História de pescador

Ítalo Ferreira surfava no isopor em que pai vendia peixes; agora, é primeiro campeão olímpico do surfe

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool

Há 19 anos, Ítalo Ferreira era uma criança em Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, que pegava ondas com a tampa de uma caixa isopor enquanto o pai Luís vendia peixes frescos na praia de Pipa. O tempo passou como um estalar de dedos e a brincadeira virou coisa séria: campeão do mundo em 2019, ele conquistou hoje (27) a primeira medalha de ouro da história do surfe brasileiro.

"Nasci em um lugar lindo e que quase ninguém conhece. Comecei aos oito anos, pegando espuminha com um pedaço de madeira, só que não dava para ficar em pé. Aí eu pegava as tampas da caixa de isopor que meu pai usava para vender peixes. Aí, sim", contou Ítalo em entrevista ao UOL Esporte antes de embarcar a Tóquio.

Depois do isopor, tudo aconteceu rápido na vida do potiguar. Com apoio dos pais Luís e Katiane, saiu de uma cidade com cerca de 9 mil habitantes para abraçar todas as oportunidades que apareciam em sua vida. O título do circuito do surfe mundial em 2019 colocou o morador mais ilustre de Baía Formosa no topo do esporte.

Na praia de Tsugaraki, onde a competição olímpica foi realizada, ele entrou no Olimpo do esporte brasileiro. Com um torneio consistente, Ítalo superou até mesmo uma prancha quebrada na final para conquistar a medalha de ouro. Foi o primeiro do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio e a primeira medalha de ouro da história do surfe olímpico —já que a final feminina aconteceu logo depois da vitória de Ítalo.

Marcelo Maragni/Red Bull Content Pool
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Improviso com prancha de isopor

Com uma caixa de isopor cheia de peixes em um braço e o filho Ítalo no outro, o pescador Luisinho Pereira percorria as praias potiguares para vender o resultado de suas pescarias. Na época, o garoto aproveitava para brincar na água.

"Eu olhei para uma caixa que ele tinha na época, peguei a tampa e fui para a água nadar. Peguei uma espuminha, aí depois comecei a pegar onda mesmo e consegui ficar em pé. Aquilo era minha diversão. Enquanto meu pai trabalhava, eu não tinha o que fazer, não podia ajudar... Ele tinha que vender o peixe, falar com os caras... Para mim era meio que um saco ficar ali olhando só", relembrou Ítalo.

Virou a brincadeira de sempre, mas quando quebrava a tampa, o meu pai ficava chateado porque não tinha como gelar o peixe depois. Aí eu pegava o palito de churrasco que tinha na praia, colocava de um lado e do outro e juntava o isopor. Então dava para usar ainda."

Percebendo que o filho levava jeito, Luisinho juntou dinheiro da venda dos peixes e decidiu dar uma prancha de verdade a Ítalo.

O surfista conta sua história

Divulgação

Meu escritório é na praia

"Minha vida tem duas fases: a primeira em Baía Formosa, quando morávamos em uma pousada. Depois de um tempo, a gente foi para Natal tentar uma vida melhor. Mas não deu muito certo. Foram quase dois anos de muita luta. Voltamos para Baía Formosa, e fomos morar na casa da minha vó. Comecei a me dedicar mais ao surfe. Eu voltava da escola, e não tinha nada para fazer. A praia estava ali na frente da minha casa."

ED SOLANE/WSL

Vaquinhas em Pipa

"Quando comecei a me destacar entre os jovens nos torneios locais, as pessoas vinham falar que eu tinha talento e deveria ir para outros campeonatos. Mas eu não tinha patrocínio, meus pais não tinham como bancar para eu ir aos eventos. Pedia dinheiro em mercado e nas pousadas para pagar inscrições ou viajar para competições. Meu pai se virava vendendo o peixe em Pipa. Era difícil, e eu tinha que fazer valer a pena, trazendo o troféu para casa."

