Entre a raquete e a enxada

Hugo Hoyama aprendeu a disciplina do esporte cortando pé de alface na lavoura da família japonesa

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Marcus Steinmeyer/UOL

O menino Hugo era mimado.

O atleta que disputou seis Olimpíadas, que ganhou 15 medalhas pan-americanas (sendo dez de ouro) e que foi porta-bandeira do Brasil no Pan de Guadalajara-2015 quase não se transformou em um campeão. E, agora, às vésperas dos Jogos de Tóquio-2020, em que será o técnico da equipe feminina de tênis de mesa, ele se lembra, inevitavelmente do peso da enxada que mudou seu destino.

"Eu tinha talento para o esporte, mas levava tudo na brincadeira", reconhece Hugo Hoyama, que começou a bater sua bolinha com o vovô Shimotinho, na mesa improvisada da sala de sua casa em São Bernardo do Campo. "Eu não era indisciplinado, eu era sapeca".

Aos sete anos, Hugo já treinava para valer e disputava torneios defendendo o Palestra de sua cidade do ABC paulista. Mas era um garotinho levado. Se a bolinha batesse no cabo da raquete e repicasse na cabeça de seu parceiro de duplas, caía na gargalhada. Se errasse uma jogada importante por puro desleixo, nem ligava.

Tinha muito jeito para o tênis de mesa e, a esta altura Shimotinho, o Ditian (que é como os nisseis chamam os vovôs), já não era páreo para o neto bom de raquete. Hugo ganhava todos os torneios.

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Conexão Tóquio

A partir de 23 de julho, olhares brasileiros estarão voltados a Tóquio, onde acontecerão os Jogos Olímpicos de 2020 —adiados para 2021 por causa da pandemia de coronavírus. É uma chance de a maior comunidade japonesa fora do Japão do planeta aumentar um pouquinho a conexão com sua terra natal. Segundo o Ministério de Relações Exteriores do país asiático, são mais de dois milhões de japoneses ou descendentes vivendo no Brasil.

E a influência japonesa em nosso esporte é forte, como mostra a série Conexão Tóquio, do UOL Esporte. Em cinco capítulos, vamos mostrar como alguns dos grandes nomes do esporte no Brasil têm um pouquinho de japonês em sua história. São relatos de imigração, conhecimento e, às vezes, preconceito, que contam como os japoneses são importantes para nós.

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Disciplina à força

Na adolescência, enquanto tratava o esporte como a mais legal das brincadeiras, Hugo viu sua chance de trilhar carreira no tênis de mesa ficar por um fio. Criado dentro dos preceitos da educação da terra dos seus avós, o pequeno Hugo não percebia que as advertências do seu querido avô logo se transformariam numa punição, dada pelas mãos de seu próprio pai.

Ele era de uma família de agricultores vindos do distrito de Kochi, na Ilha Shikoku —pessoas que sabiam que nada cai do céu, além da chuva para regar as plantações.

"Um dia, depois de ter sido eliminado nas semifinais de um Campeonato Brasileiro, cheguei em casa como se nada tivesse acontecido", relembra Hugo, na época já com seus 15 anos. Era o quinto torneio seguido em que caia nas semifinais. Era uma das promessas do tênis de mesa do país, mas não parecia muito preocupado com as derrotas. "Ainda por cima, saí à noite com os meus amigos de outros estados que tinham vindo disputar a competição".

No dia seguinte, quando acordou, o pai quis saber o que havia acontecido na competição. "Perguntou como eu tinha perdido nas semifinais, como tinha sido a partida, se não tinha ficado chateado e por que tinha saído com os amigos. Disse que eu não parecia muito preocupado. E, então, me convocou para acompanhá-lo no dia seguinte à lavoura da família, que era de onde ele tirava o nosso sustento".

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Colher abobrinha e cortar pé de alface

Ainda sem entender direito o que acontecia, o jovem acompanhou o senhor Kendi bem cedinho às plantações da família. Tinha vários tipos de verdura, abobrinha e outros legumes. Pensou que iria apenas dar ordens, mandar empregados cumprirem tarefas. "Mas logo meu pai me deu uma enxada e eu fui mesmo é para o trabalho duro, colher abobrinha, cortar pé de alface", relembra.

Foi sob o sol e o barulho das pancadas da enxada na terra que Hugo Hoyama começou a pensar em tudo o que o seu técnico, Maurício Kobayashi, falava sobre foco, seriedade e envolvimento com o esporte. Se ele quisesse ser um jogador de verdade, talento apenas não seria o bastante. "E acho que foi ali, na roça, que comecei a me tornar um jogador de verdade".

Ao final do dia, as mãos estavam esverdeadas pela colheita das verduras. E as unhas, sujas de terra como um bom chacareiro.

Quando cheguei em casa, pensei em tudo isso. Olhei para as minhas mãos e entendi finalmente a mensagem."

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Punição a cada erro

Depois de dois meses trabalhando como agricultor, os treinos passaram a ser levados com maior seriedade —e a cobranças do técnico Maurício deixaram de ser constantes.

"Primeiro, quando eu errava, ele me mandava fazer dez abdominais. Eu errava de novo, ele mandava fazer 20. E eu perguntava: por quê? E ele aumentava para 40. Uma vez, fiz mais de oitenta. Com a minha atitude, eu acabava desconcentrando todo mundo no treinamento".

