Quando o céu se abriu

Isaquias sabia que não poderia repetir as 3 medalhas de 2016. Mas estava tudo programado para um ouro especial

Demétrio Vecchioli Do UOL, em Tóquio (Japão) Miriam Jeske/COB

As previsões meteorológicas previam que o último dia de provas da canoagem nos Jogos Olímpicos de Tóquio seria de chuvas, mas com uma breve janela de tempo bom. Quis o destino que essa janela acontecesse justamente quando Isaquias Queiroz entrasse na água para conquistar sua primeira medalha de ouro olímpica. Nesta madrugada (no Brasil), ele conquistou o título do C1 1000, o primeiro da canoagem brasileira e o quinto ouro do Brasil na Tóquio-2020.

A ciência exata dos japoneses já mostrava, em gráficos, que uma nuvem pesada passaria sobre o canal Sea Florest, de água salgada, exatamente entre a semifinal e a final do C1 1.000m. Mas quem acredita em forças que vão além da ciência pode encontrar outra explicação por esse céu aberto para Isaquias.

A ajuda extra pode ter vindo de Iemanjá, a rainha das águas, porto seguro do esporte brasileiro, que só em Tóquio já conquistou quatro medalhas no mar. Antes, Martine e Kahena, Ana Marcela Cunha e Ítalo Ferreira foram campeões na vela, nas maratonas aquáticas e no surfe.

Mas havia também a vontade de Jesús. No caso, o espanhol Jesús Morlan, o técnico que revolucionou a canoagem brasileira, fez de Isaquias o primeiro brasileiro a subir três vezes no pódio olímpico na Rio-2016 e, antes, o primeiro brasileiro campeão mundial da modalidade (em 2013).

Foi para Jesus que Isaquias fez a promessa de que seria campeão olímpico. Antes da morte do mentor, em 2018, no Brasil: o espanhol foi diagnosticado com câncer no cérebro e, meses depois, não resistiu. Morreu em 11 de novembro de 2018, em Lagoa Santa, Minas Gerais.

Sem as nuvens entre o céu e a Terra, ficou mais fácil para Jesús ver seu pupilo brilhar.

Miriam Jeske/COB

É uma felicidade imensa poder ganhar a medalha de ouro, principalmente em um ano bem complicado que a gente teve, com a perda do nosso treinador... Mas a gente demonstrou para o Brasil inteiro que brasileiro não desiste nunca, que a gente tem garra e viemos para cá treinando durante cinco anos e o resultado está aqui. A dedicação do treinamento está aqui.

Isaquias Queiroz

Miriam Jeske/COB

Agora são quatro medalhas

Depois de ser o primeiro atleta do Brasil a ganhar três medalhas em uma mesma edição dos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro, há quatro anos, Isaquias não vai voltar de Tóquio como multimedalhista. Quando entendeu o fato, ficou mordido. O quarto lugar no C2 1.000m, em dupla com Jacky Goldman, desceu rasgando a garganta, teve gosto de último lugar, mas foi digerido em quatro dias.

Nesta madrugada (no Brasil), só havia uma possibilidade na cabeça de Isaquias: o ouro. E o corpo correspondeu. Isaquias cruzou a linha de chegada já sem remar, com um barco e meio de distância sobre o chinês Hao Liu, medalhista de prata —o bronze foi para Serghei Tarnovschi, da Moldávia.

"Quando passou os 500 metros, eu tive essa certeza [de que venceria], porque eu estava descansado, ainda com gás, e vi que os atletas da esquerda estavam para trás, só o chinês não. Deixei o barco andar e descansar. Quando passou os 500, passei botar mais ritmo e, nos 200, não tinha mais dúvida nenhuma: ninguém mais tira", disse Isaquias.