Arquivo Pessoal

Um por todos

"Depois de alguns eventos, comecei a ganhar premiações e, com esse dinheiro, conseguia ajudar a família. Ali, pensei: 'Se eu me dedicar, ganhar mais campeonatos, correr atrás, eu vou poder ajudar cada vez mais os meus pais'. Fui crescendo aos poucos e conquistando o que eu desejava quando criança. Até hoje é assim. Qualquer coisa que eu tô muito a fim, eu coloco na cabeça: 'Pô, preciso ganhar o campeonato para ter aquilo.'"

Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool

Campeão, surfista deu uma casa aos pais

O reconhecimento desse esforço veio nas vitórias de competições importantes. Acostumado com o estilo de onda do Nordeste brasileiro, Ítalo se adaptou facilmente a outras praias do país e foi conquistando troféus e premiações. A partir daí, o surfista pôde realizar um sonho da família: a casa própria.

"A primeira coisa que eu dei para a minha família quando comecei a ganhar mais dinheiro foi uma casa. Foi marcante. Naquela vez que fomos para Natal tentar uma vida melhor, um cara quase enganou meu pai. Ele pagou o valor de uma casa, e o cara sumiu por vários meses. Seria nossa primeira casa própria. Meu pai foi atrás do cara e ele disse que não ia enganá-lo... Só que tivemos que sair de Natal e voltar para Baía Formosa. A primeira coisa que eu fiz quando comecei a ganhar premiações maiores foi comprar a casa para a gente morar e dizer que era nossa", concluiu.

Essa mesma casa que o atleta comprou aos pais está se tornando o Instituto Ítalo Ferreira, uma ONG focada no apoio a crianças de Baía Formosa.

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Kelly Cestari/WSL

Garoto prodígio conquista o mundo

Ítalo venceu duas etapas do Mundial Pro Júnior e foi campeão brasileiro em 2011, aos 17 anos. Em 2014, então, conseguiu se classificar para o WTC (World Championship Tour), a série de torneios mais importante da modalidade.

"Eu tinha dois anos para entrar no circuito mundial. Na metade do primeiro ano, consegui os pontos para me classificar e entrei em 2015. Meu objetivo era estar entre os dez melhores e ser o estreante do ano. Acabei conseguindo terminar em sétimo e foi incrível. Consegui chegar com o pé direito mostrando que eu poderia ser campeão do mundo", contou.

Em 2017, Ítalo rompeu os ligamentos do tornozelo direito e teve resultados insatisfatórios. No ano seguinte, conseguiu alcançar o quarto posto no ranking mundial, mas não estava satisfeito.

"Ganhei dois eventos e nem disputei o título do mundo, terminei em quarto. Tive altos e baixos mentalmente, estava com a equipe que eu não queria naquele momento. Em 2019, comecei a surfar feliz, conseguir resultados e ser campeão do mundo. E foi difícil também, porque tive duas lesões, perdas familiares e muitas coisas que poderiam tirar meu foco."

De onde vem a força de Ítalo

Ítalo deve grande parte do seu sucesso no surfe aos seus pais, Luisinho e Katiana, que superaram dificuldades financeiras para apoiá-lo. Ainda segundo o surfista, eles sempre priorizaram a felicidade dos filhos e ajudavam em busca da realização profissional. O pai vendendo peixes e a mãe, trabalhando em uma pousada potiguar.

"O meu pai e minha mãe foram as pessoas que sempre deram as oportunidades para eu surfar. Sempre me deixaram livre e me educaram da melhor maneira. Isso reflete na minha postura e personalidade. Todos os conselhos que eles passaram para mim seguem fixados na minha cabeça. Eles realmente me deram o empurrão."

"Eu tinha 13 anos quando eu fiz minha primeira viagem internacional... Imagina? Você, pai e mãe, deixar o seu filho ir para o México, com pessoas que você nem conhece? Mas eles sempre acreditaram que era aquilo que eu queria e não poderiam me travar e, sim, dar força, orar para que Deus pudesse me proteger e eu seguisse meu caminho", disse o surfista.

