Apetite de medalha

Claudinei Quirino passou fome e apanhou em orfanato antes de virar um dos maiores velocistas olímpicos do país

Claudinei Quirino, em depoimento para Denise Mirás Colaboração para o UOL, em São Paulo Folha Imagem

Parece que ser o último é pior... Tinha ido ao banheiro fazer xixi não sei quantas vezes, a barriga estava um gelo, minha mão pingava, eu passava no chão para ficar um pouco áspera, para o bastão não escorregar. O Estádio Olímpico, em silêncio total. Mas foi dado o tiro de largada para mais de 100 mil pessoas começarem a gritar. E eu não escutava mais nada. Eu parado, ali, vi o Vicente (Lenílson) correndo, vi o Edson (Luciano) quando ele entregou para o André (Domingos).

A gente tem uma marquinha na pista. Fico olhando para o chão, porque quando ele pisa, eu saio correndo. Aí corro e não olho mais para trás. Quando o André grita 'Vai, Nei!!', estico a mão e ele coloca o bastão.

Mas não ali, não naquela final dos 4x100m! Com aquele barulho ensurdecedor, eu não escutava nada! Nada mesmo! Não escutava o André.

Aí eu senti o cheiro dele.

É a convivência. Você vive muito com a pessoa, sabe o cheiro. O cheiro dele é bom. Não escutava ele gritando, mas aí veio aquele ventinho, sei lá. Eu falei: 'Tá aqui do lado!'. Quando estiquei a mão, você pode ver no vídeo - estou quase em cima dele, que até faz assim, encolhe a mão. Peguei o bastão assim, ó! Naquela hora, só vi o Maurice Greene e o Freddie Mayola. Dá tempo de ver tudo isso. O Greene, apaguei da minha vista. Eu não ia ganhar do recordista do planeta, mas o cubano podia passar. Olhei para o painel. E chego meio caindo, assim. Dei tudo.

São duas as medalhas mais importantes na minha vida. A prata dos 200m no Mundial de Sevilha 1992 e essa prata do revezamento da Olimpíada de Sydney 2000. O meu medo naquele 29 de setembro era falhar, não conseguir pegar o bastão e não corresponder ao time - Vicente Lenílson, Edson Luciano, André Domingos e o Cláudio Roberto, que correu as eliminatórias. Eu podia chegar em quarto, quinto lugar, mas precisava pelo menos terminar a prova com tudo bonitinho. Graças a Deus não falhamos. Ah, e o perfume do André é maravilhoso!

Folha Imagem

Apanhei muito

Minha mãe tinha falecido e meu pai, com cinco filhos, teve de pedir ajuda. Com 2 anos eu estava morando em um orfanato em Pirajuí (SP). Você não imagina onde está sua mãe, seu pai, sua mamadeira, seu brinquedo.

A primeira coisa que me lembro, do orfanato, é que eu tinha de bater em alguém. A gente vivia uma grande violência. Não tinha essa de carinho, de conversar. Era na base da palmatória. Apanhei muito. Não tinha direitos da criança. Se tivesse, ninguém sabia ou praticava. Eram outros tempos, nem posso julgar ninguém... Hoje, visito orfanatos, e mudou muito do que era naquela década de 1970.

Cresci aprendendo a me defender. Tinha de bater, era a lei do mais forte, da sobrevivência. E ia levando essa revolta da vida. Só via novidade quando ia para a escola. Via brinquedo novo, camiseta com desenho do Tio Patinhas, do Sítio do Pica-pau Amarelo, que era a única coisa que se via no orfanato. Como outras crianças podiam ter tudo isso e eu, nada? Só os mais velhos pulavam o muro e apareciam com chocolate, chiclete, linha de soltar pipa - que a gente não sabia de onde vinha.

E na escola éramos discriminados. Eu tinha vergonha, porque ia de chinelo. Queria ter Conga, Bamba, Kichute... E porque ia careca. Por causa de piolho, todos no orfanato tinham a cabeça raspada.

Juca Varella / Folha Imagem

Convencido pelo estômago

O dia que tinha visita era o mais feliz de todos, porque a comida era especial. Queriam mostrar que lá era um lugar com abundância. Eu gostava porque ganhava um lanchinho ali, um pão com mortadela. E tinha um monte de garrafas de groselha, que se misturava com água no caldeirão. Um dia apareceu um padre e perguntou o que a gente queria ser quando crescer. Era professor, jogador de futebol, pedreiro.... E eu pulando para responder: 'Eu, eu!!!' Disse que queria ser bandido.

