Charlie Brown

Como 'Minduim', Everaldo Marques não tinha habilidade esportiva. Hoje, se aproxima da glória olímpica

Beatriz Cesarini e Felipe Pereira Do UOL, em Tóquio Globo/João Cotta

Em 13 de setembro, um domingo, Everaldo Marques chorou ao desligar o microfone. Encerrara a primeira transmissão de sua vida da Fórmula 1 em uma TV aberta. Era sua estreia na Globo. O marco profissional do homem foi acompanhado do lastro sentimental do menino que se criou apaixonado por automobilismo. "Eu lembro muito da vitória do Emerson Fittipaldi em Indianápolis em 1989. Eu, com 10 para 11 anos de idade, na sala da minha casa gritando, pulando, torcendo e chorando."

Quando deixou os estúdios da emissora, Everaldo entrou no carro examinando a importância daquela transmissão em sua história pessoal. Na infância, ele desenvolveu gosto pela narração porque só tinha a companhia do rádio durante o dia. O pai e a mãe precisavam sair trabalhar. Evê escolheu uma música que considera carregada de simbolismo.

"Eu fiz uma coisa que eu não costumo fazer. Buscar uma música para ouvir especificamente. Era Na Estrada, do Cidade Negra, e ela diz: 'Você não sabe o quanto eu caminhei para chegar até aqui. Percorri milhas e milhas antes de dormir...'"

Termômetro dos humores nacionais, as redes sociais exaltavam a narração. A consagração individual do narrador ganhava validação coletiva. Só no Instagram foram cinco mil comentários. Os fãs que rolaram a página para imagens antigas viram postagens de Charlie Brown. Everaldo explica que ele e Minduim partilham a timidez, a falta de aptidão nos esportes e o tamanho da cabeça.

Meu, o Charlie Brown nunca conseguiu rebater uma bola na vida. Nunca roubou uma base. Nunca conseguiu chutar uma bola. Acho que a gente é parecido em algumas coisas. O Peanuts [nome do desenho] é uma coisa meio introspectiva."

Everaldo Marques aponta as semelhanças, mas concorda que sua trajetória se enquadraria no Charlie Brown que deu certo ao crescer. Filho de uma empregada doméstica com um zelador, ele narrou bingo aos sete anos e agora trabalha na maior empresa de comunicação do país. Vai narrar skate e surfe nas Olimpíadas de Tóquio. "Consegui chutar a bola, consegui chegar na base."

Globo/João Cotta

Ridículo, sim. Tímido, também

Everaldo é tão extrovertido quando está narrando que os telespectadores que enviam mensagens em suas transmissões usam linguagem de boteco. Essa desenvoltura ocorre só no profissional. Companheiro de ESPN por 14 anos, Paulo Antunes conta que o amigo é tímido. E o narrador confirma o diagnóstico. "Sou tímido pra caramba".

Ele acrescenta que quando é abordado por anônimos na rua não consegue evitar que suas bochechas fiquem vermelhas (mesmo por trás da máscara) enquanto bate uma foto ou atende o pedido para gravar uma videochamada com o famoso "você é ridículo". Não é que Everaldo seja uma pessoa diferente fora do ar. É que o microfone exerce nele o mesmo efeito que a "Máskara" exercia em Jim Carrey no sucesso do cinema.

Ele se sente seguro e tão à vontade que consegue, naturalmente, deixar a introspecção de lado. É como aquela criança que chega cautelosa no primeiro dia de aula da escola e não quer voltar para casa quando encontra o melhor amigo. "É que ali, eu sou o narrador, não sou o Everaldo que está em casa. Ali é o cara que está realizando o sonho de infância. A hora que o microfone liga, muda. E não dá para dizer que eu sou um personagem, continua sendo eu, mas ali eu tenho muita confiança do que eu sou profissionalmente. Eu me solto".

Globo/João Cotta Globo/João Cotta

"Eu era o Luciano do Valle, o Galvão Bueno"

O microfone muda o humor de Everaldo desde pequeno. Filho único, ele voltava da escola e encontrava a casa vazia. Os pais estavam trabalhando. Preenchia o silêncio de não ter com quem conversar com o rádio e a televisão. "Eu tive uma infância muito solitária. Sou filho de zelador e doméstica. Minha mãe trabalhava o dia inteiro fazendo faxina nos apartamentos do prédio em que a gente morava e meu pai praticamente não ficava em casa. Meus grandes companheiros eram o rádio e a TV".