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Aqui em Baía Formosa as pessoas falavam para a minha mãe: 'Katiana, você é maluca, você e Luisinho deixam o seu filho ir para o mundo, você não sabe o que ele está fazendo, o que pode acontecer...'. Mas e aí? E se ela não deixa? Quem eu seria hoje? O que eu seria hoje? Ela me deu educação, me alertou, pediu para eu vigiar as coisas e não fazer nada errado... Acreditar. E eu to aí, né?"

Ítalo Ferreira

Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool

Antes coisa de maconheiro, surfe agora é olímpico

O reconhecimento do surfe como esporte de alto rendimento é novidade. Antes de chegar ao mundial e às Olimpíadas, Ítalo sofreu preconceito por ser surfista. Segundo o potiguar, hoje a mentalidade geral mudou e as pessoas conseguem enxergar o surfista como um atleta profissional.

"A primeira coisa que falam quando contamos que surfamos é: 'Ah, maconheiro, drogado, não faz nada da vida'. Agora, todo mundo quer ser sufista e entrar no circuito mundial para fazer contrato de milhões e viajar o mundo. Olha como mudou... Existem pessoas que deram o sangue e mostraram que é possível mudar de vida e ajudar o próximo com o surfe", destacou Ítalo.

O surfista ainda fez um paralelo com o skate, que sofre o mesmo tipo de preconceito. "Esses dois esportes tiveram seus momentos que não foram tão bons e agora estamos mostrando que existe um mundo profissional por trás, em que você pode mudar sua vida, pode ser uma pessoa saudável, se conectar com a natureza. Hoje, nós chegamos nas Olimpíadas", pontuou.

Brasileiros formam elite do surfe mundial

Quando Gabriel Medina venceu o circuito mundial em 2014, comprovava que o surfe brasileiro tinha alcançado um patamar inédito na história da modalidade no país. Antes, Austrália e Estados Unidos eram os países que realmente dominavam o esporte. Hoje, o Brasil concorre pelo controle da elite.

"A mentalidade do brasileiro que chegava no mundial antes era: 'Ah, vou entrar no Mundial e ficar entre os 15 e vai ficar tudo certo para mim'. De cinco anos para cá, sempre buscamos ser campeões do mundo e temos exemplos no tour que te mostram que é possível, sim", afirmou Ítalo.

Os três melhores surfistas do mundo hoje são brasileiros: Gabriel Medina, Ítalo Ferreira e Filipe Toledo. Gabriel, quarto colocado, e Ítalo, campeão, foram os representantes olímpico do país no Japão. No ranking mundial, o trio é seguido pelo australiano Morgan Cibilic e pelo norte-americano Griffin Colapinto. Ítalo também chamou atenção para a base do surfe no Brasil.

"Muitos talentos desistem dos sonhos por causa de gestões e de caras que estão ali só pensando no próprio umbigo, não querem ajudar o próximo. A caminhada até o topo é um pulo muito grande e não tem escada para chegar. Ou você bate lá direto ou sofre aqui e não consegue. A gente vive um momento incrível, mas ao mesmo tempo é muito difícil", destacou.

Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool
Marcelo Maragni / Red Bull Content Pool

Estreia do surfe e sonho olímpico

Aquele Ítalo novinho, que surfava só em Baía Formosa, nunca imaginava que um dia estaria competindo em um evento como as Olimpíadas. Mas desde que o Comitê Olímpico Internacional anunciou, em 2016, a presença da modalidade em Tóquio, o potiguar fixou o objetivo na mente: a medalha de ouro.

"Eu vim com uma frase para o Japão: diz amém que o ouro vem. E veio. Eu treinei muito nos últimos meses e Deus realizou meu sonho, só tenho agradecer a Deus. Me dá a oportunidade de fazer o que eu amo, ajudar as pessoas, ajudar minha família. Não sei, isso sou eu. Fui pra dentro d'água sem pressão, fazendo o que eu amo."

Quando eu fiquei sabendo que o surfe ia entrar nas Olimpíadas, fixou na minha cabeça: eu preciso ir, eu preciso estar lá, preciso fazer o melhor para virar um atleta olímpico e ter a chance de ganhar uma medalha."

Ítalo Ferreira

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