Hugo achava engraçado. "O maior castigo que sofri foi correr uma hora no campo de futebol. E, depois, repetir 2.000 movimentos na frente do espelho. E eu fazia na boa, porque era obrigado. E, se não fizesse, podia ser mandado embora".

Hugo diz que não tinha medo do técnico Kobayashi. "Eu tinha respeito: ele era rigoroso sim, mas não era maldoso."

A experiência na lavoura mudou a reação do atleta: "Eu já não ria dos meus próprios erros", recorda Hugo. "Com o tempo, fui entendendo melhor o significado das palavras do Maurício Kobayashi: ele me dizia que, no dia em que parasse de me dar broncas, ele não iria mais me ajudar. Lembro que, às vezes, mesmo ganhando, eu levava um sermão de meia hora porque não tinha me empenhado como devia".

Atualmente, aos 52 anos e técnico da equipe nacional feminina, Hugo compreende ainda melhor as broncas e orientações do treinador.

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A vida no Japão

Não foi só o tempo no regime japonês de lavoura que moldou Hugo Hoyama. Quando os resultados começaram a aparecer, o menino aprendeu outra lição sobre a cultura japonesa: como se portar no dia a dia e no esporte. "Foi quando fui estudar e treinar no Japão".

Foram dez meses como estagiário na Universidade Nihon Daigaku. "Ali, entrei em contato mesmo com o jeito japonês de ser. Já sabia os métodos, já cheguei de cabelo raspado no alojamento da universidade e fui muito bem recebido. Lá, realçaram os ensinamentos de respeito, de disciplina e de educação. E eu era reconhecido pelo esporte porque, em uma competição, eu ganhei do campeão japonês do ano anterior".

Também ficou gravado que, no Japão, o respeito aos mais velhos é total. "Um ano de diferença na escola é fundamental. O pessoal do segundo ano pede coisas e a gente faz, mesmo porque não há maldade. E, no clube em que eu treinava, o capitão tinha completo controle da situação —tenho contato com Sato Keino até hoje e se for possível vou encontrá-lo na Olimpíada".

Hugo sabe que, nessa Olimpíada, os atletas vão ficar praticamente dentro de uma bolha e os contatos serão reduzidos. Mesmo assim, se der tempo, Hugo sabe se virar direitinho nos metrôs japoneses e nos trens que formam a base do sistema de transportes de uma das maiores metrópoles do mundo. "Afinal, foram 10 meses morando em Tóquio. Eu tenho a cidade como minha segunda casa, de verdade".

Fã de um bom prato de arroz, ele sabe que qualquer botequinho oferece o prato ao gosto do freguês.

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Olimpíada como técnico

Hugo sabe que as Olimpíadas de Tóquio serão uma competição muito diferente daquelas seis em que tomou parte como jogador. Sua estreia foi em 1992, nos Jogos de Barcelona, em 1992, quando, na estreia, bateu um russo forte, perdeu o segundo jogo, ganhou o terceiro, mas só um jogador por grupo seguia adiante.

"A minha maior exibição olímpica aconteceu quatro anos depois", recorda Hugo. "Venci o primeiro jogo contra o sueco Jorgen Persson, que tinha sido campeão do mundo. Foi minha maior apresentação olímpica. Na segunda partida, estive perto de outro resultado incrível: ganhei os dois primeiros sets do Petr Korbel, da República Tcheca". Korbel um veterano do tênis de mesa, medalhista por equipes no Mundial de 1988.

Mas Hugo Hoyama estava em seu esplendor. "A gente sabia que falar em medalha era quase impossível, mas pusemos em nossa cabeça que faríamos jogo a jogo. Set a set. Como agora eu falo para as meninas que vão a Tóquio: é um dia após o outro. E foi assim que eu entrei para jogar contra o tcheco".A partida estava nas mãos do brasileiro. O adversário parecia abalado com o placar inesperado. "Eu abri dois sets a zero. Parecia que estava com o jogo nas mãos. O cara arriscou tudo no terceiro set, venceu, pegou confiança e acabou ganhando de virada por 3 a 2. Acabei o torneio olímpico em nono lugar". Korbel foi o quarto.

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Com certeza, o agora treinador Hugo Hoyama vai falar muito sobre esse jogo com as meninas da seleção: Jéssica Yamada, Carol Kumahara, Bruna Takahashi e Giulia Takahashi. A ilusão quanto a grandes classificações não é alta, mas ele espera bons resultados. "Sabemos das dificuldades, porque as asiáticas são a potência feminina, mas vamos traçar nosso caminho, como fizemos em 2014, quando chegamos ao campeonato mundial da segunda divisão e o nosso grupo foi campeão por equipes".

Hugo Hoyama gosta de contar suas histórias e, como, poucos pode se orgulhar das seis olimpíadas disputadas. "Só a Formiga, o Robert Scheidt, o Torben Grael e o Rodrigo Pessoa têm esse privilégio". Os dois primeiros, aliás, vão para sua sétima Olimpíada em Tóquio.

Foi contando suas histórias que Hugo Hoyama conheceu a sua esposa, a jornalista Cindy, que fazia uma matéria sobre ele. Se casaram em 2014 e agora curtem a pequena Ariel.

É o meu bebezão."

Alguém duvida de que ela vai jogar tênis de mesa?

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