O peso do recomeço

Thiago Paulino perdeu a perna em um acidente e teve de engordar quase 100 kg para recomeçar a vida no esporte

JR Duran (fotos) e Talyta Vespa (texto) Colaboração especial para UOL, em São Paulo JR Duran/UOL

A bola no pé é a principal lembrança da infância do paratleta paulista Thiago Paulino. Lá em Orlândia, no interior no Estado, numa casinha em que morava com os pais e o irmão, dez anos mais novo, Thiago jogava bola. O dia todo. Enquanto os pais trabalhavam (ambos eram funcionários de uma empresa do ramo alimentício), o menino passava o dia com a avó, que enlouquecia com a falta de parcimônia quando o assunto era esporte.

O futebol, porém, precisou ser deixado de lado após um acidente de moto que ele sofreu aos 20 anos. O choque entre o veículo e um carro fez com que Paulino precisasse amputar a perna esquerda. Hoje, Paulino é o principal nome brasileiro no arremesso de peso e no lançamento de disco do atletismo paralímpico. No currículo, acumula três títulos mundiais e dois recordes mundiais obtidos após ganhar quase 100 kg.

"Eu não tinha muito conhecimento a respeito do que esse esporte demandava. Fazia uma dieta comum, com um número de calorias diárias considerado baixo. Por causa disso, não tinha tanta força nem disposição para aguentar os treinos. Comecei a treinar em 2010 e, em 2015, fui convocado pela primeira vez", conta.

Antes de começar a treinar, Thiago chegou a pesar 78 kg. Nos Jogos Pan-Americanos de Toronto (2015), em que estreou em eventos internacionais pela seleção brasileira, já marcava 100 kg. Hoje, a balança aponta 165 kg —ostentados com orgulho de quem está invicto em competições internacionais desde 2016.

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Corpo de Atleta, com JR Duran

Os Jogos Olímpicos de Tóquio, adiados pela pandemia, começam no dia 23 de julho. Durante duas semanas, você verá os melhores atletas do mundo competindo por medalhas. E nem todos esses melhores atletas do mundo têm o corpo que você imagina ser o ideal, que se vê nas capas de revista, magros e com tanquinho. O corpo perfeito de um atleta é aquele que o torna o melhor naquilo que ele faz. E pode ser alto ou baixo, longo ou curto, magro ou gordo.

Para mostrar cinco corpos perfeitos que desafiam o estereótipo que a sociedade definiu como ideal, o UOL Esporte e o fotógrafo JR Duran contam a história de cinco atletas que fogem do padrão de beleza imposto diariamente a cada um de nós. Eles compartilham como a força e o peso são, na essência, o que os transformou em campeões. É esse corpo —já tão criticado— o instrumento de resistência e vitória desses esportistas e deveria ser também o motivo de orgulho para todos que não se veem representados pelo padrão. Eles são foda porque são gordos.

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A primeira convocação

Nos Jogos Parapan-Americanos de Toronto, Paulino foi ouro no arremesso de peso e bronze no lançamento de disco. Achou que estava muito bom e foi para o Campeonato Mundial de Doha, alguns meses depois. "E lá foi um choque de realidade. Quando cheguei para a primeira competição e vi o porte físico dos meus adversários, fiquei em choque. Todos eram muito maiores do que eu", conta.

Apesar de eu me olhar no espelho e me sentir bacana fisicamente, entendi que, por ser magro, rendia menos. Não conseguia aguentar o que meus adversários aguentavam. Nessa competição, fiquei em sétimo lugar no arremesso de peso; no disco, terminei em 12º."

Em 2015, Thiago, que mede 1,90 m, já pesava 100 kg. O limite mínimo dos três dígitos era sua referência. "Como eu não tinha muito conhecimento sobre o esporte, mantinha uma dieta baixa em calorias. Com isso, não tinha tanta força para aguentar os treinos. A prática do lançamento é muito pesada, exige muita força, e eu estava bem abaixo em termos de rendimento em comparação a outros atletas. Eles lançavam muito mais peso que eu", conta.

Quando fez a transição para a cadeira (antes, competia sentado no chão), Thiago entendeu que precisava ganhar mais força. Para isso, precisava mudar a alimentação. "E no centro paralímpico, conheci um nutricionista que sabia o que fazer. Ele entrou com suplementação e mudou minha dieta para que eu ganhasse peso e aguentasse o treino, que estava bem pesado."

Hoje, Thiago treina de segunda a segunda, em dois períodos. Pela manhã, faz musculação com halteres e, à tarde, entra a parte mais técnica do esporte, os arremessos. Para aguentar tudo isso, após cinco anos, ele chegou aos 165 kg.