Quando você mora lá, não tem muito acesso à rua, a nada. Fica meio boiando. Nossos ídolos acabavam sendo os mais velhos e nos ensinavam do jeito deles, não do jeito certo.

Aí esse padre ficou com dó de mim, me chamou para ser coroinha e fui, porque as beatas levavam sempre um pão, um bolo... Fui convencido pelo estômago. Mas ele virou um amigo e dizia que o que eu estava aprendendo era tudo errado. A cabeça é uma coisa louca: quer coisas melhores, mais bonitas, vê uma bicicleta, um carro... Pode ter, mas é preciso aprender como ter. Existe um caminho para adquirir. Para mim, era muito confuso. Não tinha uma pessoa para dizer que é assim ou assado.

Mas o padre me abria um leque de coisas bacanas. Eu queria ser cantor, mas tenho essa voz rouca desde sempre. Ele queria que, quando eu fosse grande, voltasse ali para dizer que tinha passado por tantas adversidades e vencido na vida.

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Orfanato: a base improvisada para o esporte

Acredito que tive, de alguma maneira, uma base para o esporte. Eu adorava o Natal. A gente ganhava aquela bola Dente de Leite, mais fina, que parecia uma bexiga. No mato, espinho, não durava dois dias e furava. A gente enchia de meia, pano, papel de revista, o que achava, para poder seguir brincando. Gostava de jogar, mas sou péssimo de futebol.

No Natal, aparece voluntário que não se sabe de onde, com sacos de bala. Não leva chocolate. Leva bala, que é mais fácil. Aquela soft, redondinha, colorida, que a gente até engasga. Faz aquela fila e vão dando umas três, para não acabar antes de acabar a fila... O que eu fazia? Tirava camisa, voltava; punha boné, entrava na fila; ia de novo, de cabeça baixa; depois, trocava de roupa com os outros... No fim, a gente ia pra um canto contar quem tinha pego mais. Coisa de criança, né? Daí começava a chupar, depois mastigar, chegava no fim da tarde não tinha mais bala.

Orfanato não tem gordinho.

Na volta da escola, se a Kombi ou a caminhonete aberta não ia buscar, nós sabíamos de todas as casas, onde tinha fruta e quando era época de manga, goiaba - batia palma e pedia. Senão, pulava cerca e vinha pegando manga no pasto, correndo de boi, pegava caju, caqui, milho num lugar que a gente achava que era fazenda, e devia ser sítio, fugia de cachorro.

No orfanato, tinha um pé de manga enorme para subir, jabuticabeira. Brincava de pega-pega, esconde-esconde, pique-pega. Atravessava nadando de cachorrinho na parte mais rasa do açude. Depois, pulava um muro alto para ir para a praça, ajudar o pipoqueiro para poder comer pipoca. Às vezes alguém ganhava uma moeda.

Juca Varella / Folha Imagem

De chapeiro a velocista

Quando se faz 18 anos, tem de ir embora. Larguei tudo, mas tinha para onde ir: a casa do meu pai, que só tentou sobreviver do jeito que pôde, em Lençóis Paulista. Ele era forte, cabelão para trás, meio índio. Veio da Bahia, uma vez perguntei como fazer para desbravar matas em fazendas, abrir estradas, matar onça. Era um mateiro.

E eu fui servente de pedreiro, empacotador, catador de lata e de estrume para vender como adubo. Um monte de casas ali perto do cemitério de Lençois fui eu que fiz o reboco e levava para o pedreiro fazer a parte dele. Mas vários amigos foram para a rua. Eram da Baixada Santista, de São Paulo... Não sei por que cargas d'água estavam no interior, talvez parentes mandassem para longe.

Um amigo me avisou de um trabalho de chapeiro na lanchonete de um posto. Da meia-noite às seis da manhã, para dormir lá. Fiquei super feliz. Tinha 19 para 20 anos e no restaurante do lado ficava um monte de garotas. Eu querendo namorar e elas não olhavam para mim....

Um dia, um cara entrou para beber água. De canto de olho, eu via as meninas lá, falando: 'Que homem lindo, que corpo maravilhoso". Chamei o cara de shortinho e camiseta de lado. 'Eu faço atletismo', ele disse. Que negócio é esse? Corrida? Posso fazer também? 'Claro que pode, rapaz! Vai lá e procura o professor.' Atletismo não é como futebol, que tem de fazer teste, acham que não vai dar. Fui e fui muito bem aceito. Tinha 1,84, era magrinho, feinho. Entrei para ficar bonito. Bonito não teve jeito, né? Mas fiquei um pouco mais fortinho.