A programação preferida era o esporte, não importava qual. Autodeclarado "pior praticante de qualquer esporte que o mundo já conheceu", ele se alegrava com as transmissões da década de 80.

No futebol da molecada, ao invés de ser o último a ser escolhido, Everaldo assumia outro papel. "Quando ia ver meus amigos jogando bola, eles fingiam ser os jogadores: Falcão, Jairzinho, Gerson... E eu não era Everaldo, eu era o Luciano do Valle, o Galvão Bueno".

Globo/Mauricio Fidalgo
Everaldo com uniforme da Globo: o que seu Tuta diria?

"Você é bom repórter, mas não o vejo como narrador"

Foi assim que Everaldo colocou na cabeça que só seria realizado profissionalmente no dia que empunhasse um microfone de narrador esportivo. Enquanto cursava o último ano do ensino médio, ele se inscreveu num curso de jornalismo esportivo ministrado por Flávio Prado, hoje apresentador do Mesa Redonda, da TV Gazeta. Os olhos de Everaldo brilharam na primeira visita à Jovem Pan, onde Flávio Prado trabalhava na época. Evê se ofereceu para trabalhar de graça. "Ele era um cara que lutava pelo que queria e isso já o tira da média. A persistência já é um dom diferente", afirma Flávio.

Mas como não é possível viver de vento, o rapaz conciliava a vida de colaborador da rádio com outros bicos remunerados: desde ajudante de marceneiro até monitor de buffet infantil. Nos tempos livres, estudava para o vestibular da faculdade de jornalismo. No fim de 1999, após dois anos de trabalho voluntário, a Jovem Pan ofereceu um contrato.

De contrato assinado, Everaldo foi à sala do dono da rádio, Antônio Augusto Amaral de Carvalho, conhecido como Seo Tuta, para expor o sonho em se tornar narrador. A ideia era substituir os titulares nas férias deles. "Você é um bom produtor, um bom repórter, mas não o vejo como narrador", respondeu o dono da Jovem Pan.

Reprodução
Everaldo Marques em 2002, quando era repórter de F1 da Jovem Pan

Narrador, não. Repórter

No fim de 2001, a Jovem Pan sofreu mudanças. Nilson Cesar, que comandava a Fórmula 1, foi promovido a locutor principal do futebol. "Eu parei de narrar F1 e falei para a direção da rádio que o nome que deveria me substituir era o Everaldo", contou Nilson Cesar. Era a chance de Evê.

"Eu narrei o Grande Prêmio dos EUA de 2001. Era para ser um teste, esquema experimental e tal. Só que o Nilson abriu e passou para mim, perto da hora da largada, de um jeito carinhoso, como se estivesse fazendo uma passagem de bastão, dando a entender que, dali para frente, eu seria o titular de F1 da rádio. E ele tomou um esporro por causa disso", conta Everaldo.

Seo Tuta escalou Evê como repórter correspondente para correr o mundo cobrindo a Fórmula 1 a partir de 2002. "Eu nunca perguntei porque o Seo Tuta não me via como narrador. Eu não ia insistir. Imagina, você para o Silvio Santos no meio do corredor e perguntar? Não tem como."

Portas fechadas na Jovem Pan

Mesmo viajando o mundo como repórter, o sonho em se tornar narrador não diminuiu. Em 2004, Everaldo teve a chance transmitir as Olimpíadas de Atenas pela TV Bandeirantes. Seria um freela de 15 dias. "Falei com o Seo Tuta e ele: 'Não vou te liberar, porque é Bandeirantes'. Jovem Pan e Bandeirantes tinham uma rivalidade na época".

Passaram-se alguns dias e Everaldo foi procurado pela DirecTV para narrar uma noitada de boxe com Popó, que era o campeão do mundo na época. Seo Tuta não estava na redação e fez chegar o recado que liberaria, mas não gostara da situação. A transmissão aconteceu num sábado à noite e, na segunda-feira, Everaldo pegou sua malinha e partiu para rádio pegar passagem e dinheiro para cobrir o Grande Prêmio da Hungria. Seo Tuta tinha cancelado tudo e Evê foi passar a história a limpo.

-- Bom dia, Seo Tuta.
-- Bom dia
-- Eu vi que o senhor cancelou a viagem
- É, você tá fora da Fórmula 1. Não vai mais viajar para nenhuma corrida. Se você quiser trabalhando normal aí, você continua. Se não quiser, pode ir embora.
-- Que que foi, Seo Tuta?
-- É, você não queria fazer televisão? Vai fazer televisão no quinto dos infernos.
-- O senhor está me punindo por uma coisa que você me autorizou a fazer?
-- É...

