A epopeia de Aída

Há 57 anos, Aída dos Santos conquistava, sozinha e sem apoio o quarto lugar no salto em altura em Tóquio

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Ricardo Borges/UOL

Mais que um simples salto em altura, Aída dos Santos deu um salto rumo à história nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. Já se passaram 57 anos e ela continua em atividade: dá entrevistas, fala sobre o seu pioneirismo no campo feminino, denuncia o racismo, é homenageada e vive intensamente os seus 84 anos. Quando sobra tempo, joga vôlei com as amigas no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.

"Só não tenho jogado muito porque estou com uma dor no braço, nos bíceps", vai contando Aída, em uma de suas vindas a São Paulo. No hotel onde ficou hospedada para o evento, ela surgiu elegante, como sempre, com o sorriso no rosto iluminado, a mente cheia de detalhes sobre sua grande façanha esportiva: o quarto lugar no atletismo, nos Jogos de Tóquio. Se você estranhou a viagem de Aída para São Paulo e o encontro presencial, calma. A primeira entrevista foi feita ainda antes da pandemia.

Em ano de olimpíada, a agenda de Aída fica lotada. Todos querem saber como foi ter sido a única mulher na delegação brasileira de 68 atletas que competiu na Olimpíada de 1964; como foi entrar sozinha no Estádio Nacional, sem técnico, sem psicólogo, sem orientação e buscar um glorioso quarto lugar no salto em altura, atrás de lendas do esporte como a romena Iolanda Balas.

O atletismo ainda é o primo pobre do esporte nacional, imagine então como foi naqueles tempos. Eu, uma mulher, pobre e negra."

Imaginem, também, que na época em que ela fez isso as mulheres tinham ainda menos voz ativa e os homens também estavam amordaçados pela ditadura...

Marcus Steinmeyer/UOL

Conexão Tóquio

A partir de 23 de julho, olhares brasileiros estarão voltados a Tóquio, onde acontecerão os Jogos Olímpicos de 2020 —adiados para 2021 por causa da pandemia de coronavírus. É uma chance de a maior comunidade japonesa fora do Japão do planeta aumentar um pouquinho a conexão com sua terra natal. Segundo o Ministério de Relações Exteriores do país asiático, são mais de dois milhões de japoneses ou descendentes vivendo no Brasil.

E a influência japonesa em nosso esporte é forte, como mostra a série Conexão Tóquio, do UOL Esporte. Em cinco capítulos, vamos mostrar como alguns dos grandes nomes do esporte no Brasil têm um pouquinho de japonês em sua história. São relatos de imigração, conhecimento e, às vezes, preconceito, que contam como os japoneses são importantes para nós.

Início avassalador

Essa história de Aída dos Santos começa bem antes da viagem para terras japonesas. Ela tem início quando a filha do senhor Praxedes cismou que gostaria de praticar esportes. "Isso dá dinheiro?", perguntou o pescador flamenguista à filha. "Além disso... você tem mais o que fazer em casa."

Sendo assim, vez ou outra, a menina Aída escapava de carona na bicicleta de uma amiga e ia jogar vôlei. Só que nem sempre tinha o número necessário de parceiras para o jogo, e um dia a amiga insistiu para que ela fizesse o tal do atletismo. "Eu não queria. Mas teve uma vez em que ela me disse que só me daria carona de volta na bicicleta se eu fosse na pista."

Aída tinha tanta impulsão e jeito para qualquer esporte, que já saltou e chamou a atenção do técnico. "O recorde carioca era 1,45 m e eu, de cara, sem jeito, saltei 1,40 m". Foi um início avassalador.

"Ganhei medalhas, fui incentivada a disputar torneios, mas em casa ninguém me animou. Eu mentia para o meu pai, não dizia que ia competir. Ele nem desconfiava."

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

Medalha enche barriga, sim

Quando começou a competir pelo Vasco da Gama, o técnico e os diretores deram dinheiro para a condução e ajuda de custo. Mas seu Praxedes ficava com o dinheiro e a menina ia a pé mesmo para os treinos —ou nem ia.

Mesmo assim, logo de cara, Aída bateu o recorde carioca. "Na pista do Fluminense, saltei 1,50 m e ganhei de todo mundo. Eu não fazia como as outras meninas, que iam aumentando a altura aos poucos. Eu achava que queriam me cansar, então já saltava o máximo que podia."