Há cinco anos, no Rio de Janeiro, o baiano foi fundamental para, com suas três medalhas, ajudar o Brasil a bater seu recorde histórico de medalhas. Quando o baiano alinhou na final do C1 1.000m da canoagem velocidade no último dia das Olimpíadas de Tóquio, neste sábado no Japão, o antigo recorde já estava superado, sem sua ajuda. Sua medalha foi a 21ª do Brasil e o recorde foi batido na 20ª.

Outro recorde, porém, pode ter sua contribuição: sua medalha foi a quinta de ouro do Brasil. Horas depois, outro baiano, Hebert Conceição, ganharia a sexta, no boxe, com um nocaute impressionante. E a sétima ainda pode vir com o futebol masculino, para igualar, nesse quesito, a campanha do Rio.

Jonne Roriz/Jonne Roriz/COB

Política e novo parceiro deixaram Isaquias com um só pódio

Isaquias Queiroz sabia, desde 2017, que nem mesmo treinando o dobro ou o triplo seria possível repetir o desempenho do Rio no número de medalhas. O C1 200m, em que ele foi bronze na Lagoa Rodrigo de Freitas, deixou o programa.

No intuito de equilibrar o número de participantes e de medalhas distribuídas entre homens e mulheres, a prova mais curta da canoa masculina foi substituída pela versão feminina. Isaquias chegou a reclamar publicamente, divulgou um abaixo-assinado para que a "melhor prova" continuasse no programa, mas a equidade de gênero falou mais alto.

Se a política esportiva tirou a primeira medalha de Isaquias, uma lesão crônica no fêmur de Erlon Souza impediu a segunda. Três anos mais velho que o agora campeão olímpico, o baiano Erlon havia sido prata no Pan de 2011 com Ronilson Oliveira quando seu conterrâneo começou a mostrar talento em competições de base.

Por sete anos, desde que Isaquias assumiu uma vaga na seleção adulta, Isaquias e Erlon foram parceiros no C2. Seria assim se não fosse essa lesão. Com o desfalque, o próximo da fila na seleção permanente que treina em Lagoa Santa foi promovido: Jacky Goldmann, mais um baiano, de somente 22 anos —Isaquias tem 27.

Jovem, Jacky claramente não tem, ao menos não ainda, o mesmo nível de Erlon, muito menos o de Isaquias. Isso ficou claro pelo desempenho dos dois nas eliminatórias do C1 1.000m em Tóquio. Isaquias foi 25 segundos mais rápido que Jacky. Em um barco desequilibrado, Isaquias e Jacky foram quarto colocados na final do C2.

"Muita gente pode comparar o Jacky com o Erlon. Mas a gente só treinou quatro meses para uma Olimpíada, cara. E ainda ficamos em quarto. Sabemos como é, Mas queria a medalha e por isso fiquei frustrado. Mas sabíamos que estaríamos treinando com adversários de nível. Não deu, eles foram melhores."

Júlio César Guimarães/COB Júlio César Guimarães/COB

O ouro da raiva e do apoio

Esse quarto lugar foi importante para o que aconteceu nesta madrugada porque Isaquias tem uma cabeça binária quando o assunto é resultado esportivo. Existe o ganhar medalha e o não ganhar medalha. Por isso, a participação olímpica no Japão tinha tido, até agora, o gosto de último. Mesmo sabendo que não era favorito ao ouro na prova em duplas.

Arrasado pelo resultado, Isaquias saiu do canal chorando muito na terça. "Tinha a possibilidade, mas fiquei mal, chorei de raiva. Eu tinha esse objetivo de duas medalhas, fiquei triste."

No dia seguinte, já estava revigorado. Nesse meio tempo, acompanhou, pelas redes sociais, o carinho dos fãs. "Foram mais de 40 mil comentários [no Instagram]. Mensagem de apoio, 'guerreiro', nenhum ódio. Tudo de apoio. Isso deu ânimo a mais. Mas quando cheguei no quarto [o local físico, onde ele dormiu], já percebi que o quarto não era ruim. Não é porque o Jacky é novo, nosso adversário foi melhor que a gente. Fizemos o que podíamos."

