de saúde pública.

Craig Ferguson/LightRocket via Getty Images Craig Ferguson/LightRocket via Getty Images

Novos esportes, novo público

Tóquio é ainda a Olimpíada dos novos esportes, incluídos para atrair ao movimento olímpico os mais jovens. Skate, surfe e outros foram as iscas para buscar um público que começava a desaparecer e preocupava patrocinadores e TVs.

Em 2016, o COI descobriu que seu evento no Rio registrou uma queda de 30% na audiência entre 18 e 34 anos. Com 75% da receita do movimento vindo das transmissões, recuperar torcedores não era apenas uma questão de prestígio. Mas de sobrevivência.

O que poucos esperavam é que, além de jovens, muitos desses novos torcedores seriam de classes sociais radicalmente diferentes daqueles que acompanham ou praticam equitação ou tênis. Para 2024, em Paris, a revolução na programação continua, desta vez com o breakdance.

Seja por quebrar o tabu da questão de saúde mental, por atingir praticamente a paridade entre homens e mulheres, por aceitar que gestos por grupos marginalizados sejam legítimos, por ter um número recorde de representantes do movimento LGBTQIA+ ou por sair em busca da periferia, Tóquio corre o sério risco de não ser apenas a Olimpíada da pandemia. Mas também a mais inclusiva da história.

Para alguns dentro do COI, ninguém deve se surpreender se o Japão for eventualmente reconhecido no futuro como uma espécie de primeira olimpíada de uma nova Era Contemporânea, mesmo que o caminho por plenos direitos ainda seja ainda longo para mulheres, negros, gays e minorias que por séculos foram discriminados, humilhados e oprimidos.

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