Aída se lembra de detalhes, centímetros, como se ainda visse a poeira do corpo caindo na terra.

"Em um torneio da Primavera, disputado na pista do Clube de Regatas Tietê, em São Paulo, fiz um resultado expressivo e os dirigentes da época disseram que eu iria para o Pan-americano de Chicago, em 1959. Mas só falaram", afirma. "E nem assim meu pai se animava: ele perguntava se medalha enchia barriga. Você acredita nisso?"

A falta de apoio em casa e a falta de confiança nos dirigentes tornaram a jovem Aída descrente no futuro esportivo. Ela estudava, ajudava em casa, treinava só aos domingos e competia sempre que possível. "Meu pai falava: esse tal de atletismo deve ser muito fácil, porque você não treina e ganha tudo."

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

Seletiva como definição

Aída tinha uma adversária de respeito no Rio: Maria da Conceição Cypriano. "Tínhamos as melhores marcas da época, e antes de formarem a delegação para os Jogos de Tóquio, disseram que fariam algumas eliminatórias para o salto em altura", conta.

Foi estabelecido um índice e as duas o ultrapassaram várias vezes, até que resolveram marcar uma definitiva em setembro. "Avisaram em cima da hora. Era para ir à pista do Célio de Barros em um sábado pela manhã, para tomar café, descansar, ficar concentrada e depois tentar o índice."

Mas não foi bem isso o que aconteceu com Aída dos Santos. Quando acordou e falou para a mãe que iria participar da seletiva, recebeu algumas missões antes de sair de casa. "Lavei roupa, passei roupa, carreguei água e também limpei o chão, que era aquele vermelho. Passei escovão, deixei tudo brilhando e quando fui liberada, me dirigi à pista."

Estava quase na hora da competição e, então, a jovem negra, altiva e atlética fraquejou em uma das raras vezes em que se viu desafiada pelo esporte. "Olha, minha vida não é essa, estou cansada, estou com fome, esfreguei o chão até agora e não quero ir a Olimpíada nenhuma. Pronto!"

Desabafo feito, ela esperava dar meia volta e rumar para sua casa. Para a vida sob as ordens de Praxedes. Mas acabou convencida pelo seu técnico Aílton Conceição e fez o índice: 1,61m. Ou melhor, mais que o índice: 1,65m. "A Cypriano infelizmente não conseguiu. E os dirigentes falaram que eu iria para a Olimpíada."

"O desprezo era grande. Lembro até hoje de um torneio que fomos disputar no Peru. Quando chegamos ao alojamento, não tinha cama, e os nossos dirigentes [cujos nomes Aída se recusa a citar] estavam pouco se importando com isso."

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A tão sonhada Olimpíada

Aída tem mágoas.

"Fui para a Olimpíada sem uniforme oficial. Eu tinha uma saia cinza de um torneio Ibero-americano e uma blusa que, por sorte, eram parecidas com a roupa da rapaziada no desfile de abertura da Olimpíada."

Abandonada no alojamento das atletas, ela encontrou uma maneira de enfrentar a solidão. "Eu chorava e andava de bicicleta. Havia bicicletas perto do quarto e eu andava para todo lado, para o refeitório, fazia gestos para me comunicar com os voluntários, preenchi documentos gesticulando para as japonesas da organização e, assim, fui sobrevivendo sem apoio ou visita de algum técnico ou dirigente brasileiro."

No dia de treino para a disputa do salto em altura, Aída relembra: "Eu sabia quem era a canadense que disputaria a mesma prova que eu, então a segui. Andei disfarçadamente atrás dela, porque não tive orientação sequer sobre como chegar aos lugares lá dentro. Eu não tinha sapato especial para a prova. Não tinha orientação, peguei o colchão e treinei sozinha, do meu jeito."

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Gentileza no Japão

O peruano Roberto Abugatas tentou ajudá-la no treino. O cubano Lázaro Bittencourt ficou de acompanhá-la para conseguir um sapato de prego apropriado. E a atleta Miquelina Cobian, também de Cuba, aproximou-se dela e foi de grande valia no dia da competição. "Ela era uma grande velocista", diz Aída.

Com Lázaro Bittencourt, a atleta foi até o estande da Adidas para escolher um par de sapato. "Depois de escolher aquele que tinha os pregos do jeito que eu usava, tive que devolver todo o material. O dirigente da delegação brasileira não tinha colocado o meu nome na lista dos competidores", lamenta.

