O olhar de Daniel

Bronze no judô, Cargnin mirou no ídolo, superou covid-19 e viveu saudade e dor para ser medalhista olímpico

Beatriz Cesarini e Demétrio Vecchioli Do UOL, em Tóquio Harry How/Getty Images

Daniel Cargnin tinha 13 anos quando viveu a primeira grande reviravolta de sua vida. Ele treinava em uma pequena academia de Canoas (RS) e foi visto por Kiko Pereira, técnico do então campeão do mundo de judô João Derly. Alguma coisa no garoto chamou a atenção do experiente sensei, que perguntou o que ele buscava.

Eu perguntei o nome dele e o que ele queria ali. Depois de falar que era Daniel, não respondeu mais nada. Só ficou olhando para mim. Eu vi o olhar desse guri e pensei: 'é diferente'. E disse para ele: 'Tu quer ser campeão do mundo que nem o Derly, né?'".

Kiko reconheceu no menino um olhar que já tinha visto antes. O treinador gaúcho nunca foi a uma Olimpíada como técnico principal da seleção brasileira de judô, mas há poucos que conquistaram tanto quanto ele: já são cinco títulos mundiais e cinco medalhas de bronze olímpicas de atletas que passaram por suas mãos.

A segunda reviravolta aconteceu neste domingo (25). Depois de ter pensado em desistir quando perdeu o mundial por ter contraído o coronavírus, Daniel ganhou a medalha de bronze na categoria meio-leve nos Jogos Olímpicos. O resultado foi, sem dúvida, fruto daquela interação simples que uniu dois olhares —o da experiência e o da curiosidade.

Uma década depois do encontro, Daniel Cargnin é medalhista, feito que nem mesmo o ídolo João Derly conquistou.

FRANCK FIFE/AFP

Na mira, o céu

Em uma seleção com atletas experientes como Mayra Aguiar, Rafael Silva —o Baby—, e Maria Suelen Altheman, Daniel não chegou em Tóquio como um dos judocas brasileiros mais cotados para conquistar medalha. Ele surpreendeu ao se classificar para as quartas de final após vencer dois fortes adversários: o egípcio Mohamed Abdelmawgoud e Denis Vieru, da Moldávia.

Os olhos do Brasil, então, se voltaram totalmente ao gaúcho quando ele superou o italiano Manuel Lombardo, atual número 1 do mundo, e conquistou a vaga nas semifinais. A disputa por um espacinho na final foi com o japonês Hifume Abe. A um minuto e 35 segundos do fim do combate, Daniel levou um ippon, mas precisou manter a cabeça no lugar. Afinal, ainda tinha medalha em jogo.

Antes de retornar ao tatame para a disputa da medalha de bronze, Cargnin se lembrou de um vídeo do jogador de futebol Cristiano Ronaldo. "Ele diz: 'pode até não acontecer, mas se você não acreditar, quem vai?' Passei a focar no presente. Com essa determinação, o gaúcho obteve um wasari e segurou o resultado com inteligência. Assim que os tambores soaram decretando a vitória sobre o israelense Baruch Shmailov, o judoca olhou para céu, emocionado.

Se alguém que não é cotado consegue ser campeão olímpico, por que eu não? É isso que vou tentar passar: acreditar, sempre."

Sergio Perez/Reuters Sergio Perez/Reuters

Renovação à moda antiga

Em janeiro, quando acabou o Masters de Judô, em Doha, o campeão mundial Luciano Corrêa ligou para o medalhista olímpico Flávio Canto. Os dois estavam preocupados com os resultados do Brasil. A seis meses das Olimpíadas, o país não só não tinha ganhado nenhuma medalha no Masters, como não havia feito qualquer disputa de bronze.

Os resultados estavam escassos, restritos quase que somente aos pesos-pesados e a Mayra Aguiar —que, no início do ano, estava machucada. Com o diagnóstico de que precisariam unir forças para ajudar a comissão técnica, decidiram pensar em uma forma de ajudar.

Aos dois, se juntaram os ex-judocas Erika Miranda, Sarah Menezes, João Derly e Leandro Guilheiro. Eles criaram um grupo de WhatsApp, que ganhou o nome Brainstorm —termo em inglês para uma reunião de pessoas para discutir ideias e propostas. Seis meses depois, o time comemora que a geração que pouco deu resultados até Tóquio chegou ao pódio exatamente na hora que importava.

"A intenção sempre é de fazer o bem, de querer ajudar. Essa conquista lavou a alma, proporcionou um sentimento de que foi concretizada a renovação", comenta João Derly.

Depois que ofereceram ajuda, os ex-atletas passaram a ser chamados para participar de treinamentos da seleção. Luciano Corrêa relembra: "O primeiro que teve disponibilidade foi Leandrinho, que foi para Pindamonhangaba (onde a seleção tem treinado). Em um segundo momento, Derly também foi e bateu um papo com os atletas. A gente tentava fazer com que sempre tivesse um de nós para motivá-los e passar experiência."