Em Lençois, treinei com o chileno Ariel Troncoso de Ravena. Saí do posto. No atletismo, não ganhava dinheiro para competir, mas tinha um par de tênis, uma camiseta. Para mim tudo era novidade. No começo, quando queria ficar bonito e forte, estava fácil. Quando comecei a ficar em terceiro lugar em algumas competições, o pessoal começou a olhar com outros olhos. Aí vem a cobrança.

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Araçatuba, Prudente e o mundo

O técnico José Santos Primo tinha me chamado me para ir para Araçatuba. Fui morar embaixo da arquibancada do AEA, clube tradicional da cidade. Primeiro rodízio em restaurante: arroz, carne de panela, enchi o prato igual louco. Era tanta coisa gostosa que a gente não tinha acesso nunca: feijoada, torresmo... Fiz um pratão, que eu até protegia com o braço. Eu me defendia para comer. Quem saiu do orfanato come rápido, para ninguém tomar seu prato.

O Primo me falou que podia comer à vontade, mas era para pegar um pouquinho e voltar. Que poderia comer dez, 50 vezes, em vez de fazer um prato daquele tamanho. Falava para mim: 'Nei, você está no caminho certo, vai ser campeão, mas quero você campeão na vida'. Foi um treinador, um educador, um pai.

Essas coisas, que as pessoas acham que é pequeno, para mim têm um grande sentido. Porque você fica desesperado, se está em um orfanato onde só se toma sopa. De vez em quando um macarrão. Quando acha um pedaço de ossobuco, você come igual cachorro, fica dois, três dias chupando pelo buraco. Azeitoninha que vem no macarrão - você tem de dar sorte —, ou vê que um cara jogou lá aquele negocinho... Você quebra e come aquela castanhazinha do meio. Sabia que tem? No orfanato a gente comia. Não podia ver um caroço de azeitona que guardava para quebrar depois.

O Jayme Netto Junior, que me trouxe para Presidente Prudente, foi o transformador da minha vida. Devo muito a todos, ao Ariel, ao Primo que foram me lapidando. Mas aqui ingressei na seleção brasileira, aqui fiz minha vida esportiva. Aprendi a correr os 200m. Para simplificar, você larga inclinado, tem de aprender a correr inclinado na curva. Depois endireita na reta dos 100m. Até para colocar o bloco é preciso achar um ângulo reto voltado para a curva, para correr mais rápido. Ele tinha uma sabedoria, uma gana para ensinar a gente.

Viajei para 40 e poucos países, tive oportunidade de morar nos Estados Unidos - 'morar'... é que nem parente: fica uma semana e já diz que está morando... -, na Holanda. Fazia temporada e voltava. Grécia, Suécia... Aqui na América acho que só não estive na Guiana. Deus deve gostar muito de mim, porque quando você está desistindo ele coloca alguém para dar um puxão de orelha, uma força. Na minha vida sempre foi assim.

Jose Manuel Ribeiro REUTERS

O Claudinei hoje

Mas não tenho do que me envergonhar. Nunca usei droga, apesar de conhecer desde pequeno. Aprendi a beber depois de velho. Cervejinha. Mas parar foi uma das coisas mais difíceis da minha vida. Tinha glamour, fisioterapeuta, médicos, massagista. Qualquer dor, aparecia meia dúzia aqui. De repente... sumiram.

Não fiquei depressivo, nem sei se fiquei. Mas chateado. É como se você fosse uma estrela e, de repente, apagou. O atleta tem de se preparar, quatro, cinco meses desacelerando. Um processo que no Brasil não se faz. Não dá para parar hoje ou amanhã. Você se vê o dia inteiro em casa sem saber o que fazer. Cai a renda. Muitos atletas se perdem. Chamam o cara para o bar, para outra coisa.

Claudinei Quirino da Silva, 50 anos, foi velocista. É contratado da Globo para fazer comentários sobre atletismo. "Comentários, não! Sou fanfarrão, falo a língua do esporte. Também sou motivador de gente e prefiro ensinar criança a gostar do atletismo. Depois se vê se vai competir, viajar. Trabalho com um programa da Caixa, incentivando a prática do esporte e o estudo. E sou corretor. E contador de 'causos' no Instagram. Estou há 16 anos casado com a Juliana, sou pai da Ana Luiza, de 14, que joga handebol, salta muito para chutar a bola, e do Cauê, com 9, que faz caratê e futebol. Dá para conciliar, mas a prioridade é estudar. Ah, e temos um cachorro - o Bolt, que é meio bunda mole para correr."

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