Mas o cubano Lázaro era insistente.

"Fomos até o estande da Puma e, depois de tudo acertado, o sapato escolhido e a sacola com o material nas minhas mãos, mais uma vez a decepção e o choro: meu nome também não estava lá."

Para os dirigentes do esporte brasileiro que estavam em Tóquio, Aída Menezes dos Santos não existia. Ou eles tinham esquecido que ela ia competir.

"Mas ali na Puma, o senhor que estava nos atendendo ficou com dó e me liberou um sapato de sprinter. Não era o ideal, mas era um tênis, e eu iria usá-lo no dia da competição."

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Determinação pela solidão

No dia da competição, Aída se dirigiu ao estádio olímpico sozinha e sem qualquer orientação. "Eu estava só. As atletas estavam com seus técnicos e intérpretes. Só havia mais uma negra da equipe americana. E eu ali. Começaram a chamar uma a uma e, a cada chamada, uma atleta se levantava e apertava um botão. Fiquei atenta e fiz o mesmo na minha vez."

Seguir as outras meninas e entrar na pista não foi difícil —e dentro do ambiente de competição, Aída era mais ela. "Pensei em tudo o que tinha passado. No desprezo dos dirigentes, no abandono e prometi a mim mesma: nem que eu quebre o pescoço, vou fazer o máximo. Olhei para o estádio e não vi nenhuma bandeira do Brasil. Aquilo tudo mexeu comigo."

Aída colocou-se em posição, correu e fez o seu salto. Fez boa marca, mas torceu o tornozelo. "Consegui o salto necessário para a classificação e tinha que ficar para o período da tarde. Mas havia dois problemas: tinha machucado o pé ao cair e não sabia o que comer durante o intervalo, mesmo porque tinha pouquíssimo dinheiro na bolsa."

"O peruano Roberto Abugatas me orientou no que pôde para melhorar o salto no período da tarde. E Miquelina Cobian me trouxe o médico da delegação cubana para cuidar do meu pé. Ele fez uma botinha de esparadrapo e firmou o meu tornozelo."

Faltava a alimentação, e então a jovem atleta resolveu meter as caras. "Na lanchonete, vi uma comida que lembrava camarão, peguei as moedinhas que tinha na bolsa e dei no balcão. Até hoje eu não sei se paguei tudo mesmo ou se fiquei devendo", relembra.

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Gueixa negra, sim, senhor

Chegou a tarde e, com ela, a grande final. A romena Iolanda Balas era um fenômeno da modalidade —recordista do mundo, ficou quase 200 competições sem perder. O ouro já era dela.

"Fiz um salto de 1,74m logo na primeira tentativa. Fiquei na frente da russa, que só tinha conseguido na segunda ou terceira tentativa. Mas foi algo tão inesperado que, dali para frente, não vi mais nada. Saltei novamente, mas não fiz nada melhor. Fiquei com a quarta colocação, mas se tivesse tido apoio de um treinador, teria feito outro salto ainda melhor e trazido com certeza uma medalha de prata, ao menos."

Iolanda venceu mesmo com 1,90m.

"Depois, atletas de outras delegações quiseram saber se não havia psicólogo em nossa equipe. E eu expliquei que a equipe de atletismo era eu sozinha."

E assim foi a epopeia de Aída dos Santos em terras japonesas. Passados uns meses, o técnico da equipe norte-americana veio ao Brasil para ver onde é que o fenômeno Aída treinava. "Ele não acreditou que eu treinava na terra e na grama, com uma armação de cano d'água, duas madeiras e prego. O técnico disse que se eu treinasse em lugar adequado, seria uma campeã olímpica."

Seu Praxedes, que viveu até os 101 anos, continuou flamenguista doente até o fim e não se comoveu com o feito olímpico da filha.

Na volta ao Rio de Janeiro, Aída mostrou no Botafogo, clube em que treinava, que tinha ganhado um vestido das amigas que fez no Japão, mas ouviu um comentário racista de um dirigente do seu clube.

"'Eu nunca vi gueixa negra', disse o tal dirigente, você acredita nisso? Em compensação, na festa que fizeram em minha homenagem, fui com o vestido e dancei: gueixa negra, sim, senhor!"

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