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Bebida alcoólica e acidente

Desde sempre foi assim: quando criança, Thiago ficava sob os cuidados da avó enquanto os pais trabalhavam. Na casa-em-que-tudo-pode, estudava, mas gostava mesmo era de jogar bola. "Minha avó ficava atrás de mim enquanto eu passava o dia na rua. Sempre pratiquei esporte, adorava jogar bola", conta.

Thiago conheceu o atletismo depois do acidente que mudou sua vida. "Eu trabalhava como segurança em Ribeirão Preto, cidade vizinha à minha. Naquele dia, ingeri bebida alcoólica, peguei a moto e voltei, à noite, para casa. No caminho, um carro me fechou, eu caí e perdi parte da perna esquerda. No momento do acidente, meu pé já foi arrancado e, então, no hospital, minha perna foi amputada."

Na hora, tentei levantar, resgatar a moto. Aí, caí. Foi quando vi que não tinha mais o pé. No hospital, quando acordei, no dia seguinte, me dei conta do que tinha acontecido. Levantei da maca e, quando fui apoiar a perna esquerda no chão, caí de novo. Fiquei assustado, confuso. No entanto, enquanto estava na cama do hospital, minha mulher descobriu que estava grávida. Então, precisei parar de enxergar apenas dificuldades. Tinha uma nova vida pronta para mim ali."

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Atletismo como nova vida

Enquanto estava internado, Thiago recebeu a ligação de um amigo que trabalhava como instrutor esportivo de um projeto social para jovens menores de idade. "Foi a primeira vez que pensei no atletismo sob a minha nova condição", diz.

Ali, no hospital, mesmo, comecei a pesquisar sobre o paratletismo. Quando tive alta, estava decidido: iria treinar atletismo de peso. Durante o tempo de recuperação, que durou seis meses, comecei a fazer a academia. Precisava ganhar um pouco de massa. Depois do acidente, perdi muito peso e cheguei aos 78 kg. Meus amigos se reuniram, fizeram um pagode solidário e arrecadaram dinheiro para comprar uma prótese. Comecei a treinar e minha filha nasceu quando fui para a minha primeira competição. Eu treinava há um mês e, mesmo assim, meu técnico me inscreveu nos jogos regionais em Taquaritinga. Ganhei três medalhas de ouro. Quatro com a minha filha."

Em dez anos, Thiago se tornou colecionador de conquistas: é hexacampeão brasileiro e bicampeão parapan-americano no arremesso de peso; no disco, levou medalha de bronze no Parapan-Americano de 2015 e pegou o quinto lugar na Paraolimpíada do Rio, em 2016. É, também, bicampeão mundial de arremesso de peso, campeão mundial no lançamento de disco, recordista mundial em ambas as modalidades. Somando diversos títulos internacionais, está invicto desde 2016 em todas as competições pelas quais passou.

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Peso das conquistas

Para colecionar os tantos feitos, Thiago precisou aceitar um corpo vitorioso de 165 kg, mantido sob uma alimentação pouco restritiva: "Faço de quatro a cinco refeições por dia, geralmente bastante balanceadas de acordo com o treino", conta. "Nunca tive tantos problemas de autoestima por causa do meu peso, apesar de eu ter bastante dificuldade de encontrar roupas que me caibam", conta.

Mesmo dentro da seleção brasileira, não havia tamanhos adequados para a altura e o peso do atleta. "Hoje, o Comitê Paralímpico Brasileiro tem sua própria confecção de roupas, então ficou mais fácil me vestir confortavelmente. Porém, antes, os uniformes eram patrocinados pela Nike —e as roupas iam até o GG. Tudo que eu usava ficava muito apertado, e eu ficava complexado", afirma.

A maioria das minhas roupas são roupas de basquete. Minha mulher fala o tempo todo que parece, mesmo, que eu jogo basquete."

Ao observar a angústia do marido na procura de roupas que o agradassem, a mulher de Thiago decidiu abrir uma confecção de roupas grandes. "Ela entendeu que é um nicho importante a ser preenchido. A única loja em que compro roupas hoje é uma marca de Ribeirão Preto, cidade que fica a uma hora de Orlândia, onde moro."

"Entendo que o meu tamanho, que, muitas vezes, impressiona quem não é do esporte, é o que me fez chegar até aqui, o que me fez recomeçar minha vida do zero. O atletismo de peso é um esporte para pessoas grandes. Um atleta magrinho, trincadinho, geralmente não se sai bem nesse tipo de prova. Tem que ser grande e ter muita força. Por isso, apenas agradeço ao meu corpo."

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Mesmo depois do acidente, sempre fui muito seguro em relação à minha aparência. Eu gosto de estar na moda, de sair bem vestido, só que esse tipo de roupa não chega ao meu tamanho. E aí, sim, vem a frustração. As pessoas acham que porque estou gordinho, qualquer coisa serve. E não é assim, gosto de me sentir bem e me sentir confortável."

Thiago Paulino

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