Ficamos em quarto e percebi que não era ruim, mas queria a medalha."

Maxim Shemetov/Reuters

O profissionalismo de um campeão olímpico

Essa visão de mundo é moldada pelo modo de vida do baiano. Na tranquilidade de Lagoa Santa, em Minas Gerais, Isaquias compete poucas vezes no ano. Disputa o Campeonato Mundial ou as Olimpíadas e uma ou duas etapas de Copa do Mundo. Tem, também, muito pouco contato com a imprensa. O canoísta é alguém que não se encaixa no modelo de media training ao qual são submetidos os principais atletas brasileiros.

O contato direto com Isaquias, raro, mostra como ele é não só um atleta diferenciado. Mas uma pessoa diferenciada. A reportagem do UOL pôde sentir isso duas vezes — e o leitor do UOL, consequentemente, também.

Após as eliminatórias do C2, Isaquias deu uma longa entrevista para a TV Globo, depois conversou bastante tempo com a transmissão oficial e, por fim, com o serviço de informações oficial. Levou pelo menos 15 minutos para chegar nos demais jornalistas brasileiros, que o esperavam debaixo de sol forte.

O assessor de imprensa da confederação, preocupado com a necessidade de Isaquias descansar, disse que ele só responderia uma ou das perguntas, e depois iria para a área de descanso. Imediatamente, Isaquias indicou que ficaria falando conosco o tempo que fosse necessário, porque estávamos ali fazendo o nosso trabalho.

Depois, nas eliminatórias do C1, a reportagem do UOL chegou atrasada para a prova, porque o taxista se perdeu. Coisas que acontecem. Isaquias já havia falado com a imprensa brasileira, estava nos últimos metros do caracol da zona mista, quando este repórter avistou ele e um assessor e pediu que ele respondesse uma pergunta só, que eu havia me atrasado. Nem deu tempo de terminar a frase. Isaquias deu meu meia volta e, pacientemente, sem nenhuma obrigação, deu mais uma entrevista.

Eduardo Knapp/Folhapress
As três medalhas de Isaquias da Rio 2016: agora, ele tem um ouro para acompanhar

Ao lado dos grandes

Se já não fez diferença para ajudar o Brasil a superar o total de medalhas obtido no Rio, feito alcançado com a chegada da equipe feminina de vôlei à final ontem, o ouro de Isaquias pode ser fundamental em outra meta, essa mais difícil: melhorar a posição do país no quadro de medalhas.

Esse foi o quinto ouro do Brasil, que ganhou o sexto com Hebert no boxe, e ainda tem mais quatro: no futebol masculino, com Bia Ferreira no boxe, a do vôlei feminino e da equipe de saltos do hipismo. Nessa conta, Isaquias ajudou mais do que no Rio, quando conquistou uma prata e dois bronzes.

Pessoalmente, Isaquias assume o terceiro lugar no quadro de medalhas de atletas brasileiros e número de medalhas. Fica atrás de Robert Scheidt e Torben Grael, ambos da vela, cada um com cinco medalhas. "Tenho que treinar bastante para conquistar mais duas medalhas em Paris e passar. Mas o Robert Scheidt, o Torben Grael, são heróis nacionais, não tem como apagar a história deles. Ainda que eu passe em medalhas, eles foram inspiração para nós brasileiros. Para mim é um prazer disputar com eles no quadro", afirmou Isaquias, já com o ouro no peito.

Serginho Escadinha, do vôlei, também tem quatro medalhas, duas de ouro e duas de prata, assim como Gustavo Borges, da natação, com duas pratas e dois bronzes. Rodrigo Pessoa, que levou a equipe do Brasil para a final por equipes do salto, pode também igualar esse número. Ele tem um ouro e dois bronzes.

Miriam Jeske/COB Miriam Jeske/COB

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