Gaspar Nóbrega/COB

Olhar parecido

João Derly já sabia que a Olimpíada de Daniel acabaria em medalha. Campeão mundial em 2005 e 2007, o gaúcho recebeu, durante a madrugada, uma mensagem de outro treinador importante do judô brasileiro, Luiz Shinohara, coordenador técnico do time masculino em Tóquio-2020

Ele me mandou mensagem dizendo que o olhar do Daniel estava parecido com o que eu eu tinha; que ele estava se lembrando de mim."

Derly, então, se lembrou de quando ele mesmo conheceu o judoca. "Ele que chegou até mim; Daniel era muito ousado. No treino, naquelas provocações e brincadeiras, fui treinar com ele. Ele era metido, no sentido de não ter medo. Isso me marcou", conta.

"Tenho uma foto de nós dois treinando, acho que era 2013, e eu postei que seria a nova geração do judô. E aí está: medalhista olímpico, bronze, baita Olimpíada desde a primeira luta", comemora.

O pessoal sempre comparava o Daniel comigo, porque eu sempre fui assim também: metido, no bom sentido, de enfrentar os desafios, sem medo de lutar com alguém maior. Passa um vídeo na cabeça da gente."

Os dois lutam na mesma categoria, meio-leve, para atletas de até 66 kg. E, se Derly tem dois ouros em Mundiais, agora Cargnin é o terceiro brasileiro a subir ao pódio nessa categoria. Os outros dois são Rogério Sampaio, campeão olímpico de Barcelona-1992, e Henrique Guimarães, bronze em Atlanta-1996.

Daniel chegou a fazer disputa de bronze no primeiro Mundial dele, ficou em quinto. Até brinquei que, no meu, eu fiquei em sétimo, então ele iria mais longe do que eu."

João Derly, ídolo de Cargnin e bicampeão mundial

Como ele, tínhamos características fortes, mas não estávamos cotados para medalha. Acho que isso até ajuda a ter menos pressão. Não tem aquela história de já ir para as Olimpíadas com uma medalha no peito."

Henrique Guimarães, bronze em 1996

É muito importante para ele, para a família dele. É um dia especial, que dá ainda mais entusiasmo para os próximos judocas que vão lutar. É importante porque mantém a tradição do judô, que, desde 1984, tem medalha no masculino."

Rogério Sampaio, ouro em 1992

Reprodução/Instagram

Família... em japonês!

Tatuada no peito, Daniel carrega a palavra família, escrita em kanji —os caracteres da língua japonesa. Assim que deixou o tatame após conquistar sua medalha de bronze, o judoca só queria telefonar para a mãe, que, segundo ele, é tão medalhista quanto o filho.

"Liguei para a minha mãe e para a minha irmã. São pessoas que me amam e gostam de mim independentemente do resultado. Dedico à minha mãe essa medalha. Ainda avisei: se 'medalhar', é nossa, mas se eu perder também estamos juntos", afirma.

A mãe do judoca, Ana Rita, é enfermeira e trabalha na linha de frente do combate ao coronavírus. Ela foi a responsável por apresentar o judô ao filho e sempre o auxiliou na rotina forte de treinos. A pandemia separou os dois, e Daniel deixou a casa em que morava para evitar o contágio. Não foi fácil, mas mãe e filho fizeram de tudo para permanecer juntos, mesmo que fisicamente distantes.

Ela, mesmo de longe, me ajudou muito. Foi ao mercado, comprou umas coisas —higienizava tudo e deixava na minha porta. Ela me disse que iria melhorar minha alimentação, porque estava comigo desde o início e iria até o final. Tinha um propósito, e nem falo de medalha, mas eu só me sentiria tranquilo em voltar para casa com algo concreto por tudo que ela fez por mim."

Após a vitória contra o israelense Baruch Shmailov, que garantiu o lugar do brasileiro no pódio, o atleta falou sobre mais feitos da mãe: "Uma vez, voltei de um treino chorando porque tinha apanhado muito. Minha mãe não me deixou esmaecer. Disse: 'Venha comer alguma coisa porque amanhã é um novo dia", relembra.

Gaspar Nóbrega/COB Gaspar Nóbrega/COB

Covid-19: uma luta importante

A pandemia de coronavírus não só adiou os Jogos Olímpicos de Tóquio em um ano, como trouxe mais dificuldades a Daniel. Quatro meses antes de ir para Tóquio, ele contraiu coronavírus e ficou fora do Mundial de judô, em Budapeste.

O atleta teve sintomas leves, como perda de olfato e paladar, mas, por um instante, viu seu sonho olímpico jogado no lixo. Ele acreditou que, pela ausência no mundial, não seria convocado para as Olimpíadas. Equívoco. E que bom!

"Desde o início desse período, me machuquei três vezes. Não participei do mundial porque estava com covid-19. Confesso que cheguei a pensar: 'Não está dando certo'. Ainda assim, continuei treinando com firmeza. Saí da casa da minha mãe, mas disse a ela: 'Quando passar a Olimpíada, eu volto'".

"Sinceramente, ainda não caiu a ficha."

HANNAH MCKAY/REUTERS HANNAH MCKAY/REUTERS

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