A vontade de Evê foi jogar tudo para o alto, mas a necessidade se impôs a emoção "Engoli o jaboti com casca e tudo, voltei para a redação e retomei minhas atividades de antes. Voltei a ser plantão esportivo, voltei a fazer produção."

Reprodução/Instagram
Evê durante a cobertura do Super Bowl

Luz no fim do túnel

No fim do ano, a chance de virar narrador apareceu quando a TV cultura adquiriu os direitos da Copinha. Mas estava longe de ser a proposta dos sonhos. "Me ofereceram um contrato de 30 dias, porque era a duração da Copinha. Diante da minha situação desgastada na Jovem Pan, eu fui".

A primeira narração oficial na TV Cultura teve bola na rede pelo lado de fora narrada como gol. Evê tremeu. "Quando terminou o jogo, eu pensei: 'Vai dar merda isso aqui'. O diretor, Hélio Alcantara, me ligou: 'Até que você se virou bem para consertar a cagada. Fica tranquilo, acontece'". A Cultura foi fechando contratos para transmitir esportes ao longo de todo aquele ano. O que era para ser 30 dias, durou praticamente todo o ano de 2005. Charlie Brown chegou à primeira base.

Everaldo entrara no mercado de narradores e no radar de José Trajano, um dos fundadores da ESPN Brasil. A emissora tinha fechado o escritório nos Estados Unidos e precisava de uma equipe para as transmissões de esportes norte-americanos. Antes mesmo da primeira transmissão, Everaldo avisou que acompanhava futebol americano e se colocou a disposição para transmitir a modalidade. O narrador encontrou um nicho e virou referência de NBA e NFL no jornalismo esportivo brasileiro. "O Everaldo sentiu que tinha um caminho importante numa TV que transmitia esportes americanos, que estava ganhando o público, e se enfronhou ali", explica Trajano.

Leo Martins/UOL Leo Martins/UOL

#Gratidão

Após "bingos", "ridículos", "é isso aí, Tom Brady" e uma confusão com o fandom da Lady Gaga, o ciclo na ESPN chegou ao fim após 15 anos. Em 2020, o Grupo Globo convidou Everaldo para compor o quadro de narradores. Depois da família, o próximo a saber dessa grande mudança foi Trajano. "Fiz questão de ir lá cumprimentá-lo, de falar pessoalmente, porque foi ele quem me deu a maior oportunidade da minha carreira."

Everaldo participou do programa "Bem Amigos" e recebeu as boas-vindas do ídolo Galvão Bueno. Chegar à Globo com status de estrela é uma situação que nem todo mundo sabe lidar. Não são raros os relatos de arrogância, estrelismos e exibicionismo de quem vira global. Os companheiros dizem que Evê tomou a primeira e a segunda dose contra a vaidade. "Nós vivemos, e eu me incluo, com muita visibilidade, muita gente procurando a gente, é uma vitrine. E a vaidade às vezes toma conta. É uma habilidade saber lidar com isso como ele faz. Ele não se deslumbra com esse universo que a gente vive", acrescentou o narrador Gustavo Villani.

E como que Everaldo driblou essa vaidade? "Como produtor, fui vítima de alguns episódios de estrelismo que colocaram na minha cabeça a seguinte ideia: 'Se um dia eu estiver nesta posição, eu não vou tratar as pessoas desse jeito, porque eu não estou gostando de ser tratado assim e tenho certeza de que se eu tratar alguém assim, ninguém vai gostar'. Então é isso."

Reprodução
Galvão e Everaldo

#Foco

Os esportistas que Everaldo admira ajudam a entender como sua cabeça funciona. Ele exalta Tom Brady e Cristiano Ronaldo. Justifica que Peyton Manning e Lionel Messi são melhores tecnicamente, mas os dois compensam na dedicação e assim tornam-se lideranças que arrastam os companheiros para os títulos.

Quando o assunto é microfone, é Evê quem é considerado um talento. Mas ele ressalta que só aptidão não é suficiente. "Talento não é tudo. Tem uma frase que diz que talento sem esforço é desperdício, então eu me esforço muito também."

Os esportistas favoritos e a identificação com Charlie Brown revelam muito em como Everaldo enxerga o mundo. No desenho, Minduim não era apenas um menino azarado e sem habilidade. Ele tinha uma fé inabalável, capacidade para esquecer fracassos e coragem de tentar quando todos duvidam do sucesso.

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